O artigo "New crimes against humanity: the military use of depleted Uranium weapons ", foi publicado no final do ano passado. Sua publicação naquele período parece agora premonitória, pois desde o início deste ano o problema denunciado pelo físico italiano Bruno Vitale ganhou espaço na grande imprensa internacional e no cenário político europeu. Por ironia da história não foram as vítimas civis e militares – mais expressivas numericamente que despertaram a atenção da imprensa. O fato é que apareceram com leucemia mais de uma dezena de soldados italianos e alguns soldados portugueses que integraram as forças da OTAN na Iugoslávia. Tais episódios continuam tendo desdobramentos, e têm evidenciado a impotência dos países integrantes da comunidade européia face aos Estados Unidos, que detém o controle real da OTAN.

O artigo original, em inglês, foi publicado na revista WechselWirkung, voI. 22, número 105/106, pp. 78-89, outubro-dezembro de 2000, e está disponível na Internet, no endereço: www.wechselwirkung.com. A versão que publicamos, traduzida por Olival Freire Jr., inclui a íntegra do artigo, mas não inclui apêndices com uma apresentação mais detalhada das fontes de informação, além de subsídios técnicos sobre o Urânio. Princípios agradece ao autor a autorização da publicação, e a Fernando Bunchaft a sugestão de sua tradução e publicação.
Comissão Editorial

EM RECENTE artigo sobre a guerra do Vietnã e "a excepcional crueldade de uma luta que levou à morte de 58.000 norte-americanos e mais de 3 milhões de vietnamitas", Ignacio Ramonet – diretor do Le Monde Diplomatique – escreveu: "alguns jovens 'veteranos' (entre 20 e 27 anos de idade) ao retornar da guerra adquiriram consciência de que foram levados a participar de um massacre, e através do condicionamento tinham sido desumanizados e recebido o status de 'exterminadores' criminosos. Eles agora compreendem que a Guerra do Vietnã nunca terá seu Tribunal Internacional; e que os líderes políticos e militares que ordenaram os massacres, o espalhamento de napalm, o bombardeio aéreo de populações civis, as execuções massivas nas prisões, e os desastres ecológicos provocados pelo uso massivo de desfolhantes, nunca serão julgados por uma Corte Marcial, e nunca serão condenados por crimes contra a humanidade." (1)

Essa história de horror se repetirá. Não haverá nenhum Tribunal Internacional para os novos crimes contra a humanidade perpetrados pelos líderes políticos e militares dos Estados Unidos (com a cumplicidade de seus aliados britânicos) que usaram armamentos de Urânio empobrecido (Ue)* contra o Iraque (1991) e a República Federal da Iugoslávia (1999). De fato, o comitê estabelecido, Tribunal Criminal Internacional sobre a Iugoslávia (ICTY), com a finalidade de reavaliar a campanha de bombardeio da OTAN contra a República Federal da Iugoslávia decidiu, em seu relatório final, que: "em vista do estado incerto de desenvolvimento dos padrões legais governando esta área, deveria ser enfatizado que o uso de Urânio empobrecido, ou outras substâncias potencialmente perigosas, por qualquer adversário em conflito dentro da antiga Iugoslávia desde 1991 não encontrou fundamento para qualquer acusação a ser formulada pelo Promotor. Por estas razões, a opinião deste comitê, baseada na informação disponível no presente, é que os promotores não deveriam dar início a uma investigação sobre o uso pela OTAN de projéteis de Urânio empobrecido." (2)

Parece fútil enfatizar a nova onda de sofrimento humano e ecológico que este novo tipo de "substância potencialmente perigosa" introduzirá na guerra moderna. O simples uso de armas tradicionais, sejam pequenas armas ou bombas tradicionais, é suficiente para destruir a vida humana e tomar vastas regiões do mundo impróprias para a vida. (3) Mas o desenvolvimento de novas armas, mais eficientes e mais poderosas, pelas potências que dominam nosso mundo está relacionado com o desenvolvimento de uma nova e perigosa estratégia: a guerra da "morte zero" ("zero", naturalmente, do lado do agressor; enquanto o número de vítimas militares e civis pode crescer exponencialmente), que deixa o país vencido com suas estruturas educacionais, médicas e industriais destruídas, solo e fontes de água poluídos, e uma população doente que ninguém poderá cuidar, vez que a chamada "comunidade internacional" imporia "sanções" após os ataques. Aglomerados de bombas, minas terrestres, armas Ue, … : o terror que o desfiar de tal arsenal de horrores pode criar seria suficiente para garantir o controle do mundo na "nova ordem mundial". É nesse quadro de análise que gostaria de desenvolver algumas considerações sobre os nascentes armamentos de Urânio empobrecido.

