Sentinela Nordestina na Guarita do Extremo-Norte

Esta gente
me prestem um pouco de sua atenção:
já que se vai completar 400 anos de invenção da Amazônia
quero fazer o elogio dos combatentes da República federativa brasileira
levantar a mina de panfletos da saga “Sentinela da Liberdade”
de sul a norte semeada ao vento pelo pensamento libertário
brotada ali e acolá por onde houvesse tipógrafo atrevido
gráfica improvisada ou simples folheto manuscrito sem medo
dos senhores donos do Poder e de seus esbirros sanhudos
por principal Sentinela a lavra do pedreiro-livre vermelho Cipriano Barata
decano da imprensa carbonária na fátria imortal de Tiradentes.

Velhos camaradas mortos, porém ressuscitados na memória da “res publica”
continuados por blogueiros e ativistas do arromba
na voz das ruas, a Mídia e a maioria de votos do povo nas urnas
a esteira de redes sociais de conexão planetária
graças à revolução democrática da C&T enquanto dantes
eram “papelinhos incendiários”
manuscritos no grito fazendo despertar a consciência social
dando margem agora – às vezes sem saber – ao povo
da Ágora eletrônica pra fazer sítio da Utopia no ciberespaço
povoado de neurocorações e mentes-sementes
ansiosas por habitar o templo do “Santo espírito” e refundar a República.

No continente norte-nordestino do Brasil
louvo sobretudo a lavra brava do cearense Vicente Ferreira Lavor Papagaio
redator da histórica “Sentinela Maranhense na Guarita do Pará”
arauto da Cabanagem em nome do padre paraense Batista Campos
Lavor foi conterrâneo do presidente cabano Eduardo Angelim
este último migrante da família Nogueira de Aracati-CE
morador de Belém, na Campina, velha aldeia indígena e bairro de pretos libertos
por acaso zona de meretrício da cidade e memória da batalha de Riachuelo.

Ai de mim assim!
Tal qual índio sutil desterrado na confusão cartográfica do Mapa das Cortes, desnorteado agora eu quero saber quem inventou o mundo e aonde foram parar as conexões secretas da república da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão, Pará, Amapá, Amazonas até os confins do Acre na construção do grande norte do Brasil-República
em árdua luta contra taras das capitanias hereditárias do Brasil-Colônia.
Promover comemoração justa e perfeita de quatro séculos de invenção
da nossa Amazônia verde e amarela, seu coração cabano encarnado no povão
que nem vulcão invisível pulsando no fundo da terra dos Tapuias.

Mostrar pegadas do Gigante a despertar no caminho do Maranhão
florão da América libertada
revolução Pernambucana, Confederação do Equador
províncias unidas pela dor e esperança da república popular brasílica
gloriosa Cabanagem infinda:

trinta mil heróis finados sob império caramuru
levantados do chão encharcado de sangue, suor e lágrimas
já multiplicados por 100 e por 1000 cabocos pan-amazônicos
confraternizados por milites de Bolívar e seu general pernambucano Abreu e Lima
a fim de erradicar afinal a indecente escravatura paga a matadores dementes
mediante soldo por orelha decepada a cadáveres cabanos
rosário de crimes contra a humanidade desde a chegada de Colombo
que nem na Ditadura a louca e imoral repressão à guerrilha do Araguaia
brava gente irmanadas pelo sangue e o fogo
no rio do tempo e espaço na resistência à Tirania colonial
desde o levante tupinambá de 7 de janeiro de 1619
o cacique guerrilheiro Cabelo de Velha no Pará e Pacamão em Cumã, Maranhão
contra propaganda do mercador Simão Estácio da Silveira,
engano desumano dos casais dos Açores.
Ai que dores! O parto da história na conquista do rio das Almazonas.

Ato inaugural da peleja popular do Maranhão e Grão-Pará
luta renhida da República federativa em gestação no útero da História
corpo e alma adversa à lenda do Grito do Ipiranga
dado o golpe neocolonial pra abortar a Independência republicana
(arquitetada pacientemente na Maçonaria vermelha do Rio de Janeiro)
visceralmente oposta ao tacão monarquista urdido em Londres
tendo Portugal sempre por laranja
ressurreição sebastianista do luso Tiradentes na contramão à fina força
da inventiva sertaneja sob proteção do Padre Cícero e de São Benedito
dos homens pretos
resultado vivo na catolicidade afro-amazônica
fruto do amasio da índia tupinambá com o cristão-novo metido a caraíba.
Ceará impossível!
O primeiro passo em Jaguaribe na conquista do rio das Amazonas
Refazenda da diáspora judia, massagada árabe, sincretismo afro-brasileiro
Criaturada grande a bordo do espaço norte-nordestino
fado, sina e forró virando carimbó para todos na mestiçagem tropical.

Dar vivas ainda que tardias à liberdade, igualdade e fraternidade
elogiar o atiçador de revoltas de retirantes da seca no rio das Almazonas
camarada arigó de índios ajuricabas e nheengaíbas rebeldes
pretos de mocambo e cabocos ribeirinhos cabanos mato adentro
vingadores de pobres açorianos enganados
contágio republicano de Caiena ocupada pela invasão militar luso-saxônica
“papelinhos incendiários” de contrabando, notícias abolicionistas
da revolução dos escravos do Haiti a bordo de navios de carreira
até aqui a invenção d’Amazônia prestes a completar 400 anos.

