O tempo, à feição das pessoas, anda amalucado. Aí está um veranico escandalizando o fim de fevereiro e início de março. A tal de massa de calor estacionou sobre a maior parte do país impedindo a formação de nuvens de chuva. Calor pesado, mormaço, forno. Até as noites aderem à onda, ou poço, cozinhando a gente. Festa para os vendedores de água nos sinaleiros. Picolés pelas calçadas. Festa boa mesmo é dos bares e cervejarias que reúnem multidões ao entardecer. Os incrédulos dizem que é febre do planeta. Acabam-se rios, destroem-se florestas, vão cobrindo o mundo de lixos e poluentes. O exilado planetinha azul vai perdendo suas virtudes regenerativas. A pobre Terra e seus viventes vão curtindo enfermidades. Algumas passageiras. Outras crescentes e ameaçadoras para quem pensa em viver uns anos a mais.  Mete-se a ter filhos e pensar em netos. Relaxa, goza e ri quem pensa que tudo foi feito pra seu desfrute. Tanto se lhe dá que com sua morte o resto também vire poeira. Enquanto o poço de calor pasma sem brisa, vento ou remoinho, alguns olham para o céu perscrutando nuvens. Arriscam-se a uma trombada com um passante, um ciclista, ou a um fatal atropelamento por veículo endoidecido.  Querem uma promessa de frescor que pode vir das alturas. Secaram as confianças nas sabedorias da terra, das ciências, e põem esperanças nos rituais com que os antigos atravessavam esses momentos. Pensam especialistas em teologias de dores e sofrimentos que é sinal dos tempos. Ainda mais na quaresma… Palavra que sempre fez tremer os devotos. A igreja delimitou este período de quarenta dias, quarentena, para corpos e almas. Da quarta-feira de cinzas, depois da esbórnia do carnaval, até o domingo de páscoa. Fazem cerimônias e ritos de purgação, porque a história recorda, entre todos os seus crimes, aquele mais brutal, que foi o caso de trucidarem alguém que teria vindo ao mundo para trazer conforto e alegria. Um poeta cujas metáforas ninguém compreendeu. Por isso guardam dele remorso e afeto. Simulam anualmente, neste período, suas dores, sua morte e abandono. Isso dá às almas pias conforto para continuar o resto do ano cobiçando, roubando, matando. Tudo resolve quarentena sacra. O cordeiro leva lágrimas e impurezas de todos. A quaresma em minha casa, onde a única mestra, sacerdotisa e confessora era minha mãe, pouco alfabetizada, cultuava-se o silêncio, o temor condolente e a delicadeza. Era como a morte de um menino. Advertia ela: – Não pisem o chão com força! Não matem nenhum vivente! Nada que perturbe o recolhimento do mundo! Havia no ar uma atmosfera de luto, um eco de lamentação das almas. E na sexta-feira maior, a das dores, os filhos deviam, logo cedo, tomar a bênção à mãe, ajoelhados. Isso durou enquanto esteve viva minha mãe. Fazia oferendas às pessoas com fome, a um passarinho ferido, a um inseto ameaçado. Acho que seus deuses estavam aí mesmo ao alcance da mão, bastava abrir os olhos, estender os braços para tocá-los.