Com o neoliberalismo, principalmente com “a liberação das trocas comerciais, com a desregulamentação, a abertura dos mercados e novas lógicas de desenvolvimento das transnacionais, com as privatizações, com o crescimento da sub-contratação e da externalização da produção”, conseqüências relevantes ocorrem na divisão sexual do trabalho, tanto no espaço produtivo como no reprodutivo. (Hirata, 2001/02: 143).

Nos anos 80/90 a mundialização do capital emitiu efeitos complexos, além de contraditórios, afetando desigualmente o emprego feminino e o masculino. Em relação ao emprego masculino, houve uma estagnação e/ou até mesmo uma regressão, já o emprego e o trabalho feminino remunerado cresceram. Paradoxalmente, apesar de ocorrer um aumento da inserção da mulher trabalhadora, tanto nos espaços formal quanto informal do mercado de trabalho, ele se traduz majoritariamente, nas áreas onde predominam os empregos precários e vulneráveis.

Este quadro possibilita uma reflexão sobre o papel feminino no mundo do trabalho, marcado por uma flexibilização mais acentuada, como, por exemplo, o trabalho em tempo parcial realizado majoritariamente por mulheres.

Para darmos uma base de concretude ao nosso texto, indicaremos, a seguir, resumidamente as tendências mais recentes do trabalho feminino, em países da Europa, América Latina e Brasil, utilizando-nos substancialmente de pesquisas e dados empíricos sobre a feminização do trabalho, contemplando as diferenças salariais, a jornada de trabalho (trabalho em tempo integral ou parcial), o emprego temporário, o subemprego e o desemprego[1].

I

Ao analisarmos os dados referentes à Europa percebemos que se evidenciou um significativo crescimento da população trabalhadora feminina em relação à população ativa durante as décadas de 1980/1990.

Desde a década de 1960, do norte ao sul da Europa, assistimos um crescimento espetacular da atividade feminina enquanto o emprego masculino é marcado ou pelo imobilismo ou pelo declínio. Pela primeira vez na história do mundo assalariado, as mulheres ingressaram intensamente no mercado de trabalho em um período de desemprego. Em plena crise do emprego, que se intensificou ao longo dos anos 80 na União Européia, a atividade feminina não parou de crescer. Esse período caracterizou-se pela feminização do contingente assalariado, em particular no setor de serviços

Durante os anos 1960, as mulheres representavam 30% da população ativa européia; em 1996, essa cifra se elevou a 42,5%. Mas, apesar do crescimento da inserção da mulher trabalhadora no mundo do trabalho, essa tendência vem ocorrerendo nos espaços onde a precarização é mais acentuada, como por exemplo, no trabalho em tempo parcial, ou ainda, com grande diferenciação salarial[2].

A respeito da diferenciação salarial, pesquisas referentes ao ano 1995, publicadas em 1999, indicam a Dinamarca (11,9%) e a Suécia (13%), entre os países com pequena diferença salarial, já a Espanha (26%), Reino Unido (26,3%), Portugal (28,3%), Países Baixos (29,4%) e Grécia (32%) encontram-se entre aqueles com níveis de diferenciação bem mais acentuados.

Aliás, isso configura uma situação aparentemente contraditória: no mesmo período histórico em que a Europa caminha no sentido da unificação da sua legislação, a igualdade de salários entre homens e mulheres não existe em nenhuma parte. Em toda a Europa, as mulheres têm salários significativamente menores que os homens. Os últimos dados relativos à Europa mostram que os desníveis de salários se escalonam entre 11,9% e 32%.

Ao contrário, portanto, de uma pretensa equalização salarial nos países de capitalismo avançado da União Européia, a configuração atual da divisão sexual do trabalho carrega consigo a persistência da segmentação e da remuneração diferenciada entre homens e mulheres.

Outro exemplo é o trabalho em tempo parcial, que muitas vezes implica em salários menores e poucos direitos trabalhistas. Na Europa do Norte, encontram-se os níveis mais altos de feminização do trabalho em tempo parcial, por exemplo, nos Países-Baixos (68,5%), Reino Unido (44,8%), Suécia (41,8%), Dinamarca (34,5%) e Alemanha (31,6%). No extremo oposto, na Europa do Sul, encontramos os menores índices de feminização do emprego em tempo parcial, como por exemplo, a Grécia (9%), Itália (12,7%) e Portugal (13%).

