O Contexto

Este prefácio é a introdução a uma obra, que Engels pretendia escrever desde o início da década de 1870, e que deveria se intitular ” A dialética da natureza “. Absorvido com as tarefas práticas da direção do movimento operário, e com a tarefa de concluir a edição de ” O Capital ” após a morte de Marx em 1883, Engels nunca conseguiu concluir seu projeto.

Os manuscritos preparatórios para a redação desta obra foram resgatados pelos bolcheviques soviéticos após a revolução de Outubro de 1917, e publicados em russo e alemão em 1925, por iniciativa de Riazanov. A primeira edição inglesa só apareceu em 1939, com um prólogo de J.B.S. Haldane, grande cientista e marxista britânico.

No projeto desta obra Engels tinha uma dupla preocupação : combater a influência do materialismo mecanicista e vulgar no movimento operário, especialmente alemão, e sistematizar a aplicação da dialética à natureza. Dialética que, como concepção e método, havia empregado com Marx na análise da sociedade, constituindo o materialismo histórico.

O Texto

Apesar de o prefácio ser um texto único , ele pode, para fins de leitura e estudo, ser dividido em duas partes :

• A primeira dedicada a mostrar como o desenvolvimento histórico das diversas ciências da natureza – no continente europeu, entre os séculos XV e XVIII – sugere o desenvolvimento histórico da própria natureza. Engels procura também inscrever o surgimento da ciência da sociedade, do materialismo histórico, no grande painel que desenhou da história da ciência. Esta é, sem dúvida, a parte mais forte do texto, que o credencia, por exemplo, para ainda ser estudado nos dias de hoje em cursos universitários de história da filosofia e história da ciência.

• A segunda, que pode começar na frase ” Entretanto, tudo quanto é criado acaba perecendo “, é mais voltada para estudar o problema do desaparecimento da vida devido ao esfriamento do universo. Nesta parte Engels discute, com argumentos filosófica e cientificamente consistentes, um problema que, à época, recebia bastante atenção do público culto.

Alguns Destaques da Primeira Parte do Texto

• A moderna investigação da natureza data, como toda a história moderna, dessa época poderosa a que nós , os alemães, denominamos a Reforma, depois da desgraça nacional que, por sua causa, nos aconteceu, a que os franceses chamam de Renascença e os italianos de Cinquecento, época que nenhum desses nomes explica exatamente. (…) Foi essa a maior revolução progressista que a humanidade havia vivido até então, uma época que precisava de gigantes e, de fato, engendrou-os : gigantes em poder de pensamento, paixão, caráter, multilateralidade e sabedoria.

» Faça um breve panorama dos aspectos culturais, sociais, econômicos, políticos e geográficos da época que Engels está comentando.

• A investigação da natureza forneceu alguns mártires, levados à fogueira ou aos cárceres da Inquisição.

» Você sabe que só recentemente o Vaticano ‘absolveu’ Galileu Galilei – Leia a sua biografia escrita pelo marxista italiano L. Geymonat (Editora Nova Fronteira). Você tem conhecimento da atuação da Inquisição no Brasil ?

• O ato revolucionário pelo qual a investigação da natureza declarou sua independência e repetiu, de certo modo, a queima de bulas papais, realizada por Lutero, foi a edição da obra imortal em que Copérnico, embora timidamente e já próximo da morte, lançou à autoridade eclesiástica sua luva de desafio a respeito das coisas da natureza. A partir desse ponto, as ciências naturais se emanciparam da teologia, …

» Quem foi Copérnico e qual o tema de sua obra ?

• A tarefa principal, nesse primeiro período das ciências naturais, então iniciado, era o domínio das questões mais imediatas. (…) em primeiro lugar as ciências naturais mais elementares : a ciência dos corpos celestes e terrestres; e, ao lado dela, a seu serviço, a criação e o aperfeiçoamento dos métodos matemáticos. (…) Os demais ramos das ciências naturais ficaram muito distanciados do desenvolvimento fundamental daquelas outras.

» Note que este campo do conhecimento pode ser englobado na ciência da mecânica, cujas bases foram assentadas por Isaac Newton.

• O que caracteriza esse período é a elaboração de uma peculiar concepção de conjunto, cujo centro é constituído pela noção de invariabilidade absoluta da natureza. Fosse qual fosse o modo pelo qual a natureza tivesse chegado a existir, uma vez passando a existir devia permanecer tal como era, enquanto existisse. ( … ) Em contraste com a história da humanidade, que se desenvolve no tempo, prescreveu-se à história natural um desenvolvimento apenas no espaço. Negava-se toda a modificação, todo o desenvolvimento na natureza.

