Globalização e Estado
É possível a extinção do Estado nacional? Do ponto de vista marxista a resposta a esta questão é afirmativa. O Estado surgiu num determinado estágio de desenvolvimento da Humanidade, para conter os conflitos de classes. É um instrumento de dominação de classes, que somente se extinguirá com a supressão das classes sociais e de seus antagonismos. A concepção marxista indica que o modo de produção dominante condiciona a existência das classes sociais em cada etapa do desenvolvimento histórico, e a classe dominante detém o controle do Estado.
O Estado, mostrou Engels, "não existiu eternamente. Houve sociedades que existiram sem ele" . Mais adiante afirmou: "Com o desaparecimento das classes, desaparecerá, inevitavelmente, o Estado. A sociedade reorganizada sob um novo modo de produção, sob a base de uma associação livre de produtores iguais, enviará toda a máquina no Estado ao museu de antiguidades. O Estado burguês só pode ser 'destruído' pela revolução. O Estado em geral, ou seja a maia completa democracia, só pode extinguir-se'." Do ponto de vista marxista, portanto, o Estado se extinguirá quando se extinguirem as classes sociais e a exploração de classes.
A evolução histórica evidencia que, na etapa imperialista do desenvolvimento capitalista, os estados dos países imperialistas tomaram-se mais fortes e mais armados para assegurar seu domínio sobre os países dependentes e coloniais, como Lênin já havia indicado. Já os Estados dos países periféricos, ao se constituírem dentro da ordem capitalista, se organizaram nos marcos da dependência, mesmo guardando certo tipo de independência política.
Não há como falar em extinção do Estado enquanto existirem as classes sociais e a dominação sobre as nações dependentes. O atual discurso da extinção dos estados nacionais e das fronteiras nacionais, na realidade, cumpre a função de quebrar as resistências dos países dependentes ao processo de hegemonia norte-americana no mundo.
Na tentativa de conter a onda de resistência ao projeto neoliberal, os teóricos da grande burguesia internacional procuram desqualificar a luta em defesa da soberania nacional afirmando que, nos dias de hoje, esta questão está superada – no esforço de desarmar os povos oprimidos e impor o chamado caminho único, que interessa às grandes potências, em particular aos Estados Unidos, aos banqueiros e às multinacionais.
Neoliberalismo e Estado mínimo
Certos setores defendem que, nesta nova fase do desenvolvimento capitalista, se alterou o papel dos estados nacionais, tomando-se necessário implantar o chamado Estado mínimo, dentro da lógica neoliberal de menos Estado e mais mercado.
Para eles, com a internacionalização da economia, os estados nacionais dos países dependentes perderam as condições para definir suas políticas econômicas. Sustentam também que a soberania das nações é limitada pela defesa dos "direitos humanos", pela luta contra o narcotráfico e pela garantia do fornecimento de materiais estratégicos (como o petróleo). Isto justificaria o direito de intervenção em países soberanos. Dentro desta concepção, as Forças Armadas dos países dependentes deveriam deixar de existir enquanto fator garantidor da soberania nacional, limitando-se ao papel de polícia, ou de combate ao narcotráfico, por exemplo.
Na onda da globalização surgiu o neoliberalismo. O velho liberalismo retomou sob o manto de uma "concepção moderna" para enfrentar os problemas econômicos do mundo capitalista e a crise dos países do Leste europeu. O núcleo desta concepção é o combate às idéias keynesianas de intervenção do Estado na economia, e ao Estado de Bem-Estar Social. Defende a "mão invisível do mercado" como fator essencial para regular as relações econômicas e sociais.
Para os neoliberais, as conquistas sociais e a luta dos trabalhadores são a causa da crise vivida pelo capitalismo. Daí a política que defendem de cortes de direitos sociais e de desorganização do movimento sindical. O pressuposto é que a desigualdade social é importante fator de estímulo ao crescimento econômico.
