As grandes mídias já esqueceram os crimes rumorosos de ontem e já escolheram um novo para continuar o espetáculo de sangue e de ódio. Afinal, o show não pode parar. A idéia é esta: juntar a oportunidade ao script de sempre. Os ingredientes são bem conhecidos, tornam-se ainda mais fortes quando se trata de pessoas que já haviam alcançado alguns degraus da fama e do dinheiro fácil.

Os grandes assuntos que perpassam estes acontecimentos funestos estão presentes nas palavras usadas para noticiar os fatos. Mas, esta presença não é interpretada, o que interessa é narrar o horror e ganhar audiência com os detalhes sórdidos. Estes atraem o grande público, já corrompido com a lógica irracionalista do mundo cão do cotidiano de suas vidas e o descrito no universo alucinado das reportagens.

Quando menos se esperava, o Brasil parou. Parece que agora só existe um crime e que aquele fato é o único assunto a ser consumido. A cobertura das emissoras de Tv e de rádio, dos jornais e das revistas impressas é cerrada. Tudo ecoa na Internet, repetindo-se interminavelmente até o cenário final do julgamento. Ninguém é poupado dos detalhes, por mais escabrosos que sejam. Os operadores da Justiça e da Polícia dão inúmeras entrevistas focando o drama deste último caso, como ocorreu nos anteriores. Tudo se repete melancolicamente, sem qualquer reflexão.

O crime escolhido agora para representar o Brasil nas mídias tem o poder aparente de se fazer esquecer de todo o resto. Não há mais uma eleição em curso. A tragédia do Golfo do México sumiu do mapa midiático. A Copa do Mundo acabou, porque o Brasil foi desclassificado. Os mil e um problemas do Brasil são reduzidos a um único episódio, com farta mobilização das pessoas que clamam por justiça e gritam xingamentos para os acusados que desfilam frente às câmeras. A catarse, obtida com muita emoção alienada, paralisa o pensamento, impedindo qualquer espaço para o advento de uma visão racional.

O grito arcaico de vingança é fortemente estimulado e as pessoas acreditam que haverá justiça unicamente com a necessária punição daqueles culpados. O contexto onde o crime brutal foi cometido desaparece do cenário. Ele é ocupado pelos arquétipos do mal e do bem, personalizados pela bela e a fera, esta última é, com razão, estigmatizada como fosse única e solitária. Com isto, os verdadeiros problemas sociais, econômicos, políticos e culturais que permitiram a barbárie deste fato, como a de muitos outros, são colocados para baixo do tapete.

A violência deste último crime foi radical e impressionante. Entretanto, infelizmente, tratar violentamente mulheres é um esporte nacional. Não casualmente, foi feita uma lei – Maria da Penha – para tentar coibir e punir fatos desta natureza. Não são poucas mulheres que são assassinadas pelo ‘crime’ de serem mulheres. Ainda há um contexto social que apóia e considera normal o sexismo de muitos homens que se acreditam como superiores às mulheres e com o direito de dispor delas como quiserem.

A solidariedade masculina vista no episódio é habitual, atingindo, igualmente, a um grande conjunto de mulheres que aceitam sem qualquer problema o machismo de seus parceiros. O sexismo é uma ideologia, não tem sexo, idade, cor ou classe social. Esta solidariedade explicaria a inação das autoridades que foram alertadas deste crime anunciado pela própria vítima, que registrou o problema em uma longa entrevista incriminadora dada à maior rede de Tv do país e deu queixa às autoridades. Tudo isto faz com que se compreenda sua ingenuidade relativa de vítima traída por quem poderia ajudá-la: as instituições de Estado.

Philippe Breton, falando dos episódios de violência terríveis conhecidos em casos como o do nazifascismo e das guerras dos últimos cem anos, desenvolveu a hipótese da lógica da vingança. Este se aplica a este caso, com as diferenças de não se tratar de um bando organizado de grandes proporções e de um massacre étnico ou político específico. Mas, nele pode se ver os ovos da serpente chocando sem maiores problemas.

A violência de indivíduos ou de bandos não sai de uma cartola mágica. Ela surge de um processo complexo, onde ela é disseminada, desde a mais tenra idade. Homens ou mulheres violentas não são necessariamente loucos. As pesquisas de Breton e de outros mostram que a loucura explicaria a violência de alguns indivíduos de um mesmo bando de facínoras. Seria incapaz de fazer compreender a violência extrema de todos.

A maioria dos violentos sofreria de uma espécie de divisão psíquica. Esta seria cultivada desde cedo no ambiente familiar, nas comunidades onde se vive, nas instituições que recolhem menores e adultos, nas escolas, nos grupos de camaradagem e, hoje, com grande força, na exposição diária às mídias que exploram a violência de modo sistemático e radical. As mídias isoladamente não transformariam ninguém em pessoa violenta, mas dariam uma boa ajuda. O ambiente econômico-político geral seria um outro fator facilitador da explosão de violência radical.

O primitivismo arquetípico da vingança contra uma pessoa simboliza, nesse caso, o ato de um pequeno grupo masculino que empunhou o ódio contra gênero feminino. Este visto como inferior e sem qualquer direito. As coisas saíram do controle e chegaram ao extremo. Todavia, os brasileiros mais atentos sabem que inúmeras mulheres apanham, algumas são torturadas, outras mortas e todas são desvalorizadas diariamente pelas grandes e pequenas mídias. Nestas, são tratadas como carne, bichos ou brinquedos masculinos.

Não deveria causar espanto a ninguém a possibilidade de acontecer o que aconteceu. Não é segredo que o machismo seduz a consciência feminina brasileira. É bastante comum que muitas mulheres, principalmente, mas não unicamente as mais pobres, achem que o comportamento masculino sexista e avesso ao amor sejam naturais e corretos. Infelizmente, a consciência crítica do problema é indigente, tanto para os homens, como para uma grande parte das mulheres. Como estas são as mais fracas, tendem a sofrer mais. Mas, há situações onde as coisas se invertem e a vingança feminina aparece com todo o seu furor.

Nas classes médias, onde elas têm mais poder, facilmente, a vingança feminina se materializa, com a ajuda das instituições de Estado, no fundo conservadoras e defensoras da ordem tradicional. O fenômeno da alienação parental afeta homens e mulheres. Entretanto, o mais comum que esta prática seja mais feminina do que masculina. A única solução para as relações de gênero equilibradas é que elas sejam pautadas pela real afetividade e não por interesses mesquinhos, como se viu no crime em tela.

O ódio de qualquer natureza é algo mortal e avesso a qualquer racionalidade. Só se justifica em situações de defesa de uma forte opressão. Ao adotá-lo de modo frívolo e inconseqüente, os personagens do crime em tela optaram por algo vazio e sem sentido. Deverão pagar exemplarmente pelos seus crimes, assim todos os brasileiros conscientes esperam. Todavia, este, bem como outros crimes, deveria também servir para que se compreendessem melhor vários aspectos problemáticos da sociedade brasileira.

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Luís Carlos Lopes é professor e escritor

Fonte: Carta Maior