Deveríamos ser sensíveis ao fato de que o desenvolvimento dessas novas armas requer um esforço de colaboração entre instituições científicas, industriais, militares e políticas. Não podemos limitar a censura ou a responsabilidade a uma única dessas forças poderosas em nossas sociedades. Imperativos estratégicos encontram uma resposta entusiástica nas mais sujas políticas das potências internacionais, nos mais poderosos interesses industriais, e nos mais ambiciosos sonhos da comunidade científica. (4) Uma oposição ativa, polêmica e eficiente ao desenvolvimento e desdobramento de uma nova panóplia de armas deveria ser capaz de analisar e atacar todos esses ingredientes do poder juntos. Para atingir esse objetivo nós deveríamos estar equipados com informação correta e atualizada, e deveríamos tentar ir além da pura denúncia e do protesto moral. Como fazê-lo? É fácil falar, mas é difícil encontrar os caminhos da ação.

Armas de Urânio empobrecido são, certamente, somente uma pequena parte dessa estratégia de terror. Nem todos os estados que dispõem de armas nucleares declararam, de modo explícito e sem ambigüidades, apoio ao princípio de não ser o primeiro a usar tais armas. (5) O uso massivo de desfolhantes pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã nunca levou à afirmação de qualquer política de abandono desse tipo de arma, no que pese os prejuízos graves, difusos e permanentes a pessoas, agricultura, água e todo o ambiente. (6)

Por isso, se agora nos concentramos sobre as armas de Urânio empobrecido, não é para ignorar a responsabilidade grave e global que as maiores potências têm quanto ao uso de outros meios sofisticados de controle e destruição, e não é meramente para protestar. (7) É para melhor nos informarmos sobre um assunto que merece atenção vigilante no futuro, e, ao mesmo tempo, para nos fornecer indicações sobre as forças e interesses que moldam nossas vidas.

Uma última justificação para esse tipo de reflexão: nas chamadas nações "industrializadas" (ou "democráticas"), vivemos imersos em uma nuvem de referências permanentes e mesmo hipócritas aos "direitos humanos". Outros países, com sistemas sociais mais antigos, ou tentando novas estruturas econômicas, são julgados por nossos líderes e censores morais com base no critério da defesa dos "direitos humanos". Mas estas novas armas, inerentemente desrespeitosas da vida humana, promotoras do sofrimento humano e da destruição em larga escala do meio ambiente, são "erros desumanos" [em inglês o autor contrapõe "human rights" a "inhuman wrongs", jogo de sentido que não pode ser bem traduzido para o português]. Reconhecendo isso, nós cidadãos reagiríamos de modo diferente às mentiras de nossos líderes.

Urânio empobrecido e o desenvolvimento de armamentos de Urânio empobrecido

Você pode encontrar na Internet uma oferta muito cândida de objetos manufaturados com Urânio empobrecido. Na página http://www.chmz.udm.net:uran_eng.shtml, você encontrará a referência à "Joint-Stock Company Chepetsky Mechanical Plant, Laureate of Government for Quality". Essa empresa oferece blindagens confiáveis contra radiação feitas com Urânio empobrecido. Com alguma atenção você notará que o "Laureate" refere-se a um prêmio de qualidade do governo da Federação Russa, atribuído em 1998. Você saberá que um dos trunfos desta empresa é que ela "nunca recebeu reclamações de seus clientes, em toda sua história", e que ela é "parte do complexo de energia nuclear da Federação Russa".

De modo ainda mais surpreendente, você lerá nesta página que "o uso de nosso Urânio empobrecido por sua companhia será um importante passo para a produção de artigos de primeira qualidade, a exemplo de 'containers' [!], equipamentos médicos e científicos, etc", e que a empresa "está pronta para produzir a quantidade solicitada de vários artigos com Urânio empobrecido no mais curto prazo solicitado pelo cliente" .