A onda neoliberal se impôs em quase todo o mundo. Na América Latina ganhou características próprias com o Consenso de Washington. Seu conteúdo básico é o seguinte: estabilização da economia por meio do combate à inflação; ajuste fiscal com a eliminação do déficit público; redução do tamanho do Estado; privatizações; abertura comercial com a redução das alíquotas de importação; fim das restrições ao capital estrangeiro; fim das restrições às instituições financeiras estrangeiras.
Trata-se, na verdade, de uma política – ela sim – ultrapassada há muito tempo. A idéia de um mercado livre nas condições do capitalismo monopolista é inteiramente falsa. A desregulamentação e a abertura da economia levaram a uma maior concentração da renda, ao agravamento da crise social e da dependência. Cresceu a distancia entre países ricos e pobres e entre as camadas mais ricas e mais pobres. Isto porque ao mercado interessa o lucro e não um desenvolvimento mais harmônico da sociedade. (I)
Mesmo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional tiveram de reconhecer os graves resultados desta política. O relatório divulgado pelo Banco Mundial (BIRD) mostra que no período de maior influência do neoliberalismo houve um aumento da pobreza e do protecionismo internacional. As pessoas que viviam com menos de US $ 1 por dia passaram de 1,2 bilhão em 1987 para 1,5 bilhão em 1999, e a América Latina está entre as regiões onde a pobreza mais cresceu. O relatório constatou, também, que a diferença de rendas entre os países mais ricos e os mais pobres cresceu seis vezes.
Sem rejeitar as idéias básicas do modelo, o diretor geral do FMI chegou a falar em "humanização da globalização" num jogo de cena para diminuir o impacto das críticas que este órgão vem recebendo. Trata-se de uma mudança de tom e não de conteúdo. O que pretendem são medidas compensatórias e não uma mudança de política, de rumos, posição semelhante à de Antônio Carlos Magalhães, que fala em combate à pobreza mas defende a política econômica e social de Fernando Henrique.
O relatório constata, ainda, um crescimento do protecionismo, em especial nos países industrializados, que impõem restrições, sob as mais diferentes formas, às importações dos países em desenvolvimento, mas não aceitam destes qualquer tipo de restrição às suas mercadorias. O resultado é uma competição altamente prejudicial aos países em desenvolvimento cuja conseqüência é o desmonte de seu parque produtivo. É a política do "faça o que eu mando e não faça que eu faço".
Falando sobre as conseqüências sociais deste processo Michel Chossudovsky constata que "a globalização da pobreza neste final de século XX não tem precedentes na história mundial. Todavia, essa pobreza não se deve a uma 'escassez' de recursos humanos e materiais, mas, antes, a um sistema global de oferta excessiva nutrido pelo desemprego e pela minimização do preço da mão-de-obra em todo o mundo".
O discurso de integração harmônica entre as nações, da superação das fronteiras nacionais, da redução do tamanho do Estado, particularmente nos países dependentes, mal esconde o real objetivo de desarmar os povos na defesa de seus legítimos interesses.
Na verdade há um processo simultâneo de fortalecimento dos estados nos países centrais e seu debilitamento nos países periféricos, com o aumento da dependência, como mostra o professor Atílio Boron: "Os estados, especialmente na periferia, foram conscientemente enfraquecidos, quando não selvagemente sangrados, pelas políticas neoliberais, a fim de favorecer o predomínio sem contrapesos dos interesses das grandes empresas". A realidade, diz ele, "é que nossos estados são muito mais dependentes hoje do que antes, oprimidos como estão por uma dívida externa que não para de crescer e por uma 'comunidade financeira internacional' que na prática os despoja de sua soberania ao ditar as políticas econômicas docilmente implantadas pelos governos da região. No entanto, por um desses paradoxos da história, nestas condições de intensificação sem precedentes da heteronomia nacional, as teorizações sobre a dependência ou o imperialismo são depreciadas como meros anacronismos, quando na realidade, adquiriram uma vigência ainda maior do que tinham conseguido na década de 60".
É nestas condições que ressurge a questão nacional, cada vez com mais força, pois os povos estão tendo melhores condições de identificar a gravidade das conseqüências desta política, particularmente na América Latina.
