O ataque “preventivo” colombiano a um acampamento das Farc em território equatoriano, às 00h25min do passado 1º de março, com apoio do Comando Sul dos EUA, foi uma operação militarmente premeditada e politicamente calculada. Tinha alvo certeiro: pôr na defensiva ou impor recuos à tendência progressista e antiimperialista que avança na América Latina.

A deflagração de uma guerra na América do Sul seria, sob todos os ângulos, o pior dos cenários que poderia se apresentar para o desenvolvimento da tendência progressista e antiimperialista no subcontinente.

Certamente, no pior cenário desenhado como resultante da agressão colombiana, poderia deflagrar uma guerra com o Equador – num conflito com potencial para envolver a Venezuela e até o Brasil, dadas as possibilidades de provocações e transbordamento e o fato de ambos países possuírem imensa, e pouco guarnecida, fronteira com a Colômbia.

Além disso, seria uma guerra com a participação direta dos Estados Unidos, dado o irrestrito apoio político, econômico e militar oferecido pelo governo Bush a Álvaro Uribe. Neste episódio da violação do território equatoriano, Bush foi o primeiro – e ao que consta único – governante do hemisfério a apoiar reiteradamente o ato, sem qualquer ressalva.

A ameaça de guerra foi dissipada após forte tensão, através de acordo ao qual se chegou entre os países latino-americanos, no âmbito do Grupo do Rio – que depois se repetiu em termos semelhantes na OEA.

O impedimento do conflito, pela via política e diplomática, foi uma vitória dos povos da América Latina e de suas representações políticas e sociais mais avançadas, pois a estas, absolutamente, não interessa a hipótese de uma guerra entre dois ou mais Estados nacionais na América do Sul. Uma guerra na região representaria um duro golpe ou mesmo um golpe de morte na integração sul e latino-americana, justamente quando são mais favoráveis as condições a seu aprofundamento.

A costura da paz começou logo no dia 5, numa reunião extraordinária dos embaixadores na OEA (Organização dos Estados Americanos). Nela, foi reafirmado “o princípio de que o território de um Estado é inviolável”. Mas diante da não condenação explícita da Colômbia, a tensão permanece. Logo em seguida, no dia 7 – aproveitando a coincidência de uma reunião pré-agendada do Grupo do Rio em Santo Domingos, um mecanismo de consulta política entre países da América Latina –, uma Declaração dos presidentes “rechaça a violação à integridade territorial do Equador”, por “qualquer que seja o motivo” . Registra, ainda, as desculpas e o compromisso de Uribe “de que esses fatos não irão se repetir no futuro em nenhuma circunstâncias” – um jogo de cena. Dias depois, o ministro da Defesa colombiano, deixando a diplomacia de lado, declara que o país agirá contra “objetivos militares legítimos” estejam onde estiverem.

O rechaço dos chefes de Estados latino-americanos também se imporia na OEA – tradicionalmente uma instituição hegemonizada e controlada pelo Departamento de Estado norte-americano, homologadora de golpes de Estado e invasões imperialistas ao longo da história da América Latina. Na reunião de chanceleres da OEA, dia 17 – convocada já pela reunião do dia 5 –, decide-se respaldar os termos do Grupo do Rio. Assim, a declaração da OEA decide “rechaçar a incursão” colombiana.
Diante da união latino-americana – que atuou “como um time”, nas palavras do chanceler venezuelano – restou apenas ao embaixador estadunidense na OEA marcar posição contra a resolução e, isolado, defender seu aliado Uribe e a política das guerras preventivas.

O fato é que houve um explícito e inequívoco isolamento da posição colombiano-estadunidense. A própria Secretária do Departamento de Estado norte-americano, Condolezza Rice, às pressas e às vésperas da reunião de chanceleres na OEA, organizou um périplo pela região tentando, inutilmente, convencer os latino-americanos a aceitar o inaceitável: admitir agressões externas a seu território caso o pretexto fosse o de atacar “terroristas”. O argumento “jurídico” estadunidense-colombiano se apoiava nas resoluções 1368 e 1373 do Conselho de Segurança da ONU, aprovadas a toque de caixa na esteira da comoção mundial pós-11 de setembro, que autorizaram a invasão norte-americana ao Afeganistão.

Para os latino-americanos, aceitar a tese equivaleria a legitimar tardiamente os preceitos da Doutrina Monroe e de seu Big Stick (grande porrete), ou sua versão mais recente e “moderna”, a Doutrina Bush de guerras preventivas e soberania limitada. A decisão do Grupo do Rio fez exatamente o inverso, rejeitando essas teses e reafirmando como princípio básico e fundamental das relações inter-americanas o respeito à inviolabilidade das fronteiras nacionais.