Esta reconversão "civil" dos enormes estoques de Ue (um subproduto tanto do uso militar de Urânio "grau armamento", como do uso de Urânio "enriquecido" nas plantas de usinas nucleares), produzidos por todos os países que dispõem de artefatos nucleares, é economicamente compreensível, mas repleto de perigos. A página da Chepetsky na Internet não menciona nem a extrema toxicidade química do Ue nem sua fraca, mas não negligenciável, radioatividade. Na página dessa empresa não há uma única palavra acerca das seguintes questões: como proteger trabalhadores desses perigos, como manipular esses produtos de primeira qualidade, ou como dispor de suas partes quebradas ou descartadas.

Contudo, seria suficiente consultar documentos do Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEPIUNCHS, 1999) para ver que esses perigos são reais e razoavelmente bem conhecidos. Tais documentos dizem: "como as radiações alfa e beta têm alcance muito limitado em tecidos, a poeira ou partículas de Ue têm de ser inaladas ou digeridas para contribuir para a dose (radioativa) recebida. No caso de contaminação da pele por contato com pedaços sólidos de Ue, haverá alguma radiação beta atingindo a pele. (…) Em estudo sobre a toxicidade de curto prazo foi mostrado que o rim é o órgão alvo da toxicidade (química) do Urânio".

Os perigos dessas aplicações civis do Ue são mínimos, todavia, quando comparados com os perigos das aplicações militares na produção de armas. (8) Já é muito grande a variedade de armamentos de Ue disponíveis para países da OTAN (EUA, Inglaterra e França). Eles vão desde pontas penetrantes e partes de mísseis Cruise até balas de Ue para os aviões americanos A-10 Warthog (usados contra tanques), os helicópteros Apache, os aviões Harrier, e as blindagens usadas pelos tanques M1A1 Abrams, etc.

A principal razão para o desenvolvimento destas aplicações (além da necessidade de se dispor das milhares de toneladas do "lixo nuclear", o caro resíduo estocado por todos os países nucleares) está na densidade muito elevada do Urânio empobrecido (Ue) e na sua extrema dureza quando combinado em ligas metálicas. Estas duas características fazem do Ue um componente ideal para projéteis duros e penetrantes contra tanques blindados e fortificações militares escondidas em profundidade, e ao mesmo tempo fazem dele um componente muito poderoso para as carapaças de tanques blindados.

Por outro lado, o principal perigo do uso militar do Ue – para os seres humanos, para o solo e para o ecossistema deriva de suas propriedades químicas. Devemos lembrar que as propriedades químicas de todos os isótopos de um elemento são as mesmas, de modo que o que será dito aqui vale tanto para o Urânio "natural", quanto para o Urânio "gasto" quanto o "empobrecido" (Ue). Em 1945, a população de Hiroshima sofreu os efeitos do Urânio preparado de modo adequado para o seu uso em bombas de fissão atômica. O problema que populações inteiras estão enfrentando agora decorre do Urânio empobrecido e suas conseqüências.

“Quando um projétil de Ue atinge um objeto duro (como as placas blindadas de um tanque ou o teto de concreto de uma fortificação), ele é esmagado em fragmentos e poeira. Normalmente entre 10 e 35% (mas podendo chegar a um máximo de 70%) do projétil transforma-se em aerossol devido ao impacto ou quando a poeira do Ue é incendiada. A maioria das partículas de poeira têm menos de 5 microns de tamanho, e espalham-se de acordo com a direção do vento (…) Se a área atacada consiste de rochas ou de solo pedregoso, a maioria do Ue será esmagada e transformada em aerossol, e por isso haverá precipitação radioativa da poeira de Ue. O Urânio que escapar das partículas de poeira ou de fragmentos de UE será transportado pela água precipitada no solo ou rochas sob a forma de íons de Urânio nas águas precipitadas. Sob condições de oxidação, a maioria dos íons de Urânio estarão em forma solúvel, e poderão se mover através de ambiente e de organismos vivos". (UNEP/ UNCHS, 1999)

O tipo e a quantidade de risco – para os soldados alvo que sobrevivam à explosão e para as populações civis dependerá portanto da forma química da poluição do Ue. Quando às partículas poluídas com De nos aerossóis são solúveis em água, o Ue entra no corpo humano por ingestão.

