Aviões e helicópteros militares estadunidenses sobrevoam Nairóbi em direção à vizinha Somália, em ação que faz parte de mais uma agressão imperialista. Embaixo, com os pés em território africano, milhares de ativistas e intelectuais discutem os caminhos da luta antiimperialista e as alternativas ao neoliberalismo. Trata-se da sétima edição do Fórum Social Mundial (FSM/2007). Realizado em Nairóbi, de 20 a 25 de janeiro na capital da República do Quênia, ele contou com 46 mil inscritos e mais de mil e duzentas atividades.

Em 2006 o FSM experimentou um formato policêntrico, e aconteceu em três continentes: América Latina, África e Ásia. Mais precisamente em Caracas (Venezuela), Bamaco (Mali) e Carachi (Paquistão). Com exceção de Bamaco, nas edições de Porto Alegre em 2001, 2002, 2003 e 2005 (Brasil) e de Mumbai (Índia) em 2004, a presença africana nos fóruns mundiais unificados não foi grande. No 1º FSM havia somente três dezenas de pessoas, mas nunca passou de 500. Em Bamaco, havia 30 mil e em Nairóbi um número ainda maior. Mais de dois terços dos países africanos participaram do Fórum em Nairóbi.

O FSM na África

A grande marca vitoriosa do FSM/2007 é o fato de ter sido realizado no continente africano, ampliando a mundialização iniciada em Mumbai. Não obstante a África ter feito o Fórum de Bamaco e fóruns nacionais em mais de vinte países, a realização do FSM unificado na África foi importante, pois o FSM nasceu euro-americano e precisa radicar-se em todos os continentes. Os movimentos sociais, as campanhas e redes internacionais puderam fortalecer seus laços com as organizações africanas.

Nesse sentido, pode-se dizer que o FSM se fortalece a cada ano. Assim como em Mumbai, onde aconteceram belíssimas demonstrações político-culturais indianas e asiáticas, as expressões culturais africanas foram parte do exuberante espetáculo, com muitas marchas e protestos combativos, animados com música, dança, tecidos coloridos e miçanga.

Quem mais ignora tudo isso é a mídia em geral, mas especialmente a brasileira. O interesse deveria ser natural, pois o FSM nasceu no Brasil, mas é revoltante a (falta de) cobertura. E quando há notícia é para desinformar e distorcer o sentido da luta dos povos que se expressa no FSM.

De outro lado, houve uma queda no número de participantes, que vinha crescendo ano a ano até 2005, quando atingiu os 200 mil. No Fórum de Nairóbi houve debates de qualidade, mas menos politização que os anteriores, e menos gente participando. No Acampamento Intercontinental da Juventude somente alguns jovens pingados, muito poucos. O desafio de popularizar o FSM ainda é vigente. Ainda não há dados sobre Nairóbi, mas quem viu sabe que o desafio permanece. Segundo uma pesquisa do Ibase sobre o FSM/2006, um quarto dos participantes em Bamaco havia cursado – ou estava cursando – mestrado ou doutorado. Em Caracas, 79,4% cursavam ou já haviam completado o ensino superior (1).

No Quênia os movimentos sociais e as forças políticas de esquerda e progressistas, se comparadas com o Brasil ou a Índia, são fracos. Destacaram-se as ONGs de cooperação internacional e as entidades ligadas às igrejas católica e evangélica, como a Cáritas Internacional. Havia mais de 4 mil igrejas locais africanas presentes.

As diferenças políticas e de concepção existem e fazem parte da amplitude e da diversidade do processo FSM. O Fórum de Mumbai e o Fórum de Caracas – realizado em conjunto com o Fórum Social das Américas – foram mais politizados e levantaram com força a nova luta antiimperialista e a alternativa socialista para o século XXI. Talvez, pelo mesmo motivo, não contaram com os dólares e euros das agências e fundações de cooperação internacional. Não foi o que ocorreu com o Fórum de Nairóbi, no qual certo tipo de ONGs e seus financiadores compareceram, física e financeiramente falando. Segundo Cândido Gribowski, do Ibase, essas ONGs quenianas “formaram uma elite que circula nas Nações Unidas, Banco Mundial, agências de cooperação etc (….) e sofrem uma crítica muito dura” em seu próprio país. Para Cândido, nem todas as ONGs são desse tipo. Há outras, como as “ONGs de militância” (2).