A tentativa de “latino-americanizar” tardiamente a Doutrina Bush se dá num péssimo momento,
exatamente quando esta política de guerras do imperialismo norte-americano é derrotada no Iraque e é um dos fatores centrais de seu crescente isolamento, e objeto de uma ascendente contestação da hegemonia estadunidense no mundo.

No debate político-jurídico-diplomático de fundo ocorrido destaca-se o papel de proa do Brasil. Através do Itamaraty que, fazendo jus a sua tradição progressista e de defesa do interesse nacional, é voz firme na defesa dos princípios do direito internacional e da inviolabilidade das fronteiras.

É correta a atitude: ao Brasil e a seu povo, dono de imenso território, com imensas riquezas naturais e vasta e porosa fronteira, ter na paz a variável fundamental de sua estratégia nacional e geopolítica na América do Sul e no Atlântico Sul. Ao lado da bandeira de construir uma América do Sul e Latina desenvolvida, próspera, integrada, logrando constituir um pólo que permita exercer com soberania e independência nossos destinos civilizatórios no mundo em aliança com nossos vizinhos1.

Durante o conflito, foi impressionante a reação dos oligopólios de mídia em todo o continente que, subvertendo a lógica e os fatos, absolveram o agressor (Uribe), culparam o agredido (Rafael Correa) com “provas” de um suposto computador de Raul Reyes e voltaram o alvo contra Hugo Chávez, demonizado e apontado como “ameaça militar” na região. Noutro plano, o complexo midiático absolveu os EUA e seu histórico de intervenções imperialistas no continente. Um exemplo é a raivosa revista Veja, cuja capa é uma demonstração de histeria e manipulação direitista.

Mas o presidente venezuelano soube driblar a armadilha e o circo midiático. Na reunião do Grupo do Rio, foi “o discurso pacificador de Chávez que permitiu que a reunião se transformasse numa reunião produtiva”, como sublinhou o presidente Lula.

O fato é que na atual conjuntura latino-americana trava-se uma feroz batalha de idéias. Há uma intensa mobilização de intelectuais e formadores de opinião, com amplo espaço nos grandes meios de comunicações oligapolizados a difundir a ameaça do “neopopulismo”, da “esquerda radical” e até, no caso de alguns reacionários mais recalcitrantes, da “ameaça” do socialismo.

A calculada agressão de Uribe ao Equador

A pressão sobre Álvaro Uribe para uma saída negociada no conflito colombiano ameaçava se tornar irreversível politicamente. Até o presidente francês Nicolas Sarkozy – interessado nos ganhos políticos internos na opinião pública francesa – anunciou que iria às selvas colombianas negociar com emissários da guerrilha. Além disso, desde que Uribe afastou, em novembro, a mediação de Hugo Chávez no conflito, as Farc dobraram a aposta, decidindo utilizar a tática de soltura unilateral de reféns em seu poder, liberando dois prisioneiros em janeiro e outros quatro em fevereiro – estes últimos, quatro dias antes do bombardeio de seu acampamento no Equador.

A atitude da guerrilha forçava um envolvimento da comunidade internacional – a idéia de um “grupo de amigos” da paz na Colômbia ganhava força. A tática da guerrilha era clara. Como disse a senadora colombiana Piedad Córdoba, interlocutora do intercâmbio humanitário, “(Raul Reyes) estava convencido de que a situação da América Latina favorecia uma negociação”2.

Além disso, a guerrilha estava na iminência de criar um fato político novo e de grande repercussão: libertar Ingrid Betancour, como deu a entender o presidente Rafael Correa em visita à Nicarágua. Em episódios, todavia não totalmente esclarecidos, dois ou três dias antes da morte de Reyes, um emissário do governo francês teria conversado, desde o Panamá, com o dirigente guerrilheiro por meio de um telefone por satélite. Negociava-se aquilo que poderia ser uma ação decisiva para instalar o processo de paz e liquidar politicamente o apoio social à política de guerra de extermínio de Uribe.

A exposição de Reyes como homem público da guerrilha, recebendo visitas políticas e mantendo regulares contatos com o exterior por telefone via satélite, levanta suspeitas de que já há algum tempo ele estaria sendo monitorado por sofisticados aparelhos de monitoramento instalados na Base norte-americana de Manta. Recorde-se que em 2007 a Colômbia criou uma unidade especial de inteligência (Dipol) cuja função era exatamente localizar e aniquilar os sete membros do secretariado das Farc, entre eles Reyes3. A Uribe, caberia então decidir o momento certo de eliminá-lo de acordo com seu cálculo político. A ação de ataque ao acampamento guerrilheiro no Equador, pois, foi premeditada, calculada; visava a matar o principal negociador e interlocutor da guerrilha.