Nesse caso, são os rins os órgãos que serão mais facilmente prejudicados pelos efeitos químicos tóxicos do Urânio. Quando essas partículas são insolúveis, o perigo vem da poeira radioativa que, entrando nos pulmões pela respiração, fica ali depositada e pode contribuir ulteriormente para o desenvolvimento de câncer dos pulmões. (9)

Michael Clark, um especialista não muito simpático com o que ele chama de "reclamações extremas" contra o Ue ("Ue não é o perigo extremamente mortal qual alguns gostariam de afirmar que é"), afirma: "qualquer fragmento (…) de Ue tem no contato uma taxa de radiação beta da ordem de 2 mSv/h. (…) A inalação ou ingestão do Ue acarretará internamente uma ampliação dessa taxa, mas o consenso médico-científico geral é que o Ue é mais um problema químico do que radiológico. Ingestão de quantidades significativas de Ue pode causar prejuízos aos rins devido à sua toxicidade química (…)". (10)

Os responsáveis pelo desenvolvimento de armamentos com Urânio empobrecido têm sempre minimizado tanto os perigos químicos quanto radioativos que o Ue cria para a população civil. Neste sentido, é particularmente interessante ler o documento oficial distribuído pelo Ministério da Defesa do Reino Unido, em 15 de fevereiro de 1999, após um incêndio em uma fábrica inglesa que manipulava o Urânio empobrecido: "Na segunda-feira, 8 de fevereiro, um incêndio ocorreu na fábrica Royal Ordnance Speciality MetaIs, em Featherstone, Staffordshire. A fábrica manipula Urânio empobrecido, e existiu inicialmente uma preocupação com a possibilidade de vazamento de radioatividade. Por esta razão os serviços de emergência orientaram os residentes locais a permanecer dentro de casa com as janelas fechadas". (11) Nenhum alerta deste tipo foi dirigido às populações civis do Iraque ou da Sérvia após o término dos bombardeios, embora ambas tenham recebido verdadeiras chuvas de projéteis com Urânio empobrecido.

As informações médicas, físicas e químicas disponíveis já há bastante tempo tomavam evidente que o desenvolvimento de armamentos de Ue seria algo desastroso; e que a caracterização de "crimes de guerra" e "crimes contra a humanidade" para o uso militar do Ue seria perfeitamente adequada, devido ao espalhamento inevitável de poeira e aerossóis com este elemento químico. Apesar disso, o desenvolvimento de armamentos com Ue começou cedo nos Estados Unidos, há cerca de duas décadas atrás. Faltam informações maiores sobre o desenvolvimento de tais armamentos por outras potências nucleares, mas podemos supor que não devem ser tão diferentes dos norte-americanos.

O desenvolvimento de tais armamentos começou cedo nos EU A. Como A. Livingstone escreve: "o uso do Ue em armas é uma solução engenhosa para o paralisante problema que a indústria nuclear tem enfrentado quanto ao que fazer com o "lixo nuclear". (12) A extensão dessa "engenhosa solução" pode ser avaliada por um documento oficial dos EUA sobre o fechamento de uma área de teste de munições de Ue no Campo de Provas Jefferson, em Indiana:

"Entre 1984 e 1994, foram conduzidos testes precisos de projéteis de Ue na região (…) Tais projéteis têm tamanho variado mas o Ue neles usado pode ser descrito de modo genérico como pedaços de uma liga de Ue e Titânio, com cerca de 2,5 cm de diâmetro e 61 cm de comprimento. Os testes com munição de Ue contaminaram uma área de 5 milhões e 100 mil metros quadrados (1.260 acres) com cerca de 70 toneladas de Ue (…) Presentemente o material liberado está mantido em uma área reservada conhecida como 'Área de impacto do Urânio empobrecido'. Esta área está localizada ao norte da linha de fogo, e consiste de aproximadamente doze milhões de metros quadrados (3 mil acres)". (13)

O fechamento deste dispositivo de teste não implica que o desenvolvimento e o teste de armamentos de Ue pararam, ou foram suspensos, nos Estados Unidos; pois, de fato:
“A Força Aérea dos EUA está reconstituindo atividades de treinamento com UE na Base Nellis no Sul do estado de Nevada. Nesta base foram retomados o emprego de balas incendiárias perfurantes de 30 mm de Ue. Esta é a única área de ensaio como alvo para armamentos ar-terra, autorizados para o uso de Ue nos Estados Unidos". (14)

Após o desenvolvimento e os testes, os militares precisavam de um teste de campo, em uma batalha real, contra pessoas reais, o que levou ao uso das munições de Ue tanto na Guerra do Golfo quanto nos bombardeios da OTAN contra a Iugoslávia.