Algumas polêmicas do processo FSM

Há quem diga que o FSM está ou pode entrar em crise. São dois os perigos identificados: transformar-se apenas em mais um evento rotineiro e/ou entrar em decadência por não ser capaz de unificar-se em torno de alternativas concretas para construir um “outro mundo possível”.

Para Francisco Withaker, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB, “alguns que afirmam que o alteromundialismo está em refluxo, estão fazendo referência ao estado dos movimentos sociais que defendem essa visão”, mas o FSM “não está em refluxo” (3). Ele tem certa razão, se se levar em conta uma certa corrente política, os autonomistas. Na virada do século, os movimentos liderados pelos autonomistas, especialmente na Europa e na América do Norte, tiveram grande protagonismo e foram a face mais visível do complexo “movimento antiglobalização”. Mas, apesar do refluxo relativo dos autonomistas, o movimento antiimperialista e de contestação à globalização neoliberal se desenvolveu – e está em ascensão.

De fato, desde 2001 – quando surge o FSM – a situação internacional vem mudando, e o FSM espelha o contexto em que está inserido. Portanto, o FSM também está em mutação, discutindo alternativas concretas, indo além da resistência. Ele cresceu, não é mais apenas o anti-Davos, passa agora a realizar encontros mundiais bienais. É um verdadeiro processo de âmbito internacional, mas também continental, nacional e local. Justamente aí pode estar a sua contradição, se ele não acompanhar essa evolução, essa onda antiimperialista, a nova situação da América Latina e os novos debates sobre o socialismo do século XXI. Se o FSM deixar de refletir essa nova realidade da luta dos povos, pode, sim, entrar em crise.

Outro debate importante presente em todos os FSM é sobre o poder. Ao contrário do que pensa John Holloway – sociólogo escocês radicado no México e ideólogo dos autonomistas –, não é possível mudar radicalmente o mundo sem conquistar o poder. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, durante uma reunião de movimentos sociais no Fórum de Caracas, disse que o FSM deve debater, discutir, estudar e fazer propostas, mas que somente isso não é suficiente. Chávez defendeu a unidade entre governos revolucionários e progressistas, partidos e movimentos sociais para fazer o principal: “conquistar poder, acumular poder, ter estratégia de poder, pois só com poder revolucionário se transforma o mundo” (4). Politizar é discutir o poder político, econômico, militar, midiático etc, e lutar pelo poder dos trabalhadores e do povo.

Outra polêmica: o papel do FSM e sua relação com os movimentos sociais. Segundo Irene Leon e Sally Burch, do Conselho do Fórum Social das Américas, o FSM, para não se limitar a eventos desconectados entre si, precisa ser um processo em que “o acúmulo obtido até agora sirva de plataforma ampla para novas iniciativas, e siga contribuindo para a construção de um ator social e político plural que encaminhe as mudanças de fundo e as alternativas” (5). E, para Rafael Alegria, hondurenho da Via Campesina, “não é o objetivo, nem corresponde ao FSM definir as estratégias. O movimento social, em nível local, nacional, regional e mundial, é quem deve impulsionar suas lutas e reivindicações. Não é o FSM que luta pelas mudanças, mas os movimentos que o integram” (6).

A participação dos movimentos sociais no FSM contribui para que este tenha uma marca mais combativa, mais dinâmica e politizada. Eles levam a vivacidade das ruas para os debates do fórum e contribuem para que este seja um grande espaço de elaboração de propostas programáticas e de articulação de organizações de distintas naturezas.

