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    Comunicação

    Um retrato

    Eu mal o conheci quando era vivo. Mas o que sabe um homem de outro homem? Houve sempre entre nós certa distância, um pouco maior que a desta mesa onde escrevo até esse retrato na parede de onde ele me olha o tempo todo. Para quê? Não são muitas as lembranças que dele guardo: a […]

    POR: Redação

    2 min de leitura

    Eu mal o conheci
    quando era vivo.
    Mas o que sabe
    um homem de outro homem?

    Houve sempre entre nós certa distância,
    um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
    até esse retrato na parede
    de onde ele me olha o tempo todo. Para quê?

    Não são muitas as lembranças
    que dele guardo: a aspereza
    da barba no seu rosto quando eu o beijava
    ao chegar para as férias;
    o cheiro de tabaco em suas roupas;
    o perfil mais duro do queixo
    quando estava preocupado;
    o riso reprimido
    até soltar-se (alívio!)
    na risada.

    Falava pouco comigo.
    Estava sempre
    noutra parte: ou trabalhando
    ou lendo ou conversando
    com alguém ou então saindo
    (tantas vezes!) de viagem.

    Só quando adoeceu e o fui buscar
    em casa alheia
    e o trouxe para a minha casa (que infinitos
    os cuidados de Dora com ele!)
    estivemos juntos por mais tempo.
    Mesmo então dele eu só conheci
    a luta pertinaz
    contra a dor, o desconforto,
    a inutilidade forçada, os negaceios
    da morte já bem próxima.

    Até o dia em que tive de ajudar
    a descer-lhe o caixão à sepultura.
    Aí então eu o soube mais que ausência.
    Senti com minhas próprias mãos o peso
    do seu corpo, que era o peso
    imenso do mundo.
    Então o conheci. E conheci-me.

    Ergo os olhos para ele na parede.
    Sei agora, pai,
    o que é estar vivo.

    "Melhores poemas"
    José Paulo Paes
    Seleção de Davi Arrigucci Jr.
    Global Editora – edição 1998