Com ardor Lavor contradiz a fama de coronéis do sertão
desmonta a indústria da seca, fecha o almoxarifado do Grão-Pará
rufa tambores de guerra na hora da sesta da baronia da Borracha.
A coisa pública vai ou racha!
Ainda hoje a Sentinela Maranhense arruína a mina de exportação do El-Dorado
bate sem dó no agronegócio do ócio de donos dos incentivos fiscais
etecetera e tal.
Alui a sustentação da exploração do trabalho escravo e devastação da natureza
com certeza, comprados por 30 dinheiros a gatos filhos da porca mãe Miséria.
O panfletário de Icó manda ao inferno o despacho de gado humano ao Pará
aqueles uns que tiram sertanejo da peia só quando não há chuva no sertão
e mandam pobres “negros da terra” pra devastar a Floresta Amazônica
que nem José do Egito vendido por seus irmãos ao Faraó
sempre com o velho ditado do espaço vazio:
“homens sem terra para terra sem homens”.

Claro, primeiro despovoaram de tapuias a multidão do Rio Babel
depois de feito o vazio com genocídio do dito rio há que repovoá-lo
desta feita como outrora o Maranhão deserto de casais açorianos:
portanto é sorte, seca no Nordeste e mato com águas frescas no Norte…

Não, senhores! Chega de tonta dormideira…
Na pena carbonária do Papagaio de Icó misturada a este engenho caboco
a história é outra:
aqui arigós fogem da seca e da sanha de exploradores do suor alheio
refugiam-se nos rios os mais distantes e sangram a seringueira
feiticeira dos matos do extremo norte.
Um seringueiro brabo quando amansa a terra agreste domestica-se tembém
Se faz o homem igual à seringueira leiteira,
mas quando ele toma rumo não deixa o caso por menos que Chico Mendes…
Claro! A Cabanagem antecedeu a “belle époque”
mas a “Sentinela Maranhense” foi premonitória também
do Corpo de Trabalhadores e “voluntários” da Pátria
capturados para a Guerra do Paraguai como a “anistia” de 1840
no rescaldo da grande combustão amazônica…

Muitos cabanos eram nordestinos tais quais os cearenses Lavor Papagaio
e Eduardo Angelim
arigós brabos que se tornaram amazônidas com a gente e o chão nativo:
a educação pelo barro não é menos difícil que pela pedra dura no sertão.
Não poucos sertanejos mataram índios e morreram a flechadas
na selva virgem por amor aos seringais
enquanto navios mercantes iam e vinham com aviamentos e passageiros
barões assinalados da Borracha se divertiam na Europa.
No fim da história tem muito sangue nordestino derramado neste chão
misturado a sangue de índio e negro africano transformado em mercadoria
a custo de suor e lágrimas nas águas amazônicas conquistadas.
Invento histórico de Olinda, Nova Lusitânia; marcha acelerada
para fundação de Feliz Lusitânia do Pará na ambição do El-Dorado:
prosseguimento geopolítico da saga do Bom Selvagem
em busca da Terra sem mal, utopia mor do Brasil tropical para o mundo.

Só pra refrescar a memória pátria: a utopia selvagem põe fé no rio e na rua
que nem o Círio de Nazaré em outubro em Belém do Pará
achamento duma terra da promissão no antigo país dos Tapuias
lugar mítico que vale por manifesto político
onde não há fome, trabalho escravo, doença, velhice e Morte…
Baita patrimônio imaterial da humanidade
que um dia não muito longe da história do futuro
será tombado pela ONU a pedido talvez de laureados do Prêmio Nobel
derradeira queda do muro que separa “bárbaros” e “civilizados”…

Agora que sou homem feito não estou preparado senão pra morrer
mas sei que o espírito das cabanas é o fim do mundo desigual
com prova nas barracas dos indignados de Wall Street e doutras praças
tudo é cabanagem: idéia da sustentabilidade econômica pela mão de obra
desde o dia que o primeiro homem disse não
à invasão de seu território pelo outro
que, por loucura, queria se adonar do mundo…
Começou assim a odisséia da “res publica” no vasto mundo
sobre ruínas de impérios mortos e aldeias assassinadas
moídas nas engrenagens da máquina-vapor
e atropeladas pelo deus-Progresso a beira de caminhos de ferro
o impávido colosso industrial do Mercado.
Pode ser que até o fim dos tempos
a humanidade filha da animalidade venha a domesticar
o homem lobo do homem
reencontrar equilíbrio entre Natureza e Cultura…
Até lá, haverá luta de classes, guerras frias ou quentes
buscas da Terra sem males ou a Salvação no outro mundo
com ópio para todos.

A inata condição humana da cabanagem geral
persistirá até o fim de casas grandes e senzalas
contra o ‘apartheid’ entre 1% de gente rica comendo
quarenta por cento do PIB planetário e 99% da humanidade
condenada a se bater pelo resto deixado da parte dos leões
deste modo os mais fracos acabarão devorados pela Fome
em meio à maldição de Midas.

Ah, que a quixotada me levou com a canoa doida
por mares nunca dantes…
Quando eu só queria fazer elogio a um certo panfletário
da “Sentinela Maranhense na Guarita do Pará”, cearense de Icó,
chamado Vicente Ferreira Lavor Papagaio explosivo que nem o raio.

   José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da amazônia marajoara".

autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com