Falando sobre o chamado Estado mínimo, o professor Emir Sader afirma que esse caráter "só está presente na deterioração das políticas sociais, no caráter de maiores geradores de desemprego que esses estados assumem, no congelamento dos salários dos funcionários, no enfraquecimento dos funcionários públicos, no enfraquecimento generalizado da educação pública, da saúde pública, etc. Por isso falamos de Estado mini-max , máximo para o capital, mínimo para o trabalho".
O processo de globalização é, sobretudo, financeiro. Juntamente com outros fatores de ordem política, tecnológica e militar, ele assegurou a hegemonia norte-americana no mundo pela ação direta dos Estados Unidos e de inúmeras instituições visando enquadrar as políticas nacionais aos interesses do grande capital internacional, entre as quais destacam-se Grupo dos Sete (G-7), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial do Comércio (OMC), Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), Banco Mundial (BIRD), Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Além disto, a OTAN passa a adotar uma política ofensiva com a criação de uma força internacional de intervenção. Fala-se, também, na criação de uma força latino-americana com os mesmos objetivos. Estas agências formam verdadeiros governos paralelos, esvaziando as funções dos governantes eleitos pelo povo, fixando as políticas econômicas em função dos interesses dos grandes grupos financeiros.
A interferência externa chega ao ponto do Relatório do Banco Mundial, falando sobre a Reforma do Judiciário, afirmar que "a reforma econômica requer um bom funcionamento do Judiciário" e que, com "a emergência da abertura dos mercados aumenta a necessidade de um sistema jurídico" adequado a elas. As "regras do jogo" são aquelas impostas por estes organismos internacionais, de forma a favorecer os países altamente desenvolvidos e prejudicar os países dependentes.
A retirada dos instrumentos que permitem aos estados definirem suas políticas nacionais chega ao seu ápice com o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), denunciado na França e que voltará a ser discutido na Rodada do Milênio. Ele visa garantir os investimentos estrangeiros contra problemas econômicos e políticos capazes de prejudicar o capital estrangeiro, que deverá ser compensado pelos governos dos países onde elas venham a ocorrer. É o capitalismo sem riscos, cujos prejuízos são financiados pelos povos oprimidos – uma negação completa da idéia, enfaticamente defendida pelos capitalistas, de que o mercado é o melhor regulador das relações sociais e econômicas. Tal acordo expressa a intervenção do Estado na defesa do capital estrangeiro.
Comentando o ponto de vista de Paul Hirst e Grahame Thompson, Paulo Nogueira Batista Jr. afirma que "o que temos é uma economia internacional e não uma economia global. Não há fundamento para a alegação de que teria surgido, nos últimos vinte ou trinta anos, uma economia global, fortemente integrada, na qual os estados nacionais estariam se tomando obsoletos". Segundo sua opinião "a economia internacional se caracteriza por processo de intercâmbio entre economias nacionais distintas. As trocas internacionais são significativas e crescentes, mas predominam as atividades econômicas internas. A maioria das empresas não perde suas vinculações nacionais. Os governos, agindo isoladamente ou por meio de acordos e entidades governamentais, continuam a desempenhar funções econômicas essenciais".
Falando sobre globalização e Estado, Hans Dieterich Steffan, no livro La Sociedad Global, afirma que "apesar da crescente internacionalização do capital, a sociedade política segue sendo – sobretudo em tempos de crise – o conglomerado mais importante do sistema, precisamente por seu poder militar-político, e em virtude disto, o centro da luta pelo poder entre as diferentes classes sociais e entre os estados nacionais". Ele afirma também que "as formas de luta pelo controle do Estado seguem sendo predominantemente nacionais", e que "o efeito debilitante da expansão do capital transnacional sobre a capacidade de autodeterminação nacional, é mais notável nos países do Terceiro Mundo, que constituem o elo mais fraco da cadeia de exploração planetária e na hierarquia do poder internacional".
Como complemento à implementação do projeto neoliberal, além das ações nos planos econômico e social, o desmonte dos estados nacionais exige também a restrição da democracia.
