Ela nunca amou o Matias. Disse a vizinha, no enterro do homem, à outra vizinha, em frente ao caixão.

      Ali, deitado, com as mãos sobre o umbigo, estava o conhecido marceneiro do bairro. Morto há dois dias por sua própria esposa, a Isaura, com uma facada certeira na parte anterior da coxa esquerda, enquanto o Matias dormia, depois de ter chego, pela terceira noite seguida, a oitava só em setembro, com cheiro de mulher e promiscuidade.

      Há dias ela passava horas na cozinha, de pijama, amolando a faca de carne no velho esmeril. Pensando no quanto sua honra de mulher, de mãe, de esposa, precisava ser defendida. Nos tempos das brigas, em que apanhava, já havia pensado em agir contra o marido, em dar fim ao casamento de mais de vinte anos, com um exemplo a todos os homens do bairro.

      Não foram poucas as vezes que tentou mandá-lo embora de casa, mas, em todas, a força falou mais alto e as cicatrizes, no corpo e na alma, multiplicaram-se. O desgaste, a ferrugem dos anos levou o marido para os braços das “madalenas”, como eram chamadas as prostitutas do Alto da Major Duarte. Sempre chegando tarde, espancava a mulher quando a encontrava no trajeto da sala ao quarto, onde ela já não dormia há cinco meses. Matar foi a única solução.

      Chegou bêbado.

      Matias foi direto para a cama. Nem viu a Isaura na cozinha. Ela subiu em seguida. Antes de ir até o marido, passou pelos quartos dos dois filhos, que estudam na capital, e deixou sobre as escrivaninhas um pequeno bilhete, igual para os dois, em que dizia ter suportado em silêncio uma vida de sofrimentos, desejando sorte e pedindo perdão. Em seguida, pegou sua pequena bolsa e uma mala, onde guardou poucas roupas, muitas fotos, algum dinheiro e toda sua desilusão, e a posicionou no corredor, em frente à porta onde o marido já roncava. Voltou até a mesinha do telefone onde, enrolada em um pano, deixara a faca.

      De posse desta, caminhou até o pequeno altar, montado no fim do corredor, e pediu à imagem de Nossa Senhora Aparecida perdão pelo que faria e benção à arma do crime. Disse baixinho estar pronta para dar um basta e depois pagar pelo pecado de matar o próprio marido indo morar em algum lugar distante, longe dos filhos e de sua casa: sepulcro, sem lápide, dos sonhos do dia do casamento.

      Fez o sinal da cruz e rumou para o quarto, pela porta entreaberta, guiada pela penumbra da pouca luz que vinha da rua e passava pela fresta triangular, de base ao solo e vértice no varão, formada pelas partes da cortina, escolhida pelo casal, quando ainda aparentavam ser felizes.

      Lá estava o marido: barriga para cima, mãos sobre o umbigo. A diferença entre aquele momento e este é que, naquele, ele não usava terno e as pernas estava abertas, expondo a veia vital (e mortal). Pouco sabia ela de anatomia, mas, para os assassinos, há um espírito interventor que sempre aponta o caminho do golpe certeiro. Ela chegou a pensar na jugular. Mas quis deixar o futuro morto apresentável para o velório, seria melhor para os filhos, disse a ela o espírito de mãe, sempre presente.

      Matar com arma branca é sempre mais tenso para quem executa. A distância é menor e o risco da reação da vítima é iminente.

      Como se matar fosse uma virtude sua, Isaura não precisou de um segundo golpe. Entrou perpendicularmente no ponto exato da artéria e seguiu sua rota por cerca de vinte centímetros, sem sequer perder o eixo. Iniciou o corte cirúrgico perto da virilha e terminou próximo ao joelho, quando, com a mesma precisão, tirou a faca. O marido pouco se moveu. Morreu alcoolizado e fedendo gozo.

      Ela abandonou sutilmente a faca sobre o criado-mudo, pegou a velha mala e sua bolsa e, tomando o táxi do ponto da esquina, sumiu na madrugada rumo a qualquer lugar onde possa, agora, viver em paz.

      No velório, frente à tristeza dos filhos, agora órfãos de pai e mãe, a vizinha ainda brada: bem feito.

Luiz Henrique Dias é escritor, membro do Núcleo de Dramaturgia do SESI de Curitiba e estudante de Arquitetura e Urbanismo e Gestão Pública. Ele escreve todas as segundas no Jornal A Gazeta do Iguaçu. Leia mais no www.blogdoluiz.com.br ou siga o Luiz no twitter @LuizHDias.