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    Comunicação

    Poema da eterna presença

    Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva, de olhos postos no céu, e reparo, com alegria, que as dimensões do infinito não me perturbam. (O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!) O que me perturba é que o todo possa caber […]

    POR: António Gedeão

    3 min de leitura

    Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
    de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
    que as dimensões do infinito não me perturbam.
    (O infinito!
    Essa incomensurável distância de meio metro
    que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)

    O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
    que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.

    O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim, de mim,
    pobre de mim, que sou parte do todo.
    E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas
    porque eu não sou braço nem sou perna.

    Se eu tivesse a memória das pedras
    que logo entram em queda assim que se largam no espaço
    sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
    se eu tivesse a memória da luz
    que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
    sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
    os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
    os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram continentes,
    a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a Terra.

    Mas não esqueci tudo.
    Guardei a memória da treva, do medo espavorido
    do homem da caverna
    que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz;
    guardei a memória da fome;
    da fome de todos os bichos de todas as eras,
    que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo;
    guardei a memória do amor,
    dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
    que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
    guardei a memória do infinito,
    daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos,
    em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado,
    à formação do Universo.

    Tudo se passou defronte de partes de mim.
    E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
    porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim.
    Já cá estavam.
    Estão.
    E estarão.

    António Gedeão, in "Poemas Póstumos"
    Fonte: poesiaemartini.blogspot.com