Segundo informes das Forças Armadas do Equador, publicados no diário El Comercio, de Quito, foram usadas dez bombas GBU-12, de 227 quilos – que podem ser guiadas por laser, GPS ou tecnologia intersensorial. O grau de destruição é enorme; as bombas provocaram crateras de 2,40 metros de diâmetro por 1,80 metros de profundidade no acampamento guerrilheiro. Tratam-se, aliás, das mesmas bombas utilizadas pelos Estados Unidos no Iraque.

Há outros indícios de o ataque ter sido realizado com suporte logístico e tecnológico da base norte-americana de Manta, localizada no território equatoriano. Segundo dados da inteligência equatoriana divulgados na imprensa local, um avião HC-130 partiu da base de Manta em 29 de fevereiro, às 19 horas e retornou em 1º de março, às 06h30min – pelo que, estima-se que tenha dado suporte logístico à ação colombiana.

Em síntese, a ação do governo Uribe, objetivamente, visou a criar uma situação que abortasse as solturas unilaterais por parte da guerrilha que pudessem levar a uma irreversibilidade de uma saída política e negociada. Afinal, nunca como hoje houve condições tão favoráveis a uma saída política e negociada para o antigo conflito colombiano.

Vale lembrar não ter sido a primeira violação de soberania alheia posta em prática por Uribe. Em janeiro de 2004, o serviço secreto colombiano seqüestrou em Quito, Simon Trinidad, comandante das Farc para, em seguida, extraditá-lo aos EUA. Em dezembro do mesmo ano foi a vez de Rodrigo Granda, da Comissão Internacional das Farc ser seqüestrado em Caracas. Em ambos os casos, aplicou-se um dos princípios da Doutrina Bush, segundo o qual, na “guerra contra o terrorismo” não se respeita fronteiras e soberania de quem quer que esteja no caminho.

A política do governo Uribe não é outra senão a de aniquilar militarmente a guerrilha a qualquer custo; assim, qualquer outro tema se subordina a esse objetivo central, inclusive a vida dos presos e as relações com os países vizinhos.

O longo conflito colombiano e suas conseqüências

O conflito colombiano atual tem suas raízes no assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, candidato presidencial às eleições de 1948, de perfil nacionalista, cuja morte gerou o episódio conhecido como Bogotazo, uma enorme onda de reação de massas em Bogotá. O que foi seguido por outro episódio histórico conhecido como La Violencia, uma forte reação conservadora e oligárquica que executa milhares de assassinatos até os anos 1960. As Farc, surgidas em 1964, desde então são militarmente ativas em grande parte do país.

Ao longo dessas décadas, assim como hoje, o governo não pôde vencer as Farc, embrenhadas nas selvas e utilizando táticas de guerra de guerrilhas e de “guerra assimétrica” – a despeito de o Estado colombiano contar, mais recentemente, com fartos recursos, armamentos e assistência técnica militar e de treinamento de pessoal proporcionados pelos EUA. Tampouco as Farc podem vencer o conflito.

Nesse último caso, soma-se outro fator de natureza objetiva da atual conjuntura: o atual ciclo de vitórias das forças progressistas e antiimperialistas na América Latina tem ocorrido a partir de vitórias eleitorais; na Colômbia estão as últimas guerrilhas do continente. De fato, não há nenhuma saída militar para o conflito que redunde na vitória de um dos lados com o aniquilamento do outro.

Independente desse fato, a razão de ser do governo Uribe é a destruição das Farc pela via militar. Sob essa bandeira, da mão dura contra a guerrilha, se elegeu em 2002 e reelegeu-se em 2006. Desde então, a esse objetivo subordina qualquer outra questão em seu governo.

Como conseqüência, há um aprofundamento de um drama humanitário de graves proporções. Dezenas de presos junto às guerrilhas – de “personalidades”, como Ingrid Betancour, a soldados colombianos e norte-americanos. Mais de 3 milhões de colombianos “desplazados” (deslocados, refugiados), 865 mil entre 2002 e 2005; só na Venezuela, estima-se que vivam 3 milhões de cidadãos colombianos. Além disso, dezenas de milhares de assassinatos políticos – inclusive três candidatos à presidência da República, oito congressistas e centenas de prefeitos, deputados estaduais e vereadores. Na década de 1980, entre 1985 e 1988, uma primeira tentativa de incorporação de setores guerrilheiros à vida política resultou em 500 candidatos e militantes da União Patriótica (UP) assassinados. Além disso, entre 2,6 e 6,8 milhões de hectares de terra tomados de camponeses e proprietários rurais. Entre 1991 e 2006, são 1.113 sindicalistas assassinados4.

