Hoje terminei uma fase de minha vida: o primeiro ano no Núcleo de Dramaturgia. São dois. E não foi fácil. Primeiro precisei encarar uma seleção concorrida em que eu, por não ter conseguido escrever um texto no prazo dado, precisei participar com uma peça infantil (a qual eu não colocava fé alguma), escrita na correria para o Grupo de Teatro do Colégio Cooperativa, que a encenou em três ou quatro ocasiões. E só. O mesmo texto já havia sido rejeitado dias antes por um grupo de Foz do Iguaçu e representava, para mim, um calo bem dolorido. Mas era o único texto completo e metodicamente escrito, fruto de minha nova fase no teatro, que começou em 2007. Surpresa minha: estava eu na casa do Fumasa, em São Paulo, quando recebi a notícia da seleção.

      Era um 20 de março e eu estava na capital paulista apresentando um Sarau e organizando o tour do Vinícius Piedade no oeste do Paraná. Comemorei com algumas ligações (mãe, Gabi, etc) e pedindo uma pizza. Não sabia ao certo como funcionava o projeto. Não sabia ao certo o que se fazia em um Núcleo de Dramaturgia. As poucas informações vinham de meu amigo Medina, conhecedor dos projetos na área de dramaturgia e literatura. Mas encarei a bronca.
Aula inaugural com Mário Bortolloto e Roberto Alvim. Tudo que eu acreditava no teatro brasileiro reunido em uma mesa redonda.

      Foram “algumas” viagens à Curitiba. Saídas de Foz do Iguaçu, em manhãs quentes ou chuvosas ou geladas e sempre repletas do sono clássico sentido nos voos de começo do dia. No avião, corria atrás do tempo que eu nunca tinha durante a semana para escrever os textos, ler as peças, estudar os materiais indicados. Era para mim um projeto pessoal. De empenho totalmente pessoal. Sempre escrevi contos e peças teatrais como amador e precisava, pelo menos um pouco, me profissionalizar. Sem falar no dinheiro para bancar as viagens aéreas nas terças.

      Lá, no Núcleo, era um peixe no deserto. Em minha frente o Roberto Alvim. O cara que dirigiu a peça ganhadora do Bravo. Professor de dramaturgia em São Paulo e diretor do Club Noir (minha velha paixão na Augusta). O cara que traduz e monta as peças contemporâneas mais faladas no circuito nacional de teatro. Matéria na Folha. Matéria na Bravo. Matéria no JB. O cara é o cara. E estava lá, há poucos metros, perguntando “vocês já leram Pinter?”, “conhecem Fosse?”, “leram todas as obras do Beckt?”. E todo mundo lá, menos eu, conhecia boa parte das indicações. Todos envolvidos até os dentes com teatro, cinema, literatura e eu, pobre mortal, comunista, ator de quinta, professor de pré-vestibular, estudante de Arquitetura fora da faculdade, fingindo ser o cara, mas longe de ser.
Mas a gente estuda, né?

      E lá vou eu estudar teatro, ver peças, ler livrinhos, fazer cópia dos materiais. A Gabriela sempre ali, lendo comigo, me dando força, vivendo em simbiose crítica com os materiais que eu trazia do núcleo. Tenho uma tese: ela termina esse ano mais resolvida em teoria teatral que eu. Mas tudo bem.

      Autores novos. Autores consagrados. Peças únicas. Tudo passou por minha escrivaninha. Mudei minha concepção de arte, não só teatral. Descobri que minhas cinco disciplinas de arte na faculdade de arquitetura pouco serviram (coisas de UDC) e saí do modernismo desenfreado que a faculdade me enfiou, sem saber bem como era, mas cômodo, para descobrir onde mora minha estética pessoal: dentro de um mundo minimalizado, penumbroso e, ao mesmo tempo, colorido. Mas com cores insinuadas pela escuridão. Ali fica o escrita, desenho, a pintura, a plástica, a arquitetura e o teatro.

      E vim para o mundo das sombras.

      O resultado foi apresentado ontem.

      Em uma sala de ensaios pouco iluminada na Rua Treze de Maio, em Curitiba, numa mesa redonda, de madeira crua, com um cheiro de cigarro sufocante para um alérgico como eu, sentei frente à frente com Roberto Alvim. Era a primeira vez que eu me diria diretamente a ele em todo o ano. Pouco ele sabia que eu frequentava seu espaço em São Paulo para escrever contos, antes mesmo do Núcleo. Pouco ele sabia como suas aulas e suas peças contribuem para a criação de minha concepção estética. Mas ele, com aquele seu jeito carioca de “sempre estar com o pé na malandragem”, disse “terminou?”. Eu tremia. Era a primeira vez, em 12 anos de literatura amadora e dramaturgia desprendida de responsabilidade, que eu apresentava um texto meu. Ainda mais para ele.

      “Sim.” E tirei as cópias do Atenuantes. Vamos ler os dois? “Não” – disse ele – “eu vou ler o texto todo e você vai ouvindo.” E ele matou o cigarro e começou a ler as vinte e sete páginas. Uma a uma. Na primeira rubrica soltou “a proposta é do caralho.”. Me acalmei um pouco. Na segunda página perguntou se o poema lido pelo personagem Kill era do Edgar Alan Poe. Era meu. Depois a leitura seguiu e, ao final, ele soltou um “Ótimo texto. A tensão foi mantida durante toda a peça. Os personagens são bem elaborados. O Kill é podre mas chama a simpatia do leitor. Agora você manda para os caras da diagramação e depois revisa, porque eles cagam o texto dos outros. É só publicar. Parabéns.”, me deu um abraço e acabou.

      Saí de lá anestesiado. Foi o prêmio pelas noites em claro e pela vontade de mudar de vez essa minha vida tão enroscada e de incertezas. Talvez o Alvim não saiba o quanto ele resolveu uma das minhas maiores amarras de consciência. Sempre quis escrever pra valer, mas faltava coragem. O caminho ainda é muito longo, mas ficou bem mais claro agora.

      Agora é terminar meu curso de Arquitetura e aprimorar a escrita. É isso que farei de minha vida nos próximos dois anos, paralelo ao meu trabalho diária para ganhar dinheiro para manter os projetos. Afinal, viver de escrita no Brasil é para poucos. Mas vou destinar parte de meu tempo para isso. Uma parte maior, confesso.

      Em 2011, voltando ao curso de arquitetura, vou simplificar mais minha concepção de projeto, fruto de uma dramaturgia intimista. Ao mesmo tempo vou rebaixar as alturas, iluminar pouco, tornar o mundo um palco tenso e vivo. Vou escrever dentro desses e para esses espaços. Vou abdicar (já havia feito isso), do teatro escrito para o modelo italiano de plateia e, na arquitetura, dos estereótipos desse mundo acomodado, de massa, de maioria. Vou imaginar a vida como disposta a ser fotografada.

      Parece dialética, mas a arte é uma só. Independente de onde atua-se.

      Como será 2011 ainda não sei. Agora, como serão minhas madrugadas, já sei bem. Minha mesa de desenho e me computador ficarão fartos de me ver.


Luiz Henrique Dias é escritor, membro do Núcleo de Dramaturgia do SESI de Curitiba e estudante de Arquitetura e Urbanismo e Gestão Pública. Ele escreve todas as segundas no Jornal A Gazeta do Iguaçu. Leia mais no www.blogdoluiz.com.br ou siga o Luiz no twitter @LuizHDias.