Para Atílio Boron, "a refundação de uma ordem econômica liberal – que deixe as mãos livres às frações mais dinâmicas e concentradas do capital – exige a constituição de uma ordem política crescentemente autoritária". Já Zuzanne Brunhoff afirma que a "desregulamentação e a desnacionalização são inseparáveis de um desmantelamento da classe operária organizada em sindicatos independentes" e que "a centralização econômica privada requer uma centralização política ".
Dizer que este é o caminho único, inevitável que temos de trilhá-lo é o discurso das elites que romperam, completamente, com os interesses nacionais. É o discurso da traição nacional adotado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Inúmeros países confirmam a importância do Estado na definição e implementação de políticas nacionais. Tal caminho é adotado pela China e pelo Japão, guardadas suas particularidades e sistemas sociais diferentes.
A China dá uma lição ao mundo sobre a importância de se estabelecer uma justa relação entre Estado e mercado. Se a concepção neoliberal da " mão invisível do mercado" e do Estado mínimo tem sido derrotada pela prática social e a absolutização do papel do mercado tem conduzido à estagnação econômica e à crise social, a absolutização do papel do Estado conduz à burocratização e estagnação. A combinação destes dois aspectos, na China, priorizando o papel do Estado e do planejamento tem-lhe permitido obter os maiores índices de desenvolvimento do mundo.
O que está em curso, portanto, não é apenas a destruição dos estados nacionais, mas uma alteração das funções do Estado, com papéis diferenciados nos países centrais e nos países periféricos. Os estados rompem com qualquer tipo de política visando o bem-estar social e se concentram na tarefa de adotar medidas para fortalecer o setor empresarial e, em particular, o setor financeiro, conduzindo à concentração. Abrem a economia à competição predatória das empresas estrangeiras e adotam medidas de cortes dos direitos sociais e restrições democráticas. Para diminuir a resistência à sua implementação, a chamada 'reforma do Estado', feita para concretizar tais objetivos, é apresentada como progressista.
A questão nacional, hoje, se coloca diferentemente de como era no passado. O processo de internacionalização da economia é um fato objetivo e vem de longe. É da própria natureza do desenvolvimento capitalista, como identificaram Marx e Lênin. A integração do Brasil nesse processo é natural e necessária. Interessa ao povo brasileiro se apropriar dos avanços científicos e tecnológicos. Mas isso deve ser feito levando em conta nossos interesses como nação e como povo. E isso implica na decisão soberana do povo brasileiro de estabelecer nosso próprio caminho em tomo de um projeto de reconstrução nacional e não continuar nos submetendo aos caminhos que procuram nos impor.
Transformações do Estado brasileiro
O processo de desmonte do Estado, em curso no país, faz parte da política neoliberal; visa adequá-lo aos interesses do grande capital financeiro e multinacional, e eliminar os instrumentos econômicos, sociais, políticos, tecnológicos e culturais que permitam a formulação de um projeto de desenvolvimento que atenda aos nossos interesses.
O Manifesto em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho denuncia que "com a adesão de parcela significativa das elites brasileiras ao engodo de um mundo sem fronteiras e sem Estados, iniciou-se a destruição da nacionalidade, e a expectativa de riqueza transformou-se no espectro do desemprego e da pobreza rondando os lares de milhões de brasileiros".
O resultado do processo de globalização e o retrocesso social que está em curso nos ex-países socialistas tem permitido uma crítica mais rigorosa das políticas neoliberais, e as concepções progressistas e democráticas voltaram a crescer no mundo inteiro.
No Brasil, outra peça importante da política neoliberal é o desmonte do parque produtivo e o processo de privatização e desnacionalização da indústria nacional. Falando sobre as privatizaçães Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, declarou que elas atingiram, no Brasil, a cifra de 70 bilhões de dólares, sendo as maiores privatizações do mundo. Segundo o jornalista Aloísio Biondi em O Brasil Privatizado: o balanço das privatizações, o governo arrecadou ou transferiu dívidas num montante de 85,2 bilhões de reais, mas esconde que gastou mais do que recebeu com as privatizações. Que não entrou ou saiu dos cofres públicos um volume de 87,6 bilhões. Somente em investimentos feitos para "sanear" as empresas foram gastos 28,5 bilhões de reais. Tais fatos, não contestados pelo governo porque se baseiam em dados do Banco Central, demonstram, cabalmente, que as privatizações longe de dar lucros deram prejuízos.