Cabe lembrar que os Países-Baixos são os únicos onde a proporção de homens, em tempo parcial de trabalho aumentou significativamente, quase triplicando, pois em 1983 totalizavam 6,9% de homens em tempo parcial, chegando em 1996 a 17%. Mas, se compararmos a quantidade de mulheres em tempo parcial (que se encontra na faixa de 68,5% em 1996), mantém-se a “regra” da feminização do trabalho em jornada parcial.

II
Já na América Latina, apesar de verificarmos que também vem ocorrendo um processo de feminização do trabalho, há algumas especificidades próprias dos países de capitalismo dependente ou subordinado como, por exemplo, quando constatamos que mesmo com o acentuado crescimento da inserção da mulher no mundo do trabalho, ainda ocorre uma predominância masculina. Na Colômbia, por exemplo, de 1990 a 1997, houve uma diminuição da força de trabalho masculina de 58,6% para 51,9%, enquanto que a feminina cresceu, no mesmo período, de 41,4% para 48,1%. Podemos citar também o caso do Uruguai, onde, em 1986, os trabalhadores masculinos compunham 60% da força de trabalho e, em 1997, esse percentual diminuiu para 55%, e o contingente das trabalhadoras aumentou de 40% para 45%, neste mesmo período, confirmando a predominância masculina.

Assim, da mesma forma que ocorre na União Européia, na América Latina o crescimento da mulher no mundo do trabalho também é nítido e as mesmas formas de precarização (guardadas algumas particularidades) também estão presentes. Por exemplo, apesar de ocorrer uma nítida diminuição salarial para toda à classe trabalhadora, entre os anos 90 e 98, a desigualdade do piso salarial entre homens e mulheres continuou muito acentuada no continente latinoamericano. O salário médio do homem, em 1990, no segmento formal, era de 100 e o da mulher neste mesmo período era de 71; em 1998, neste mesmo segmento a situação se mantém a mesma. No entanto, se exemplificarmos com o setor informal de emprego, os homens apresentam em 1990 ganhos de 76 e as mulheres 35. Já em 1998, os homens passam a receber 65 e as mulheres 34.

Se os dados evidenciam uma desigualdade significativa da remuneração referente ao trabalho feminino em relação ao masculino, é muito importante lembrar que, no contexto da divisão sexual do trabalho, a maior parte dos empregos de baixos salários é realizada em tempo parcial.

Portanto, ao compararmos a situação feminina e masculina no trabalho em tempo parcial, confirmamos que a predominância maior é a da mulher. Por exemplo, na Bolívia, em 1997, em um total de 118.513 mil trabalhadores em tempo parcial, 69.787 mil eram mulheres e 48.726 mil eram homens. No Chile, em 495.152 mil trabalhadores em tempo parcial, 313.511 mil eram mulheres e somente 181.641 mil eram homens.

Podemos afirmar que, ao compararmos os dados sobre o trabalho feminino referentes aos países latino-americanos, com os dados dos países europeus, constatamos que apesar de ter ocorrido uma precarização do trabalho nos países de capitalismo avançado, foi na América Latina, particularmente após a reestruturação produtiva e a presença neoliberal, que esse processo é ainda mais acentuado. É bom lembrar que a precarização não ocorreu somente em relação à força de trabalho feminina, pois, quando analisamos os dados referentes ao trabalho masculino, verificamos que as alterações no mundo do trabalho também atingiram os homens trabalhadores, ainda que de forma menos intensa. O que reafirma a tese de que a divisão social e sexual do trabalho, na configuração assumida pelo capitalismo contemporâneo, intensifica fortemente a exploração do trabalho, fazendo-o, entretanto, de modo ainda mais acentuado em relação ao mundo do trabalho feminino.

III

A tendência da feminização do trabalho (e sua acentuada precarização) também está presente quando se analisa o Brasil. No período de 81 a 98 ocorreu um constante crescimento da população economicamente ativa feminina, chegando a alcançar 111,5% de aumento, aumento esse muito mais acentuado que o masculino. A proporção do aumento de mulheres em relação aos trabalhadores é nítida, salta de 31,3%, em 1981, para 40,6%, em 1998. Nesta mesma época, o contrário ocorreu com os homens, que recuam de 68,7%, em 1981, para 59,3%, em 1998.