A utilização dos armamentos de Urânio empobrecido contra o Iraque durante a Guerra do Golfo (1991)
Armas com Ue foram usadas abertamente pela primeira vez na Guerra do Golfo. De acordo com a Associação Americana dos Veteranos da Guerra do Golfo, centenas de toneladas de munição empregando Ue foram usadas contra a artilharia e veículos blindados do Iraque. (15) Os veteranos estimam que cerca de 600 mil soldados da coalizão ocidental foram expostos ao Ue no Golfo.
Existe hoje uma crescente literatura sobre as "doenças da Guerra do Golfo" entre soldados da aliança ocidental contra o Iraque. Doenças cujas causas incluem, pelo menos parcialmente, os efeitos de longo prazo da exposição ao Ue. Por exemplo: Como resultado dos incidentes com 'fogo amigo' durante a Guerra do Golfo Pérsico, o Departamento de Defesa dos EUA relatou que munições de Ue atingiram um certo número de veículos de combate Bradley e tanques Abrams. Os incidentes com 'fogo amigo' mataram 13 soldados e feriram muitos mais. O número total de soldados feridos por Ue não é conhecido; contudo os serviços médicos do Exército identificaram 22 soldados cujos registros médicos indicam que eles absorveram fragmentos que podem ser de Ue (…)

Embora os veteranos com' absorção de fragmentos tenham elevados níveis de Urânio na urina, pesquisadores até agora não encontraram efeitos adversos à saúde relacionados à radiação oriunda do Ue. Contudo, várias perturbações em testes bioquímicos e neuropsicológicos apresentam correlações com Urânio urinário elevado, ainda que significado clínico destes dados não seja claro". (16)

Por outro lado, não tem existido nenhuma tentativa séria de estudar os "efeitos adversos à saúde" nos milhares de soldados iraquianos que foram expostos diretamente aos projéteis de Ue (se e quando eles sobreviveram), nem nos milhões de iraquianos que foram poluídos com inalação e ingestão de aerossóis e poeira de Ue. É verdade que os possíveis efeitos negativos da poluição com Ue são difíceis de ser separados das várias outras ameaças à saúde enfrentadas atualmente pela população iraquiana, das quais podemos citar a poluição industrial devido à destruição dos poços e refinarias, a falta de estruturas hospitalares adequadas, as dificuldades na provisão de medicamentos como decorrência do bloqueio imposto pelos EUA e pela Inglaterra, etc. Uma investigação sobre a mortalidade infantil, realizada pela UNICEF, mostrou que as taxas de mortalidade no Iraque cresceram de 5,4 e 6,7% no período 1979-1984, para 10,8 e 13,1 % em 1994-1999. (17)

Um conjunto coordenado de projetos internacionais deveria ser deslanchado para estimar o nível de poluição com Ue no Iraque, seus possíveis efeitos adversos à saúde, e a ajuda necessitada pela população do Iraque. Algumas poucas iniciativas internacionais já começaram a coletar informações, bem como urina, sangue, dentes e amostras de cabelos para que se possa testar seu conteúdo isotópico de Urânio e deste modo a possível presença do Ue. (18) A base desses testes é que existe uma absorção constante de Urânio "natural" pelo nosso corpo, e uma correspondente vida média biológica metabólica para sua eliminação, mas não existe nenhuma absorção regular de Ue oriundo do ambiente, exceto de armas com Ue ou da manipulação de materiais com Ue. Estas iniciativas não são suficientes. Dez anos já se passaram desde a Guerra do Golfo. É o momento de se estudar os efeitos de longo alcance do uso do Ue entre os soldados e a população civil. Dados confiáveis, cuidadosos e bem documentados seriam de crucial importância para uma campanha internacional eficaz visando a definitiva proibição das armas com Ue.

O uso de armamentos com Urânio empobrecido no Kosovo e na Sérvia durante a guerra da OTAN contra a República Federal lugoslava (1999)

Em uma carta datada de 7 de fevereiro de 2000 (quase um ano depois do início dos bombardeios sobre a Iugoslávia), o Secretário Geral da OTAN, G. Robertson, confirmou para o Secretário Geral da ONU, Kofi Anan, que armamentos de Ue tinham sido usados pela OTAN:
"Balas de Ue foram usadas pelas Forças Aliadas. Elas foram usadas em Kosovo em aproximadamente 100 missões. Estas balas usam um dispositivo com elevada capacidade de penetração, feitas com Ue, um subproduto não crítico do processo de enriquecimento do Urânio. Os armamentos A-l O usaram estas munições como parte de sua carga padrão. Um total de 31.000 balas de munições feitas com Ue foram usadas em operações das Forças Aliadas. Os principais focos dessas operações foram a área a oeste da rodovia Pec-Dakovica-Prizren, a área envolvendo Klina, a área em torno de Prizren e a área ao norte de uma linha ligando Suva Reka e Uroseva. Contudo, muitas missões usando Ue também aconteceram fora dessas áreas. Neste momento é impossível identificar com precisão todas as áreas onde se usou munição de Ue". (19)