Some-se a isso o que os colombianos denominam como paramilitarização da política, isto é, a forte presença de narcotraficantes na política. A Corte Suprema de Justiça da Colômbia já mandou prender 26 parlamentares por vínculos com as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), grupo paramilitar e narcotraficante de ultra-direita, e investiga outros 30 parlamentares (em um total de 268) – quase todos da base de Uribe5.

Manter e aprofundar o curso da tendência progressista na América Latina

As vitórias de governos progressistas na América Latina nos últimos dez anos – que mudaram a feição dos governos da região, passando de subordinados ao projeto hemisférico estadunidense a países independentes e soberanos – fizeram soar o alerta em Washington. Já há alguns anos está em curso uma reação, ou melhor dizendo, uma contratendência ou contra-ofensiva do imperialismo norte-americano. Seu sentido é o de neutralizar e mesmo reverter a tendência dominante, visando a preservar a América Latina e o Caribe como área de influência estratégica dos EUA. Insere-se na estratégia de segurança nacional estadunidense que preconiza conter o surgimento e a afirmação de pólos que contestem sua hegemonia unipolar.

A ameaça de guerra resultante da violação das fronteiras do Equador não é fato isolado. Guarda relações com outros movimentos contra-ofensivos recentes, como a ação que causou a derrota da proposta de reforma constitucional no referendo venezuelano em dezembro último, que explicitamente trazia em seu bojo a consigna ou a proclamação pelo “socialismo bolivariano” na Venezuela. As digitais da reação também se apresentam no bloqueio das mudanças na Bolívia, por meio de ameaças separatistas e em vários outros episódios recentes da conjuntura latino-americana.

A ação firme, decidida e unida da América Latina e Caribe contra a latino-americanização da Doutrina Bush e o rechaço unido à atitude da Colômbia, ao mesmo tempo em que evitou a guerra, preservando a paz, foi uma mensagem positiva para seguir afirmando a tendência progressista e antiimperialista na região. Embora não tenham eliminado a luta de contrários que caracteriza a transitória situação latino-americana atual seguirão em curso movimentos estratégicos por parte do imperialismo visando a reverter ou pelo menos neutralizar os governos à esquerda na região.

No caso da Colômbia, dado seu papel de cabeça-de-ponte do imperialismo na América do Sul e na Amazônia, as forças progressistas devem levantar com força a bandeira da saída política e negociada para o conflito colombiano. É preciso trabalhar uma saída a partir de instrumentos como a conformação de um Grupo de amigos da Colômbia, que force concessões de Uribe. Olhando um exemplo histórico, uma espécie de novo Grupo de Contadora – na década de 1980 buscou saídas políticas e negociadas nos conflitos armados de El Salvador, Nicarágua e da Guatemala que, como o conflito colombiano atual, é uma ameaça de desestabilização de toda a região sul-americana.

Ronaldo Carmona é sociólogo, membro da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB.

NOTAS
1 – A agressão colombiana ao Equador e o aparecimento de propostas novas que valorizam a soberania sul-americana – como é o caso da proposta brasileira do Conselho Sul-americano de Defesa –, coloca na ordem-do-dia, como questão estratégica para o povo brasileiro, a atualização da “doutrina” geopolítica do Brasil. Por um lado, é preciso sepultar definitivamente as teorias geopolíticas remanescentes da guerra fria sobre o “pan-americanismo” – os interesses do Brasil não são, absolutamente, os mesmos dos Estados Unidos. Por outro, urge atualizá-la à luz do novo cenário mundial, de crescente perda da influência e da hegemonia unipolar do imperialismo estadunidense e de crescentes potencialidades de intervenção soberana do Brasil no mundo.
2 – Revista Cambio, jornal El Tiempo, 18/03/08.
3 – El Comercio, 16/03/2008. No dia 07, foi morto outro membro do secretariado das Farc, Ivan Rios, demonstração da ativa política de assassinar lideranças da guerrilha.
4 – Dados que constam de “Álvaro Uribe es el jefe del ocultamiento”, Pólo Democrático Alternativo, set.2007.
5 – El Tiempo, 01/04/2008. Além disso, biógrafos de Álvaro Uribe apontam seu vínculo estreito, e de sua família, com paramilitares de direita.

EDIÇÃO 95, ABR/MAI, 2008, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72