» Identifique no texto exemplos de concepções presentes na ciência da época que possam ilustrar a crítica feita por Engels.

• A primeira brecha nessa concepção petrificada da Natureza foi aberta, não por um naturalista, mas por um filósofo… (…) A obra de Kant não encontrou eco imediato ; só longos anos depois, Laplace e Herschel tiveram ocasião de aplicar sua doutrina, dando-lhe fundamentos mais detalhados e impondo, gradualmente, a hipótese da nebulosa.

» Note que tais idéias desenvolvidas por Kant, Laplace e Herschel, estão hoje, no seu conteúdo científico concreto, ultrapassadas, mas a concepção geral desenvolvida por aqueles pensadores de um sistema solar, e de um universo que ‘se foi formando no transcurso do tempo’ está totalmente corroborada pela astronomia e cosmologia do século XX.

• Quanto mais profunda e exata se ia fazendo a investigação sobre a natureza, tanto mais se ia desfazendo aquele rígido sistema de uma natureza orgânica invariavelmente fixa. [Com os trabalhos, entre outros, de Lamarck, que culminam na obra de Charles Darwin, ganha corpo a teoria da evolução das espécies]. A nova concepção da natureza ficava, assim, configurada em suas linhas gerais: tudo aquilo que se considerava rígido, se havia tornado flexível; tudo quanto era fixo, foi posto em movimento; tudo quanto era tido por eterno, tornou-se transitório ; ficara comprovado que toda a natureza se movia num eterno fluxo e permanente circulação.

» Faça um breve comentário sobre a “Evolução das espécies “, de Charles Darwin, e sobre suas repercussões e implicações filosóficas e culturais.

• Darwin não teve a menor idéia da amarga sátira que escrevia sobre os homens (E especialmente sobre seus compatriotas), quando afirmou que a livre competição, a luta pela existência, que os economistas celebram como sendo a maior conquista histórica do homem, constitui exatamente o estado natural do reino animal.

» Escrita há mais de cem anos esta frase soa tão atual em uma época na qual o neoliberalismo dominante no mundo festeja exatamente o primado do mercado e da livre concorrência como expressão maior da civilização.

• Somente uma organização consciente da produção social, de acordo com a qual se produza e se distribua obedecendo a um plano, pode elevar os homens, também sob o ponto de vista social, sobre o resto do mundo animal, assim como a produção, em termos gerais, conseguiu realiza-lo para o homem considerado como espécie.

» Engels prega, portanto o socialismo como a perspectiva capaz de levar adiante o processo de humanização dos homens, enquanto que a persistência do sistema capitalista se constitui em uma ameaça a esta mesma humanidade.

Atenção!

• Apesar de se tratar de uma obra inacabada, e de seus manuscritos conterem considerações sobre a ciência que estão superadas face ao desenvolvimento científico ocorrido desde então, a ” Dialética da natureza ” comporta várias reflexões de valor mesmo nos dias atuais, e em especial seu prefácio, que é o texto sugerido para estudo, apresenta grande atualidade para a cultura marxista e para a reflexão filosófica em geral.

• O prefácio é um texto sintético, muito denso de informações, que procura mostrar como o desenvolvimento das ciências contribuiu para enfrentar as concepções teológicas de mundo herdadas do catolicismo medieval e como este mesmo desenvolvimento ulterior, em especial a partir do século XVIII sugere uma visão de um mundo em permanente transformação, de uma natureza que se desenvolve e se transforma no espaço e no tempo, enfim de uma natureza que só pode ser compreendida no processo de sua história.

Reflita e discuta

1. Que limitações para o conhecimento derivam do fato de a mecânica ter sido a primeira disciplina a ganhar tratamento sistemático na era moderna ? Note, por exemplo, que Augusto Comte, criador da filosofia positivista, sugeria para a disciplina dedicada ao estudo da sociedade a denominação de Sociologia, ou de … Física Social.

2. Quais obstáculos ao desenvolvimento do pensamento científico Engels quer assinalar com a seguinte frase : ” Copérnico, no início desse período, lança a luva do desafio à teologia ; Newton o termina com o postulado do primeiro impulso divino “.

3. Por que Engels atribui tanto papel aos trabalhos de Lamarck e de Darwin na mudança da concepção de natureza formulada pelos primeiros cientistas da época moderna ?

4. Como Engels inclui o pensamento formulado por Marx e por ele mesmo no desenvolvimento das idéias científicas ?

Para saber mais, não deixe de ler

• Notas críticas sobre uma tentativa de ‘ensaio popular’ de sociologia – Capítulo III de Concepção dialética da história – Antônio Gramsci.

• Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – Friedrich Engels.

• Friedrich Engels e as ciências da natureza – Olival Freire Jr. – Princípios n.º 39, 1995.

• A física e as leis da dialética – José Lourenço Cindra – Rev. Bras. de Ensino de Física, 20(2), 1998.

• Contradições na dialética e na lógica formal – Erwin Marquit, Princípios n.º 43, 1996.

… e assistir

• Giordano Bruno – Filme – Um excelente quadro da perseguição inquisitorial católica.

• O nome da rosa – Filme – Um belo painel da transmissão do conhecimento na Europa medieval.
· Miguel de Servet – Série de TV – Exemplo, citado por Engels, de como os protestantes não ficaram atrás da Inquisição Católica na repressão à ciência moderna.

• Galileu Galilei – Peça teatral, escrita pelo dramaturgo marxista alemão Bertold Brecht.

Com Engels a Natureza Tem História
Olival Freire Júnior

” Copérnico, no início desse período, lança a luva do desafio à teologia;
Newton o termina com o postulado do primeiro impulso divino ”
F. Engels

A leitura do Prefácio à “Dialética da Natureza”, de Friedrich Engels, deve nos levar a perguntar quais foram as principais motivações do autor na elaboração deste texto, ou seja, quais problemas ele pretendia enfrentar, bem como refletir sobre a eventual atualidade de um texto como este escrito há mais de cem anos. Estas perguntas não são de fácil resposta, especialmente porque se trata de um prefácio a uma obra inacabada. Como sabemos, ele é a introdução a uma obra, que Engels pretendia escrever desde o início da década de 1870, e que deveria se intitular ” A dialética da natureza “. Absorvido com as tarefas práticas da direção do movimento operário, e com a tarefa de concluir a edição de ” O Capital ” após a morte de Marx em 1883, Engels nunca conseguiu concluir seu projeto, e os manuscritos preparatórios desta obra foram publicados na década de vinte deste século.

Muitos pensadores marxistas têm, ao longo de todo o século XX, valorizado as reflexões de Engels sobre as ciências da natureza como estudos que estabeleceram uma dialética da natureza. Defendem este estudo engelsiano pelo seu lado ontológico, isto é, pretendem que Engels teria demonstrado que as leis e categorias dialéticas operam na própria natureza, logo operam também na sociedade e no pensamento. Efetivamente uma análise do conjunto dos manuscritos de “Dialética da Natureza” evidenciará preocupações deste tipo. Penso, contudo, que tais tentativas procuram o valor destes estudos pelo lado errado, ou pelo menos pelo seu lado mais controverso, e deixam de lado o valor, que considero inquestionável, maior destas reflexões, presente na sua dimensão epistemológica, isto é, enquanto análise crítica do conhecimento científico existente. A análise do “Prefácio” do “Dialética da Natureza” reforçará esta última posição. Ele é um texto sintético, muito denso de informações, que procura mostrar como o desenvolvimento das ciências contribuiu para enfrentar as concepções teológicas de mundo herdadas do catolicismo medieval e como este mesmo desenvolvimento ulterior, em especial a partir do século XVIII, sugere uma visão de um mundo em permanente transformação, de uma natureza que se desenvolve e se transforma no espaço e no tempo, enfim de uma natureza que só pode ser compreendida no processo de sua história.

Quais foram então as razões que levaram Engels a concentrar o “Prefácio” nestes aspectos? A primeira razão foi combater a influência, crescente na segunda metade do século XIX, de associação entre ciências da natureza e um materialismo de tipo mecanicista ou mesmo vulgar. Os porta vozes desta identificação eram muitas vezes membros atuantes do próprio movimento socialista, como Büchner, ou então acadêmicos que se pretendiam socialistas, mas divergiam em questões essenciais das formulações engelsianas e marxianas, como Dühring. Foi esta motivação propriamente militante que levou Engels a escrever o “Anti-Dühring” e a iniciar os estudos sobre a pretendida obra “Dialética da Natureza”, inconclusa devido ao seu envolvimento com a edição d’ “O Capital”, após o desaparecimento de Marx, em 1883. Note-se que na luta contra o materialismo mecanicista, Engels quer precisar a insuficiência de seus aspectos dialéticos, ou a sua insuficiente historicização dos fenômenos naturais e sociais.