Notícias sobre o uso de bombas de Ue na Iugoslávia (em particular em Kosovo), já eram conhecidas dos meios de comunicação. A. Kirby, da BBC, por exemplo, publicou matérias bem documentadas sobre o assunto. (20) Contudo, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEPIUNCHS), associado à Força Tarefa dos Balcãs, em sua avaliação preliminar dos "efeitos potenciais sobre a saúde humana e o ambiente derivados do possível uso de Urânio empobrecido durante o conflito de Kosovo em 1999" [Outubro de 1999, cinco meses depois do fim dos bombardeios], foi ainda obrigado a afirmar que: "(…) não existe nenhum documento oficial confirmando que Urânio empobrecido, foi, ou não foi, usado no conflito de Kosovo". E disse mais: "A falta de confirmação oficial, pela OTAN, de que Urânio empobrecido tenha sido, ou que não tenha sido, usado, distorce os pré-requisitos deste estudo." (UNEPIUNCHS, 1999, 1999a e UNEP, 1999)

Deste modo, uma Força Tarefa oficial das Nações Unidas teve de esperar até 7 de fevereiro de 2000 para ser informada sobre um importante aspecto da ação de guerra que havia sido deslanchada em março de 1999 com o consentimento e como parte da política das próprias Nações Unidas (este é pelo menos o folclore divulgado pelos meios de comunicação!).

As conseqüências humanas e ambientais do uso de armas de Ue na Iugoslávia são ainda largamente desconhecidas. Não se sabe qual o grau de consciência que as populações da Sérvia e do Kosovo têm dos perigos que correm ao manipular peças quebradas de Ue ou inalar poeira em regiões poluídas pelas explosões com Ue. O Ministro da Defesa do Reino Unido tem expressado preocupações: "existem diversos modos pelos quais soldados do Reino Unido ou civis podem ter se exposto ao Ue durante ou depois desses conflitos. O risco mais provável acontece se pessoas entram em regiões contaminadas por munições de Ue (…) pessoas visitando ou trabalhando em Kosovo, a exemplo de agências de imprensa e de ajuda humanitária [parece que os kosovares não são muito considerados como 'pessoas que trabalham em Kosovo'], deveriam buscar orientação das autoridades competentes sobre as áreas de contaminação, e evitar perturbá-las. Se o acesso a áreas potencialmente contaminadas for considerado essencial, então orientação adequada sobre as medidas de proteção necessárias deve seu buscada junto às autoridades". (21) Quão distante estamos do tom tranquilizador do relatório de Harley para a RAND!

Conclusão: perspectivas para a ação

As conclusões da "testemunha hostil" do relatório da RAND que citei com freqüência neste texto não deixam espaço para muito otimismo:
"Concluindo, o uso de munições e blindagens de Ue deve se expandir nos próximos anos, tanto nas forças armadas dos Estados Unidos quanto de outros países. Por isso, é importante continuar a pesquisa para aumentar o nosso conhecimento sobre quaisquer riscos potenciais para a saúde que possam resultar da exposição ao Urânio empobrecido". (22)

Note-se, de início você desencadeia um programa para expandir largamente os armamentos com Ue, e depois, se e quando possível, você desenvolve um programa de pesquisa para saber quais seriam seus riscos para a saúde!

A oferta da Chepetsky para oferecer "produtos de primeira qualidade de Ue", usando o Ue oriundo do complexo nuclear da Federação Russa, parece significar que seremos confrontados no futuro com um mercado de mercadorias civis que, analogamente, se expandirá largamente. Isto também vai requerer vigilância e cuidadoso acompanhamento, mas a grande expansão de armamentos de Ue é, certamente, algo muito mais perigoso. Seu uso na guerra moderna nos lembra a antiga técnica da terra arrasada, executada pelo inimigo após a vitória; além da simbólica, e talvez eficiente, velha técnica de cobrir a terra com sal, para tomá-la infértil. O desenvolvimento das munições de Ue pode ter sido sugerida pela alta densidade e dureza do Urânio empobrecido, mas como evitar a suspeita de que as graves conseqüências de seu uso (terras poluídas quimicamente por anos, terras poluídas por radioatividade por séculos) não tenham jogado um papel importante nesta escolha estratégica? Aerossóis tóxicos e poeira radioativa são muito mais eficientes que sal!