No que diz respeito aos menores salários, a mulher também se encontra predominante, quando comparada aos homens. Ambos, homens e mulheres, nos mesmos setores de atividades, concentram-se em faixas distintas de salários, apontando uma acentuada desigualdade em relação aos valores médios pagos para os trabalhos realizados conforme o sexo.

Por exemplo, constatamos em nossa pesquisa que a mulher se encontra presente de modo majoritário em todos os setores de atividades onde o valor salarial está estipulado em até 2 salários mínimos, e, ao contrário, de modo minoritário, à medida que os valores salariais vão se elevando. A única exceção é em relação ao setor agrícola onde, por exemplo, encontramos a cifra de 16% de mulheres e de 55% de homens que ganham até 2 salários mínimos. No entanto, essa discrepância é amplamente elucidada quando apresentamos os dados que se referem aos trabalhadores(as) agrícolas sem nenhum rendimento, indicando que 81,9% das mulheres encontram-se nesta situação, contra 27,9% dos homens, sendo essa uma verdadeira radiografia do espaço agrário brasileiro, marcado por alta concentração da propriedade da terra e enorme exploração da classe trabalhadora.

Em relação à jornada de trabalho podemos afirmar, que, em geral, quanto menor é o tempo de trabalho, maior é a presença feminina. Por exemplo, na jornada de trabalho de 40 a 44 horas semanais, encontramos 7.760.331 milhões mulheres. Para a mesma quantidade de horas trabalhadas, a presença masculina é quase o dobro, totalizando a cifra de 14.882.407 milhões. Se aumentarmos ainda mais as horas trabalhadas, para 49 horas ou mais, observamos que a relação praticamente triplica: os homens se encontram na faixa de 10.645.768 milhões e as mulheres na faixa de 3.689.793 milhões. Já nos trabalhos de até 14 horas semanais os dados mostram que são 3.414.902 milhões de mulheres, contra 1.001.156 milhões de homens; de 15 a 39 horas, temos 9.620.116 milhões de mulheres e 6.546.326 milhões de homens. Isso vem confirmar a tendência mundial de apresentar a mulher como majoritária nas jornadas de trabalho parciais, ou seja, falar sobre trabalho em tempo parcial é, em grande medida, falar em trabalho feminino.

Por fim, os dados apresentados mostraram que, no contexto da flexibilização do mundo do trabalho, da reestruturação produtiva e das políticas neoliberais, o aumento da inserção das mulheres continua ocorrendo. Portanto, a questão que se mantém é de como compatibilizar o acesso ao trabalho pelas mulheres, que por certo faz parte do processo de emancipação feminina, com a eliminação das desigualdades existentes na divisão sexual do trabalho, já que essa situação de desigualdade entre trabalhadores e trabalhadoras atende aos interesses do capital. Isso se verifica, por exemplo, ao constatarmos que a tendência do trabalho em tempo parcial está reservada mais para a mulher trabalhadora. E isso ocorre porque o capital, além de reduzir ao limite o salário feminino, ele também necessita do tempo de trabalho das mulheres na esfera reprodutiva, o que é imprescindível para o seu processo de valorização, uma vez que seria impossível para o capital realizar seu ciclo produtivo, sem o trabalho feminino realizado na esfera reprodutiva.

Portanto, se a participação masculina no mundo do trabalho pouco cresceu no período pós-70, a intensificação da inserção feminina foi o traço marcante nas duas últimas décadas. Entretanto, essa presença feminina se dá mais no espaço dos empregos precários, onde a exploração, em grande medida, se encontra mais acentuada, como pudemos ver nas pesquisas realizadas na Europa, América Latina e no Brasil. Essa situação é um dos paradoxos, entre tantos outros, da mundialização do capital no mundo do trabalho. O impacto das políticas de flexibilização do trabalho, nos termos da reestruturação produtiva, tem se mostrado como um grande risco para toda a classe trabalhadora, em especial para a mulher trabalhadora.

