Em maio de 1998 Hugo Chávez era apenas um coronel reformado do exército da Venezuela que depois de passar um tempo na cadeia, por participar de um levante contra o governo, ligara-se a grupos nacionalistas e de esquerda de seu país e da América Latina. Sua candidatura à Presidência da República sequer merecia menção nos principais jornais de Caracas. A campanha presidencial daquele ano, ao que tudo indicava, seria decidida como sempre entre os representantes das velhas correntes conservadoras, desta vez adornada pela presença, como candidata, de uma ex-miss Venezuela, muito bem relacionada nos meios financeiros do país, segundo se comentava nos círculos mundanos de Caracas.

A bancarrota dos partidos oligárquicos e o sucesso de Chávez em levantar a esperança e o orgulho dos venezuelanos, além de levá-lo à Presidência, tornou mais urgente uma grande preocupação entre os corifeus do neoliberalismo: dos legislação eleitoral partidária dos países da América Latina precisava ser alterada para fechar definitivamente as portas aos partidos e candidatos capazes de desafiar o domínio dos monopólios em meio à crise econômica e social, e à crescente insatisfação popular nesta área do Continente.

Os neoliberais já conheciam o lado positivo dessa situação, quando, no Brasil de 1989, foram salvos pela candidatura de Fernando Collor de Mello no pleito em que este derrotara uma coligação de esquerda que chegou perto do palácio presidencial de Brasília no momento em que as forças conservadoras mais uma vez falhavam no processo de transição de um regime ditatorial para um processo democrático. Agora viam assustados que da mesma forma que Collor os salvara de uma catástrofe, uma legislação razoavelmente liberal poderia permitir, como no caso venezuelano, a ascensão de forças hostis aos seus postulados. O mercado disciplina a eleição

Ao mesmo tempo em que trabalham pela flexibilização das regras de comércio e das relações de trabalho, os monopólios globais exigem modelos institucionais rígidos, capazes de assegurar seus interesses mesmo diante da instabilidade econômica e social nos países sob seu domínio. Preconizam fórmulas eleitorais e de funcionamento partidário arranjadas para perpetuar o condomínio conservador. Aí não haveria brechas para candidatos independentes que a partir da coligação de partidos nacionalistas e de esquerda, com forte apoio popular, afrontassem a hegemonia da oligarquia financeira.

Realizadas tais mudanças que por aqui levam o nome de reformas políticas já não se poderia falar em democracia no sentido rigorosamente liberal. A escolha do eleitorado já não seria entre as correntes políticas e ideológicas existentes na sociedade, mas tão somente um simulacro de múltipla escolha entre as legendas habilitadas pelo cipoal legislativo trançado de tal maneira a só tornar aptos para os pleitos os partidos conservadores ou aqueles que não contestassem diretamente o núcleo da política globalizante.

Inauguraríamos, para êxtase da modernidade neoliberal, a era da política e dos candidatos virtuais. Os programas, a doutrina, a ideologia, já não teriam importância, substituídos que estariam pela eficiência do mercado (marketing) e pelo poder do dinheiro. Mídia e dinheiro, quanto mais, melhor, assim poderíamos reduzir o esplendor da política imaginada pelos reformadores do grande capital.

A cláusula de barreira ou de desempenho, exigência de um número elevado de votos como condição para a existência institucional de um partido é um dos pilares da chamada reforma partidária. A proibição das coligações, associações de partidos com afinidades entre si para disputar os pleitos, seria outra medida da autodenominada reforma eleitoral. Nada de se discutir a efemeridade dos partidos, a ausência de doutrina e de programas nas grandes legendas, ou o abuso do poder econômico que vai transformando o processo eleitoral em uma espécie de leilão degradante entre os bancos e as empresas multinacionais capazes de financiar campanhas milionárias.
Bornhausen aprende as lições de Lampedusa

O PSDB de FHC é uma espécie de UDN globalizada, com todos os defeitos da antiga sigla – o apelo moralista às ilusões e preconceitos da classe média e a mesma facilidade em se aninhar no colo dos potentados; sem nenhuma das virtudes da antiga agremiação. Em confissão à revista Veja (22.12.99) FHC diz que "os Estados Unidos não precisam da força para invadir, eles invadem pela cabeça". Fala com a autoridade de quem tem a própria cabeça sob as rédeas da geopolítica norte-americana, do FMI e do consenso de Washington.

FHC e o PSDB fariam de bom gosto as mudanças restritivas na legislação eleitoral e partidária. Mas falta ao grupo a visão estratégica e a "coragem de salteador", como diria Lima Barreto, tão presente na tradição lacerdista herdada e deformada pelos tucanos com os trejeitos da pusilanimidade e da covardia. Democrata de pouca fé recém convertido ao credo globalitário, FHC precisaria do impulso de uma força dirigente para promover o cerco aos direitos democráticos.