A pura denúncia desses fatos é algo certamente deprimente; deveríamos fazer mais. Armas de Ue não descem sobre nós dos céus. Elas são ativamente pesquisadas por cientistas, testadas por militares, produzidas por operários em nossas fábricas, usadas por soldados em nossos exércitos. Como tratar a arrogância de cientistas em seus laboratórios fechados? Como tratar sindicatos e operários, interessados em garantir seus empregos, mesmo quando eles produzem bombas nucleares, de napalm, de fragmentação e de Urânio empobrecido? Como tratar as pessoas que estão à nossa volta, tomando-as conscientes do que está sendo preparado para todos nós?

Bruno Vitale é físico aposentado da Universidade de Nápoles. Trabalhou também como físico teórico no laboratório do CERN, em Genebra. O texto foi traduzido por Olival Freire Jr.

Notas

(1) «Filmer le conflit du Vietnam». Le Courrier (Genebra), 28 abril 2000.
(2) ICTY (2000): Relatório final ao promotor, elaborado pelo comitê criado para reavaliar os bombardeios da OTAN contra a República Federal da Iugoslávia. Tribunal Criminal Internacional para a antiga República da Iugoslávia, 2 de junho de 2000, secção Aii (www.un.org/icty Ipressreal/nato061300.htm). Este documento, no seu conjunto, deveria ser considerado cuidadosamente, pois ele absolve todos os possíveis crimes cometidos durante a guerra da OTAN : «[O comitê] tendeu a assumir que as declarações à imprensa, emitidas pela OTAN e pelos países da OTAN, são, em geral, confiáveis, e que as explicações foram dadas com honestidade (…) O comitê não tem falado para aqueles envolvidos em dirigir ou realizar os bombardeios (…) A OTAN tem admitido que erros ocorreram durante os bombardeios; erros de apreciação podem também ter oconido. A seleção de certos objetivos para ataque pode estar sujeita a debates legais. Com base nas informações reexarninadas, contudo, o comitê é de opinião que não se justifica nem uma investigação em profundidade relacionada aos bombardeios como um todo, nem investigações relacionadas a incidentes específicos (…) Com base na informação disponível, o comitê recomenda que nenhuma investigação, relacionada aos bombardeios ou incidentes durante a campanha militar, sej a começada» (Recomendações finais).
(3) Conforme o ICTY – veja nota (2) – os bombardeios da OTAN na Sérvia deixaram pelo menos 495 mortos 820 feridos dentre os civis.
(4) Eu tentei desenvolver esta análise, que privilegia o paradigma das " instituições científicas ", ao invés daquele da " ciência", na interface política – indústria – ciência em países capitalistas, em dois artigos, de certo modo antigos, publicados em WechselWlfkung: B.Vitale: Der letze Streich; Die Neutronenbombe. WechselWlfkung, Febmar 1982; Wie man ein Netzwerk von Freunden bildet; Die Rolle der Wissenschaftier irn modemen Krieg. WechselWlfkung, Febmar 1984.
(5) Veja, por exemplo, o "NATO Alliance Strategic Concept" (www.state.gov/www/ regions/eur/nato), aprovado pelos chefes de Estado e governo, em 24 de abril de 1999 (Conferência de Cúpula de Washington, por ocasião do 50° auiversário da OTAN). Nenhum "compromisso de não ser o primeiro a usar" armas nucleares será encontrado neste documento, ao contrário, no parágrafo 62 se lê: 'lhe fundamental purpose of the nuclear forces of the Allies is political: to preserve peace and prevent coercion and any kind ofwar … "; parágrafo 63: " … Nuclear forces based in Europe and conrmitted to NATO provide an essential political and military link between the European and the North American members of the Alliance"; parágrafo 64: " … NATO will maintain, at the minirnum levei consistent with the prevailing security environrnent, adequate sub-strategic forces based in Europe which will provide an essentiallink with strategic nuclear forces, reinforcing the transatlantic link".