Pelo que vimos, podemos entender que a precarização tem sexo. Prova disso é que, na Europa, na América Latina e, particularmente no Brasil, a flexibilidade da jornada de trabalho feminina, segundo Hirata, só “é possível porque há uma legitimação social para o emprego das mulheres por durações mais curtas de trabalho: é em nome da conciliação entre a vida familiar e a vida profissional que tais empregos são oferecidos, e se pressupõe que essa conciliação é de responsabilidade exclusiva do sexo feminino”. (Hirata, 1999: 08)

Além disso, existe a conotação de que o trabalho e o salário feminino são complementares, no que tange às necessidades de subsistência familiar. Embora saibamos que hoje, para algumas famílias, essa premissa não é mais verdadeira, pois o valor “complementar” do salário feminino é freqüentemente imprescindível para o equilíbrio do orçamento familiar, especialmente no universo das classes trabalhadoras. Por isso, ao mesmo tempo em que se deu um enorme avanço da presença feminina no mundo do trabalho, esse avanço foi marcado claramente por uma enorme precarização.

IV

Para concluirmos nosso trabalho retomaremos a idéia básica que dá título ao nosso texto – A Feminização no Mundo do Trabalho: entre a Emancipação e a Precarização – que tenta entender se a crescente inserção da mulher no mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo vem trazendo alguns elementos que favorecem e fortalecem o complexo processo de emancipação feminina, ou se esses mesmos elementos vêm (também) acarretando uma precarização diferenciada da força de trabalho, afetando de maneira mais intensa a mulher trabalhadora. A feminização do mundo trabalho é por certo positiva, uma vez que permite avançar o difícil processo de emancipação feminina, e desse modo minimizar as formas de dominação patriarcal no espaço doméstico. Mas é também marcada por forte negatividade, pois ela vem agravando significativamente a precarização da mulher trabalhadora.

Esse lado negativo, por sua vez, é conseqüência da forma pela qual o capital incorpora o trabalho feminino, cujas características, como a polivalência e a multiatividade, são decorrentes das suas atividades no espaço reprodutivo, o que as torna mais apropriadas às novas formas de exploração pelo capital produtivo. Trata-se, portanto, de um movimento contraditório, uma vez que a emancipação parcial, uma conseqüência do ingresso do trabalho feminino no universo produtivo, é alterada de modo significativo, por uma feminização do trabalho que implica simultaneamente uma precarização social e um maior grau de exploração do trabalho.

Como vimos, o capitalismo, ao mesmo tempo em que cria condições para a emancipação feminina, acentua a sua exploração ao estabelecer uma relação aparentemente “harmônica" entre precarização e mulher, criando formas diferenciadas de extração do trabalho excedente. Quando se toma o trabalho em seu sentido ontológico, se pode ver que ele possibilita um salto efetivo no longo processo da emancipação feminina. E, na medida em que a mulher se torna assalariada, ela tem também a possibilidade de lutar pela conquista da sua emancipação, pois se torna parte integrante do conjunto da classe trabalhadora.

Desse modo, o nosso texto procurou mostrar, por um lado, que o ingresso da mulher no mundo do trabalho é um avanço no seu processo emancipatório, ainda que este seja limitado e parcial. Mas, por outro lado, esse avanço encontra-se hoje fortemente comprometido, na medida em que o capital vem incorporando cada vez mais o trabalho feminino, especialmente nos estratos assalariados industriais e de serviços, de modo crescentemente precarizado, informalizado, sob o regime do trabalho part-time, temporário, etc., preservando o fosso existente, dentro da classe trabalhadora, entre o contingente masculino e feminino. Assim, o processo de feminização do trabalho tem um claro sentido contraditório, marcado pela positividade do ingresso da mulher no mundo do trabalho e pela negatividade da precarização, intensificação e ampliação das formas e modalidades de exploração do trabalho. Enfim, é nessa dialética que a feminização do trabalho, ao mesmo tempo, emancipa, ainda que de modo parcial, e precariza, de modo acentuado.

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* Publicado in: PARTICIPACÇÃO BOLETIM DO BLOCO DE ESQUERDA PARA O TRABALHO, nº 10, Nov/Dez. 2004. Lisboa/Porto, Portugal. Emails: [email protected] / [email protected]

[1] Os dados foram extraídos da OIT (Organização Internacional do Trabalho), Eurostat, CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Sócio-Econômicas), SEADE , IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), além dos livros indicados na bibliografia.

2] Maruani, 2000 e 2002.

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Pesquisadora, bolsista do CNPq Brasil (Conselho Nacional de Pesquisa Científica) e autora do livro A Feminização no Mundo do Trabalho, Editora Autores Associados, São Paulo, Brasil, 2004.