Os movimentos sociais no FSM

Na última edição do Fórum Social Mundial realizado no Quênia, a articulação dos movimentos sociais teve destaque e trouxe novidades. Fora o rico
contato com os movimentos sociais africanos, um evento de grande significado foi um encontro sobre trabalho e globalização, que reuniu o movimento sindical, outros movimentos sociais e centros de pesquisa para retomar a temática do trabalho. Nele se constituiu uma rede internacional para discutir o trabalho, importante iniciativa, pois reforça um tema muitas vezes ausente no Fórum. Esta rede pode contribuir para resgatar o protagonismo das lutas dos trabalhadores contra a globalização neoliberal. Trabalhadores estes que são a força-motriz das revoluções sociais.

De igual maneira merecem destaque: a assembléia dos movimentos contra a guerra e a Assembléia dos Movimentos Sociais, uma das maiores já realizadas, que, em sua declaração, destaca o novo cenário existente na América Latina e o papel dos movimentos sociais na implementação de alternativas concretas à ordem neoliberal.

Há algumas novidades na metodologia e no programa que nos fazem refletir sobre os movimentos sociais no processo FSM. A primeira incluiu no quarto dia de programação assembléias por áreas temáticas para que os movimentos pudessem organizar suas agendas e suas campanhas; a segunda, o fato de que em 2008 o FSM terá o formato de uma jornada mundial de mobilizações e ações visíveis.

No que diz respeito à primeira, tal iniciativa até pode contribuir para melhorar a metodologia do FSM, mas cabe refletir se é realmente papel do Fórum programar tais iniciativas, ou se são os próprios movimentos que, a partir da sua necessidade, devem se organizar. Independente disto é necessário afirmar que tais encontros por área temática não substituem uma grande assembléia geral dos movimentos sociais, que proporciona um espaço de convergência de lutas, alianças entre campanhas; convoca mobilizações; posiciona-se; e organiza ações durante o ano. Este espaço é a Assembléia dos Movimentos Sociais, que vem sendo organizada desde a primeira edição do FSM.

É preciso fortalecer a Assembléia dos Movimentos Sociais

A Assembléia dos Movimentos Sociais “é um processo destinado a romper o isolamento das lutas, e acumular forças e a construir articulações (…) com o fim de, respeitando a autonomia de todos, definir eixos de trabalho comuns, acordos, agendas, calendários e campanhas concretas” (7). Foi sempre a partir do espaço gerado pela Assembléia que os movimentos organizaram lutas e se posicionaram com declarações como as que convocaram as vitoriosas jornadas de luta contra a Alca, ou como a histórica manifestação contra a guerra em 15 de fevereiro de 2003, que reuniu milhões de pessoas nas ruas de todo o mundo.

Principalmente para enfrentar a segunda novidade metodológica – a realização em 2008 no lugar do FSM unificado de uma jornada mundial de mobilizações e ações visíveis – é que é necessário pensar o papel a ser jogado pela Assembléia dos Movimentos Sociais.

A jornada de mobilizações de 26 e 27 de janeiro de 2008 será exitosa se os movimentos sociais dedicarem esforços a esta iniciativa. É notória a necessidade da existência de um nível maior de coordenação entre os movimentos sociais em nível mundial. A Assembléia dos Movimentos Sociais deve superar seus limites e enfrentar os debates existentes no seu interior para contribuir com este desafio. Não será possível desenvolver tão ousada iniciativa se não existir um envolvimento maior dos movimentos sociais, bem como uma forma de articulação entre eles que não se resuma a encontros esporádicos.

No início de outubro de 2006 aconteceu em Bruxelas (Bélgica), um importante seminário de movimentos sociais participantes do FSM, que constroem a Assembléia de Movimentos Sociais. O debate passou pela necessidade de constituir um espaço permanente de coordenação dos movimentos e pela questão de qual a relação existente entre este e o Fórum Social Mundial.

Não se trata de querer construir um outro espaço ou estrutura para substituir o FSM, pois a Assembléia somente existe porque existe o FSM, e este último não necessita se transformar em um movimento com um programa ou uma agenda de mobilizações, ele deve continuar sendo o que é: “um espaço aberto e em expansão”. Mas os movimentos devem analisar a possibilidade de constituir uma articulação permanente entre si. Isto somente tem a agregar na dinâmica do FSM, e inclusive está previsto em sua Carta de Princípios, quando esta diz: [o FSM é um] “espaço de articulação, busca fortalecer e criar novas articulações nacionais e internacionais entre entidades e movimentos da sociedade civil” (8).