A privatização de setores estratégicos da economia retirou do Estado importantes instrumentos para a implementação de uma de política econômica de acordo com os nossos interesses. A história demonstra que nos países menos desenvolvidos o papel do Estado é decisivo para acelerar o processo de desenvolvimento. Isto ocorreu com a Alemanha, União Soviética, Japão, Índia, o próprio Brasil, e a China. Retirar o Estado da atividade produtiva, sobretudo em países em desenvolvimento, é permitir que setores estratégicos caiam nas mãos do grande capital internacional, aumentando o grau de dependência do país.
Outro aspecto importante diz respeito à desnacionalização de nossa economia. As empresas estrangeiras já respondem por cerca de 40% das exportações e 44% das vendas no mercado nacional. No setor de autopeças o segmento nacional pode ser extinto em 5 anos, conforme o presidente do sindicato do setor. O capital nacional detinha 52% do investimento e do faturamento. Atualmente, responde por 40% e as empresas estrangeiras por 60%. No setor financeiro, em apenas dois anos (1995 a 1997) o controle estrangeiro sobre os ativos totais dos bancos passou de 21 para 30%. Isso faz crescer a remessa de lucros para o exterior, que passou de 2,5 bilhões de dólares, em 1994, para 7,2 em 1998.
As conseqüências do processo de desnacionalização são extremamente graves. Envolvem a nossa própria soberania e a capacidade de formularmos um Projeto Nacional. Já em 1987 um relatório do próprio Senado norte-americano dizia: "Se continuarem a crescer a desnacionalização e a concentração de mercado de produto, a economia brasileira haverá de se deparar com a crescente vulnerabilidade perante o poder de decisão estrangeiro, que é tomado nas salas das sedes principais das empresas multinacionais ". Sobre este aspecto, o professor Celso Furtado diz que "a globalização em países heterogêneos como o Brasil resulta no esvaziamento do poder de governar dos estados diante do comando assumido pelos conglomerados".
Outra medida que faz parte da chamada reforma do Estado é a Reforma Administrativa. Ela quebrou a estabilidade do servidor público e debilitou o concurso público como mecanismo de acesso aos cargos públicos ao instituir a seleção pública como "mecanismo mais flexível" de contratação de servidores.
Mas uma das medidas mais importantes da Reforma Administrativa foi pouco discutida: o chamado Contrato de Gestão, que permite ao Estado repassar para o setor privado responsabilidades nas áreas da educação e saúde, abrindo mão de suas responsabilidades sociais sob o falacioso argumento da maior eficiência da iniciativa privada.
Outro aspecto importante do projeto neoliberal está registrado nas medidas adotadas para a "flexibilização dos direitos trabalhistas", entre elas o contrato temporário de trabalho. A precarização do trabalho tem o objetivo de reduzir os custos de produção à custa do trabalhador, mesmo quando se sabe que os salários no Brasil são dos mais baixos do mundo, como mostram pesquisas do World Economic Forum.
Sobre isso, Suzanne de Brunhoff diz que "manter o rigor para os assalariados e restaurar a rentabilidade das empresas (mesmo que a queda desta última não seja efeito de salários elevados demais), seria a saída liberal para a crise, como mostrou a retomada americana de 1983-1984".