Uma outra razão é, precisamente, a influência das idéias científicas na constituição das “visões de mundo”. Aqui cabe assinalar que Engels, e Marx, buscavam abrir caminho no cenário cultural do século XIX, para a tese do capitalismo como uma etapa histórica, a ser superada, no desenvolvimento das sociedades. Esta tese se acomoda melhor a uma visão de mundo onde sociedade e natureza estão em permanente transformação que a uma visão de mundo, como aquela dominante na ciência do século XIX, onde a natureza efetua movimentos, mas movimentos cíclicos, repetitivos, estacionários, isto é, sem evolução no tempo. Assim é que se compreende o entusiasmo de Engels e Marx com o trabalho de Charles Darwin – A origem das espécies – com a teoria da evolução. A visão de um universo estacionário estava ancorada, por outro lado, na principal realização da ciência moderna até meados do século XIX, a elaboração da mecânica por Isaac Newton. Por esta razão é que Engels precisava criticar a visão de mundo decorrente da mecânica newtoniana, ou pelo menos decorrente de como os séculos XVIII e XIX leram a obra de Newton.

Se estas observações são fundamentadas, posso chegar à conclusão de que ao enfrentar o que era o seu principal problema – combater uma visão de mundo mecanicista, estacionária – Engels fez reflexões que guardam interesse histórico, mas que também se projetam para os nossos dias pela sua atualidade. Dito de outro modo: dos estudos inacabados de Engels, sobre as ciências da natureza, a reflexão mais profunda, a meu ver, é a análise crítica da disciplina científica que havia adquirido um elevado grau de acabamento no século XIX, a mecânica clássica, formulada originariamente por Isaac Newton no século XVII, com desenvolvimentos ulteriores de Maupertuis, Euler, D’Alembert, Lagrange, Laplace e Hamilton, dentre outros. Tais críticas foram formuladas em período no qual a “sacrossanta” mecânica newtoniana desfrutava o seu apogeu entre os cientistas, e não se acumulavam problemas que indicassem uma possível crise nos fundamentos desta teoria.

Apoiando-se exclusivamente em considerações filosóficas de ordem dialética, Engels considerou o tipo de determinismo, implícito na mecânica clássica, como forma de fatalismo , e, em uma das mais belas páginas literárias da história da ciência , criticou a mecânica newtoniana pela sua cosmologia (logo pela sua visão de mundo implícita) estacionária, sem história, sem desenvolvimento, enfim um mundo dominado por uma descrição fatalista, defendendo um universo que evolui, desenvolve-se no espaço e no tempo. Neste sentido, talvez este seja o trecho mais expressivo do “Prefácio’: “O que caracteriza esse período é a elaboração de uma peculiar concepção de conjunto, cujo centro é constituído pela noção de invariabilidade absoluta da natureza. Fosse qual fosse o modo pelo qual a natureza tivesse chegado a existir, uma vez passando a existir devia permanecer tal como era, enquanto existisse. ( … ) Em contraste com a história da humanidade, que se desenvolve no tempo, prescreveu-se à história natural um desenvolvimento apenas no espaço. Negava-se toda a modificação, todo o desenvolvimento na natureza.”

O leitor, instruído cientificamente pelas aquisições da física do século XX, verá nestes “insights” engelsianos um prenúncio das teorias relativísticas e quânticas, e da cosmologia do nosso século, admirando-se, portanto da imensa atualidade das idéias engelsianas nas ciências da natureza, e, principalmente, admirando-se do valor, para o desenvolvimento da cultura, da análise crítica dos conhecimentos científicos existentes, valor do qual a análise de Engels é um exemplo clássico. No seu esforço de crítica, ao que poderíamos chamar de newtonianismo, nem sempre Engels formulou os melhores argumentos , mas a fraqueza destes, revelada apenas com o desenvolvimento ulterior da ciência e da história da ciência, não diminui, contudo, o valor atual dos manuscritos inacabados de Engels enquanto obra crítica, em especial de crítica ao mecanicismo.

Arrisquei há algum tempo atrás a conjectura de que se a “Dialética da Natureza” tivesse sido efetivamente publicada em fins do século passado seu impacto na cultura e na ciência teria sido comparável à influência – suprema ironia para a história do marxismo – da crítica à mecânica desenvolvida por Ernst Mach. Suprema ironia porque, como se sabe, Mach foi um dos principais alvos da crítica de Lênin no Materialismo e Empiriocriticismo. A crítica de Lênin dirigia-se, contudo, ao Mach filósofo, e não ao Mach físico, como aliás ressaltado por Lênin. A contribuição de Mach, que aqui me refiro, prende-se precisamente à sua crítica epistemológica à mecânica newtoniana, a qual contribuiu para abalar a confiança ilimitada que se tinha na ciência newtoniana, contribuindo deste modo, ainda que indiretamente, para abrir caminho ao surgimento da teoria da relatividade, teoria física que está na base da concepção cosmológica contemporânea de um universo em desenvolvimento.