(6) Durante a Guerra do Vietnã, mais de quarenta milhões de litros de desfolhantes foram espalhados sobre campos e florestas. Quase 213 disso foi de "Agente Laranja", uma mistura de dois herbicidas (2,4-D and 2,4,5- T), contendo dioxina. Como lembrança dos poderosos interesses industriais na guerra moderna, note que o "Agente Laranja" foi produzido principalmente pela Dow Chemical, Monsanto e Uniroyal. Veja, em especial: ASchecter: Agent Orange anil the Viêt-namese. American J.of Public Health, april1995.
(7) Contudo, devemos lembrar do importante "Protest and survive" de E.P.Thomson (London: Penguin, 1980), um livreto que jogou um papel importante durante os protesto europeus contra os Mísseis Cruse e Pershing.
(8) O apêndice 5 de UNEPIUNCHS (1999) fornece preciosa informação sobre o desenvolvimento do uso militar de munições de Ue. Ver, também, Military use of depleted Uranium, in WISE (2000), bem como Zajic (2000).
(9) Ver, por exemplo: Depleted Uranium. Ministry of defence, U.K.,july 1999 (www.nrpb.org.ukID-uran.htrn).
(10) Michael Clark: Depleted Uranium. Radiological Protection Bulletin, no.218, december 1999. Deve ser notado que "um único dia de contato da pele com uma fonte de 2 mSv/h é equivalente à dose máxima de radiação aceitável durante todo um ano", afirma um especialista do British National Radiological Protection Board citado pelo" The New Scientist "(1 may 1999). Por outro lado, um raio-X do tórax tem uma dose de radiação de cerca de 0,02 msv; por isso, uma hora de contato com a pele com tal fonte de UE equivale a quase 100 exposições de raios- X no tórax.
(11) Ministry of defence, U.K., february 15, 1999 (www.nrpb.org.ukJR2-99.htrn).
(12) H.Livingstone: Depleted Uranium weapons, in WlSE (2000).
(13) [V.S.] Federal Register, december 16, 1999; ver "Deconrmissioning ofD.U. munitions test area at Jefferson Proving Ground (Indiana)", Current issues – Depleted Uranium weapons, in WlSE (2000).
(14) Ver "Resumption of use of D.U. rounds at Nellis Air Force Range, Nevada", Current issues – Depleted Uranium weapons, in WlSE (2000). (15) Ver www.gulfwarvets.com; outras importantes fontes são: The Military Toxics Project: "Radioactive battlefields of the 1990s", january 16, 1996, in WlSE (2000); lShirley:
"Nukes ofthe GulfWar", 1996 (www.parascope.com/articles);RFisk: 'lhe evidence is there; We caused cancer in the Gulf', The Independent, october 16, 1998; U.S.Defense Departrnent: "Annual report by the Office of the Special Assistant to the Deputy Secretary of Defense for GulfWar illnesses", november 1998 (www.gulflink.osd.mil/library/annual); Millistry ofDefence, U.K. (1999); Harley et al (1999); D.Fahey: "Depleted Uranium weapons; Lessons from the 1991 GulfWar", in WlSE (2000).
(16) Harley and al (1999).
(17) "Child and maternal mortality survey, 1999; Preliminary report". UNICEF – Iraq Ministry of Health,july 1999.
(18) Uma interessante e crescente iniciativa neste sentido é aquela do grupo italiano "Un ponte per l'lrak"; www.unponteper.eu.org.Um certo número de ONGs organizou, em 18 de agosto de 1999, na sede da ONU em Genebra, uma mesa redonda sobre a situação da saúde no Iraque, em especial sobre as consequências da poluição do Ue. Desta reunião foi publicado o documento: "L'assassinat d'un peuple" (O assassinato de um povo)
(19) Citado em: "Current issues: Depleted Uranium weapons, Depleted Uranium use in Kosovo", in WlSE (2000).
(20) AKirby: BBC News, 9 abril, 5 maio, 6 junho, 7 junho, 1999.
(21) "Depleted Uranium", Millistry ofDefence, U.K., july 5, 1999
(22) Harley et al (1999).
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Nota do tradutor: o Urânio, que é um mineral naturalmente radioativo, é encontrado na natureza em uma mescla de três isótopos: U[234], U[235] e U[238]. O processo de enriquecimento do Urânio para uso como combustível em reatores ou como material físsil para bombas atômicas implica alterar a composição isotópica do minério. O termo Urânio empobrecido (Ue) designa o subproduto obtido quando deste processamento.

EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83