O desmonte da pesquisa científica e tecnológica é outro sério passo para a desestruturação do Estado nacional. No programa "Avança Brasil" o governo destinou 0,4% dos recursos para a Ciência e Tecnologia, incluindo os setores privado, estados e União. Para se ter uma idéia da insignificância destes recursos basta dizer que os países desenvolvidos gastam, em média, 3% de seu orçamento nesta área. O resultado desta política irresponsável é a desorganização do pouco que existe de pesquisa científica e tecnológica no Brasil. A Reforma Tributária, como aspecto da política neoliberal, não passa do mecanismo de repasse de recursos das camadas mais pobres para o Estado e para os setores de renda mais elevada. A lógica desta política é de que a concentração de recursos nas mãos dos empresários permite o investimento e o crescimento econômico, embora os fatos demonstrem que isto não está ocorrendo. A concentração da renda tem levado tais setores a investir na especulação e não na atividade produtiva. O chamado Imposto sobre o Valor Agregado é uma das expressões desta política. Ao invés de aumentar a carga tributária sobre a renda e a propriedade, aumenta sobre a circulação das mercadorias, que recai indistintamente sobre todos os setores da população. A situação tributária atual já é grave, pois onera os setores de mais baixa renda – as famílias que ganham até dois salários mínimos por mês pagam mais de 8% de sua renda familiar per capita em impostos indiretos.
A isenção fiscal sobre alimentos poderia reduzir o número de indigentes no país.
De acordo com Everardo Maciel, secretário da Receita Federal, enquanto as pessoas físicas que ganham acima de 1.800 reais pagaram 32% mais um adicional de 2,5% de suas rendas em impostos, as empresas pagaram 13,5% e os bancos 3,1 %. Além disso, diz o mesmo secretário, 825 bilhões de reais em impostos, simplesmente não foram pagos. Com isto o país perde, anualmente, o correspondente a um PIE inteiro com a chamada "elisão" fiscal, ou seja de calote no erário público.
O Brasil trabalha, sobretudo, para pagar a dívida e não para crescer e melhorar a vida de seu povo. A dívida interna, no governo Fernando Henrique Cardoso, passou de R$ 66 bilhões em 1994 para 500 bilhões em 1999. A dívida externa cresceu para 240 bilhões de dólares.
O Brasil paga as maiores taxas de juros do mundo. Em 99 pagamos em tomo de 130 bilhões de reais de juros – em torno de 10 bilhões por mês. É irracional o país gastar este montante para o pagamento da dívida e não ter recursos para a retomada do seu desenvolvimento e para as necessidades sociais urgentes.
Um indicador importante para melhor entender as reais prioridades do governo está na execução orçamentária, ou seja na prática efetiva do orçamento. Em 1999, de um total de I trilhão, 4 bilhões, 533 milhões, 781 mil e 20 centavos de gastos previstos no orçamento, 633 bilhões se destinaram à rolagem da dívida. Esta política suicida, que subestima a produção e os problemas sociais e superestima a esfera financeira e os compromissos com os banqueiros internacionais, está levando o país à falência.
Na verdade está colocada uma opção para o Brasil: cortar recursos dos investimentos públicos para saldar as dívidas externa e interna, ou cortar do pagamento da dívida para assegurar o desenvolvimento do país. Esta é uma opção que o povo brasileiro terá de fazer. Do contrário continuaremos caminhando para a desestruturação da Nação.
Outro compromisso estabelecido pelos acordos com o FMI é assegurar o livre fluxo de capitais. A conseqüência disto é que o Brasil fica sem a possibilidade de tomar medidas em defesa de sua economia impedindo, por exemplo, a evasão de divisas através da centralização do câmbio.
Não bastando, o FMI exigiu um escritório no prédio do Banco Central do Brasil para ditar as decisões de política econômica a serem tomadas por aquele órgão. O governo brasileiro, de fato, não decide sobre os grandes rumos da economia brasileira e o FMI funciona, efetivamente, como um governo paralelo.
Uma grave conseqüência social deste modelo é o desemprego. Só na Grande São Paulo existem 2 milhões de desempregados, dos 10 milhões existentes no País. Mas a crise social não se expressa somente através do desemprego. Está presente no agravamento das condições de saúde do nosso povo, evidenciado com o surgimento de doenças já extintas no país há muito tempo; no aumento da criminalidade; da prostituição; no aumento do número dos menores de rua.