O PFL é a organização destinada a cumprir este roteiro no Brasil. Das legendas tradicionais é a única com consistência para liderar a nova forma de hegemonia. A familiaridade com o poder, a naturalidade com que se amolda às novas exigências das classes dominantes transformaram o PFL em uma espécie de pedra de mil e uma utilidades, na qual o cinzel da classe dominante sempre pode esculpir um modelo novo.

E como desde Lampedusa, tudo deve mudar para que tudo continue como está, também o PFL ensaia suas mudanças para cortar o velho pano de acordo com o novo figurino. E para promover as mudanças desponta na alta costura de Brasília a figura do senador Bornhausen (PFL/SC), sombrio articulador de bastidores, freqüentador de palácios em tantos governos quanto os houve no passado recente da República. Intérprete sensível das aflições políticas dos monopólios, a reforma política da qual se fez anjo da guarda, enseja mudanças e sacrifícios na própria organização que integra.

Para cumprir seu objetivo Bornhausen imagina um PFL eleitoralmente denso no Sul e no Sudeste, escoimado do anátema de legenda fisiológica alimentada pelos votos dos grotões nordestinos. O PFL dos sonhos de Bornhausen não freqüenta a lavagem das escadarias do Bonfim, não assume compromissos com prefeitos e vereadores do sertão baiano, não está preocupado com a irrigação do agreste pernambucano; não freqüenta feiras, não faz comícios. O PFL do Dr. Bornhausen não hipoteca uma ninharia que seja do orçamento para a construção de uma ponte, uma estrada ou uma escola. O PFL do Dr. Bornhausen desfila com ternos alinhados nos salões perfumados da banca da Avenida Paulista ou nos escritórios elegantes da Avenida Luís Carlos Berrini, novo ponto de encontro no mundo dos negócios paulistano. Para o bem ou para o mal, esse PFL condenado à morte pelo Dr. Bornhausen envolve povo na sua ação clientelista. Na campanha imaginada pelo Dr. Bornhausen saem povo e clientelismo e entram mídia e dinheiro. Assim, distante do povo e via TV, ele pode sustentar que a coisa mais importante do mundo é o país acertar suas contas, comprometer todo o orçamento com o pagamento dos juros da dívida pública, tranqüilizar os credores, prometer o paraíso para os chamados investidores externos, mesmo que a vida da população se transforme em inferno permanente.

O trabalho do senhor Bornhausen não pode deixar de criar embaraços para outro líder do PFL, o senador Antônio Carlos Magalhães. Adeptos do líder catarinense não escondem que o PFL talhado para o futuro não deve ter o perfil do senador baiano considerado antiquado, regionalista para dizer o mínimo, a cara do PFL do passado. O equilíbrio ainda não foi rompido a favor do quadro catarinense graças ao peso específico que cada uma das lideranças desempenha dentro da organização. Os bornhausistas até toleram o senador da Bahia pela liderança própria entre o eleitorado baiano e os parlamentares pefelistas, mas não é com ele que pretendem transformar o PFL no PP espanhol dos trópicos, o novo paradigma dos luas-pretas pefelistas. ACM será, quando muito um Fraga Iribarne, reduzido como o líder da Galícia, a esfera de influência de sua província natal. É provável que Bornhausen cobice para si o papel de José Maria Aznar embora saiba que não passe no momento de uma expressão eleitoral menor, feito senador no rastro do prestígio nas urnas do governador Esperidião Amin.

Fernando Henrique Cardoso, naturalmente, vê nos planos de Bornhausen o supra-sumo de seu sonho não realizado: governar sem oposição e quem sabe deixar como herança um parlamentarismo de fancaria, longe do povo e das urnas, sem riscos para as elites, que poderiam continuar a saquear e a empobrecer a população e o país sem que o poder lhe escapasse pelas mãos numa batalha eleitoral qualquer.

Cabe aqui uma vez mais recorrer à imagem sutil de Garrincha sobre as recomendações que lhe fazia o técnico Feola a respeito de como o grande ponta direita se desvencilharia de seu marcador: tá combinado com o adversário, "seo" Feola? Os conspiradores da democracia neoliberal jamais devem esquecer a persistência e o heroísmo com que o povo brasileiro tem se batido pela liberdade. A própria manobra parlamentarista foi desarticulada duas vezes nas urnas pelo veredicto popular. A tentativa de encabrestar a vida partidária em duas ou três legendas conservadoras produziram rebeliões que nem os antepassados mais briosos e viris de FHC e Bornhausen conseguiram evitar.

Aldo Rebelo é jornalista e deputado federal pelo PCdoB/SP.

EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 40, 41, 42