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    Comunicação

    Copa do Mundo de 70

    I / MEU CORAÇÃO NO MÉXICO Meu coração não joga nem conhece as artes de jogar. Bate distante da bola nos estádios, que alucina o torcedor, escravo de seu clube. Vive comigo, e em mim, os meus cuidados. Hoje, porém, acordo, e eis que me estranho: Que é de meu coração? Está no México, voou […]

    POR: Carlos Drummond de Andrade

    I / MEU CORAÇÃO NO MÉXICO

    Meu coração não joga nem conhece
    as artes de jogar. Bate distante
    da bola nos estádios, que alucina
    o torcedor, escravo de seu clube.
    Vive comigo, e em mim, os meus cuidados.
    Hoje, porém, acordo, e eis que me estranho:
    Que é de meu coração? Está no México,
    voou certeiro, sem me consultar,
    instalou-se, discreto, num cantinho
    qualquer, entre bandeiras tremulantes,
    microfones, charangas, ovações,
    e de repente, sem que eu mesmo saiba
    como ficou assim, ele exalta
    e vira coração de torcedor,
    torce, retorce e se distorce todo,
    grita: Brasil! com fúria e amor.

                                                                                   Jornal do Brasil, 09/06/70

    II / O MOMENTO FELIZ

    Com o arremesso das feras
    e o cálculo das formigas
    a Seleção avança
    negaceia
    recua
    envolve.
    É longe e em mim.

    Sou o estádio de Jalisco, triturado
    de chuteiras, a grama sofredora
    a bola mosqueada e caprichosa.
    Assistir? Não assisto. Estou jogando.
    No baralho de gestos, na maranha
    na contusão da coxa
    na dor do gol perdido
    na volta do relógio e na linha de sombra
    que vai crescendo e esse tento não vem
    ou vem mas é contrário… e se renova
    em lenta lesma de replay.
    Eu não merecia ser varado
    por esse tiro frouxo sem destino.
    Meus onze atletas
    são onze meninos fustigados
    por um deus fútil que comanda a sorte.
    É preciso lutar contra o deus fútil,
    fazer tudo de novo: formiguinha
    rasgando seu caminho na espessura
    do cimento do muro.

    Então crescem os homens. Cada um
    é toda a luta, sério. E é toda arte.
    Uma geometria astuciosa
    aérea, musical, de corpos sábios
    a se entenderem, membros polifônicos
    de um corpo só, belo e suado. Rio,
    rio de dor feliz, recompensada
    com Tostão a criar e Jair terminando
    a fecunda jogada.

    É gooooooooool na garganta florida
    rouca exausta, gol no peito meu aberto
    gol na minha rua nos terraços
    nos bares nas bandeiras nos morteiros
    gol
    na girandolarrugem das girândolas
    gol
    na chuva de papeizinhos picados celebrando
    por conta própria no ar: cada papel,
    riso de dança distribuído
    pelo país inteiro em festa de abraçar
    e beijar e cantar
    é gol legal é gol natal é gol de mel e sol.

    Ninguém me prende mais, jogo por mil
    jogo em Pelé o sempre rei republicano
    o povo feito atleta da poesia
    do jogo mágico.
    Sou Rivelinho, a lâmina do nome
    Cobrando, fina, a falta.
    Sou Clodoaldo rima de Everaldo.
    Sou Brito e sua viva cabeçada,
    com Gérson e Piazza me acrescento
    de forças novas. Com orgulho certo
    me faço capitão Carlos Alberto.
    Félix, defendo e abarco
    em meu abraço a bola e salvo o arco.

    Como foi que esquentou assim o jogo?
    que energias dobradas afloraram
    do banco de reservas interiores?
    Um rio passa em mim ou sou o mar atlântico
    passando pela minha cancha e se espraiando
    por toda a minha gente reunida
    num só vídeo, infinito, num ser único?

    De repente o Brasil ficou unido
    contente de existir, trocando a morte
    o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste
    por um momento puro de grandeza
    e afirmação no esporte.
    Vencer com honra e graça
    com beleza e humildade
    é ser maduro e merecer a vida,
    ato de criação, ato de amor.
    A Zagalo, zagal prudente,
    e a seus homens de campo e bastidor
    fica devendo a minha gente
    este minuto de felicidade.

                                                                       Jornal do Brasil, 20/06/70

    Quando é dia de futebol; pesquisa e seleção de textos Luis Maurício Graña Drummond, Pedro Augusto Graña Drummond. – Rio de Janeiro: Record, 2002, pág. 109.

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