As alterações no Estado brasileiro se expressam, também, no terreno político, onde ocorre a concentração crescente de poderes nas mãos do Executivo como, por exemplo, pelo uso sistemático e arbitrário das Medidas Provisórias, esvaziando as funções próprias do legislativo. Outra forma de concentração foi a aprovação da Desvinculação de Recursos da União (DRU), que substitui o Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) , assegurando ao governo federa120% da receita da União (41,5 bilhões de reais) para ser gasto como o governo quiser. Anão execução de certas despesas orçamentárias, também, representa uma política de esvaziamento do Congresso. O governo autoriza somente aqueles gastos que estão de acordo com sua política e não aqueles decididos pelo Congresso Nacional ao aprovar o orçamento.
Aspectos importantes da Reforma do Judiciário fazem parte deste mesmo objetivo. A adoção da chamada súmula vinculante é um mecanismo que permite aos tribunais superiores a adoção de decisões válidas para todas as instâncias do Judiciário, dando a tais tribunais poderes de legislar, o que é inconstitucional. Isto facilita a pressão do governo sobre os tribunais superiores em casos como o ocorrido na concessão de liminares no processo de privatização da Telebrás.
Mas as medidas mais importantes no terreno político estão relacionadas com a chamada Reforma Política, cujo papel é consolidar as outras reformas e ao mesmo tempo criar condições políticas mais favoráveis para aprofundá-Ias, ao assegurar uma hegemonia mais completa do poder pelos setores que adotam a política neoliberal.
Como saída para a crise política chega-se a falar na retomada da questão do parlamentarismo. Nas atuais condições tratar-se-ia de uma manobra continuísta do presidente Fernando Henrique.
Todavia as questões chaves da Reforma Política estão relacionadas com uma drástica redução do número de partidos políticos, a adoção do voto distrital misto, a cláusula de barreira e a proibição das coligações proporcionais. São todas medidas que aprofundarão as influências do poder econômico no processo eleitoral e reduzirão drasticamente o número de partidos políticos. Tomará as instâncias de poder no país mais elitistas e representativas dos grupos econômicos.
Analisando a gravidade do processo de destruição da nação brasileira, o Manifesto em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho afirma que "nunca o presente e o futuro do Brasil estiveram tão ameaçados. Jamais sofreu a nossa soberania as humilhações que ora suportamos. Decididamente, está na hora de reverter tudo isto! Precisamos reconstruir nossa nacionalidade!".
Estamos, portanto, diante da necessidade da formação de um amplo movimento cívico que una o povo brasileiro em tomo de um Projeto de Reconstrução da Nação, que não deve visar o retomo ao Estado anterior mas representar um salto para a organização de um Estado de conteúdo progressista, nacional, democrático e popular. Que tenha como objetivo a retomada do crescimento econômico, com distribuição da renda. A denúncia dos acordos firmados com o FMI e a renegociação soberana das dívidas interna e externa, com vistas a assegurar recursos para o desenvolvimento do país. Que faça uma combinação, sob os interesses do país e do povo, entre o papel do Estado e do mercado no desenvolvimento. Revisão do processo de privatizações. Política industrial e agrícola de estímulo à produção nacional e ao mercado interno. Reforma agrária e política agrícola para o pequeno e médio produtor rural. Reforma tributária democrática que enfatize os impostos diretos, entre uma série de medidas para reorientar o desenvolvimento para um novo caminho, autônomo e capaz de atender aos interesses de nosso povo.
A luta contra o projeto neoliberal e a reconstrução nacional passam pela constituição de um amplo movimento político. Sem a construção de uma ampla frente política os setores populares não conseguirão apresentar uma alternativa efetiva para esta situação. Mais uma vez corremos o risco de que setores das classes dominantes assumam um discurso falsamente oposicionista para continuar no poder. A alternativa popular somente se transformará em realidade a partir da unidade dos partidos de esquerda. É necessário que cada um perceba a gravidade da situação enfrentada pelo país e coloque seus objetivos particulares subordinados ao objetivo maior de defesa dos interesses do povo brasileiro. Toma-se necessário, também, a união de amplas camadas do nosso povo, de todos aqueles que sofrem as conseqüências da atual política e querem reconstruir o país em tomo do Programa do Movimento em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho.
Aldo Arantes é advogado, membro da Secretaria Nacional da Frente de Oposição Democrática e Popular e da Comissão Política do PCdoB.
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