A Assembléia dos Movimentos Sociais – que já passou por uma experiência inicial de se articular como uma Rede Mundial dos Movimentos Sociais – ainda é, com todas as limitações existentes, o principal ponto de convergência e coordenação entre os diversos movimentos sociais em nível mundial. Tal iniciativa não é fácil, pois se busca encontrar uma forma aberta, democrática, e flexível de organização e coordenação, respeitando o tempo e a dinâmica de cada movimento participante, dado que existe uma grande diversidade de organizações, lutas e orientações políticas que requer um tempo para conseguir estabelecer uma relação de unidade e de confiança.

Uma experiência similar de convergência de movimentos de distintas naturezas é a Aliança Social Continental (ASC). Nascida das lutas contra o “livre comércio”, cresceu embalada na articulação da campanha contra a Alca. Há mais de 10 anos ela se encontra em atividade constante e se torna hoje uma experiência inédita na unidade de ação entre os movimentos sociais das Américas. Nos marcos da luta em conjunto produziu-se um amadurecimento na relação entre os movimentos e ONGs que compõem a ASC que permite hoje uma trabalho coeso entre seus membros. Sua agenda de ações passou pela liderança da vitoriosa campanha de lutas contra a Alca. E hoje a ASC é a principal referência dos movimentos sociais na interlocução com os governos progressistas da região no debate sobre o processo de integração latino-americana.

Claro, não poderíamos transpor realidades, mas a existência hoje da ASC demonstra ser possível construir uma aliança internacional de movimentos que, mesmo com naturezas distintas, tenham em comum uma agenda de lutas antineoliberais e antiimperialistas, e uma coordenação estável. Esta seria uma grande contribuição do processo do FSM para a luta dos povos.

O processo FSM nos próximos anos

Logo após o Fórum de Nairóbi, houve uma reunião do Conselho Internacional do FSM em que se decidiu realizar a próxima edição mundial do Fórum somente em 2009, em local a ser definido. Nela, foi apresentada e defendida pela UNE, pelo Cebrapaz e a Clacso, a proposta de realizar o FSM/2009 no Brasil, trazendo novamente o Fórum para a efervescente América Latina.

Em 2008 haverá mobilizações, eventos e fóruns no período do Fórum Econômico de Davos e em 26 e 27 de janeiro uma grande manifestação mundial, que provavelmente no Brasil ocorrerá durante o 3º Fórum Social Brasileiro. Antes disso, ainda em 2007, acontecerão o inédito Fórum Social dos EUA, o 2º Fórum Social Nordestino e está para ser marcado o 3º Fórum Social da Tríplice Fronteira, envolvendo Argentina, Paraguai e Brasil, entre outras atividades do processo FSM.

Ricardo Abreu (Alemão) é economista, membro do Conselho Diretor do Instituto Maurício Grabois (IMG) e do Comitê Central do PCdoB. Rubens Diniz é psicólogo, diretor do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) e da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB.

Notas

(1) “Raio X da participação no Fórum Policêntrico 2006”, pesquisa realizada pelo Ibase.
(2) Entrevista de Cândido Gribowski, do Ibase, a Renato Rovai, da revista Fórum, em 21/01/2007.
(3) Entrevista de Francisco Whitaker, da CBJP da CNBB, a Sergio Ferrari, da RECOSUR.
(4) Intervenção de Hugo Chávez em reunião com movimentos sociais durante o Fórum de Caracas, em janeiro de 2006.
(5) “Ecos do Fórum Social de Nairobi”, artigo de Irene León e Sally Burch publicado pela ALAI.
(6) “Qual o futuro do FSM?”, entrevista com Rafael Alegria, da Via Campesina, publicada pela Adital.
(7) Síntese de Seminário dos Movimentos Sociais, realizado em Bruxelas, em outubro de 2006.
(8) Carta de Princípios do Fórum Social Mundial.

EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 63, 64, 65, 66, 67