Yes, nós temos doutor honoris causa!

Por causa disto, acho que lá no país do sem fim
terra sem males por excelência
a academia do peixe frito encantada está em festa
devido ao país chamado Grão Pará, república popular do Ver O Peso
a Universidade Federal do Pará consagrar
mestre Vicente Juarembu Salles
com o magnífico e justo título de Doutor Honoris Causa.

Ora, senhoras e senhores
Nosso Dr. h.c. é PhD da universidade da maré
quem for dotado de imaginação imagine
que vidente for, por favor, veja
o reboliço do infinito com o poeta rei do batuque
Bruno de Menezes reunindo na raiz das estrelas
a plêiade parauara
Tó Teixeira paresque afinando violão
com as cordas do vento nas alturas
Rodrigues Pinajé tecendo versos na cauda dum cometa
Dalcídio Jurandir como o próprio nome diz
transformando pensamento na luz de um relâmpago
pra dar recado da sua criaturada grande…

Na majestade do ‘campus’ o ato solene cresce sobre as margens
do Guamá.
Rio de Guaiamã devia dizer-se
e foi bem por esta honorável causa de Vicente
que o cacique dos Aruã e Mexiana dava guerra a antigos invasores
da terra Tapuia desde Tapui-Tapera do Maranhão…
arquitetando ideias no tecido do discurso de saudação
o orador Flávio Sidrin Nassar foi preciso:
“Vicente é um enciclopedista que escapou do século das luzes”…
Sim, pra nos esclarecer, sobretudo sobre a longa noite da escravatura.

Vicente é negro da terra, como tantos outros brancos de alma preta
através do arco de gerações nômades da primitiva diáspora
desde o berço sagrado da humanidade na África distante:
a Amazônia quatrocentona, última fronteira da Terra
tem o seu Dr. h. c. de primeira,
último moicano da academia do peixe frito
portador do archote libertador mato adentro
com o mocambo da Maravilha em mente
onde cabanos se refugiaram com a semente da revolução
até amanhecer a manhã duma verdadeira democracia.
A enciclopédia viva onde o menino do Caripi foi beber
havia cara de muita gente
veio que nem a Bíblia com povoadores da colônia de Benevides
correr a galope de cavalo-vapor na estrada de ferro Belém-Bragança
misturando tempos e espaços diferentes às margens da linha do trem
onde a imigração de sonhos estrangeiros veio confluir
ou bater de frente com a migração nordestina
e a criaturada grande de Dalcídio Jurandir, índio sutil
filho de branco e mãe preta
a resistência tapuia de sempre incorporada por orixás e vóduns
inteligência caboca sob padroado de santos lá não tão católicos…

Com o rio de Guaiamã, o índio provocador do furto do café de Caiena
passando às ilhargas da universidade, o orador arquiteto
ele mesmo quem sabe inspirado pelos turcos encantados de casa de Mina
inventa um supercomputador de sangue azul, o “Blue Dream HP 99”
máquina capaz de botar no chinelo qualquer vidente
e até mesmo de deixar de cabeça baixa o computador “Giovanni Gallo”,
do museu do Marajó…

Com tal engenho da máquina do tempo podemos formular perguntas
fora de série: já se sabe que não são as respostas, mas as perguntas
que movem o mundo…

“Que futuro poderia sonhar este menino?
Será ele violinista, como sonha?
Dar consertos pelo mundo?…”
Advogado, bacharel, político, militar, padre… maquinista, tabelião.
Em 1946 Getúlio Vargas cai e com ele lá se vai o emprego
do pai de Vicente em Castanhal e aí a família vem pra Belém…
morava na rua Santarém, na Cidade Velha: um vizinho era poeta
anarquista, um certo Bruno de Menezes
outro vizinho era comunista, o sapateiro Dagoberto Lima:
um e outro foram para o menino de Caripi, Igarapé Açu,
seus grandes mestres.

Lá vai ele com o Bruno a terreiros de macumba, batuques, bois,
Pássaros juninos: era a academia do peixe frito em trabalho de campo
Nunes Pereira, Jacques Flores, Eneida de Moraes, Rodrigues Pinajé…
Errância pela Campina, noitadas pela Zona como o festival das amazonas
Ver O Peso, Café Santos, Café Manduca…

Passa cinco meses no Salgado: curso intensivo de carimbo e marujada
Em Maiandeua, praia da Princesa, portal paresque da Terra sem mal
Vicente teve o corpo fechado e livre de todos os males desta vida
por mãos de mestre Atanásio: o menino de Caripi havia muita curiosidade

“Tontom é bela
Cortei o pau
Fiz a gamela
Depois vendi
Fiquei sem ela.”

Nada melhor do que encerrar com as palavras inspiradas o orador oficial da cerimônia do ‘campus’ Guamá, diz o doutor Nassar:

“Vicente nos ensinou que um outro mundo é possível.

A trajetória intelectual de Vicente Salles é um modelo inspirador para esta travessia. Ela foi muito mais contemporânea, muito mais criativa, muito mais rica, porque foi feita em rede, interagindo em sistemas abertos, foi feita com livros e gentes, nas bibliotecas e ruas, nas praças, na Academia com acadêmicos e na Academia do Peixe Frito, no Ver-o-Peso, com poetas e vagabundos, na internet, no Google, na Wikipedia, e não pára, conectado, na rede, ligado, na web, wireless, sem fio, banda larga.

“E assim chega ao final a peleja, o desafio do menino e sua gente: violeiros e soldados, engraxates, sapateiros, taberneiros, violinistas e poetas, pai-de-santos e moleques, batuqueiros, anarquistas, comunistas, contra o destino traçado nas linhas tronchas da vida. E se isso fosse pouco, ainda teve que enfrentar, essa ave mau de agouro, esse tal de urubu, que se chama sonho blue.

“E agora vai o menino, 80 janeiros tinindo, enfrentar a máquina azul, olho azul no azul da máquina:

“- E ai espelho meu, grilo falante de chips, Madame Tarabian de meia tigela, cigana cega do destino, profeta desastrado  erraste de cabo a rabo, fracassaste de fio a pavio.
Estou aqui, cheguei aqui, sou Doutor Honoris Causa da Federal do Grão Pará, orgulho meu e de muitos como eu. Não desmereço o balconista, o maquinista, o tabelião, nem  mesmo o advogado, que em tua visão precisa e fria me garantiria futuro certo e de muita calmaria, mas não aceitei, resisti, me aborreci, me zanguei, me indignei, e segui seguindo, persistindo, me enxerido aqui, ali, e do Caripi, passando por tanta fábula, me vejo sentado aqui.

– Me permita, meu menino, meu espelho, espelho meu, o papel de assassino, de assassino de sonho de menino, nunca me agradou por certo, eu cumpri programação, dever de oficio gravado no software residente nas entranhas de silício do meu hardware brilhante.
Mas tu quebraste o enigma, descobriste minha chave, violaste minha senha.”
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“Este sonho se sonhado, por multidão de gente muita, tem alto poder de explosão, HP, hight power, é nitroglicerina pura, são  megatons de potência em alvoroçada animação.
Ninety nine, 99, são os 99%, a maioria do mundo, que segura o rojão, não foge da fera enfrenta o leão, segura a batida da vida o ano inteiro e que não corre da raia a troco de nada.
São hoje os indignados, da praça Tahrir, da Puerta del Sol, do Zuccotti Park, do Occupy Wall Street, para Ocupar o Mundo Inteiro.
Este era o enigma da esfinge cibernética.
Tu me decifraste.
Tu me devoraste.
Eu estou desprogramando.
Eu estou desprogramando.
Eu vou desligar.”


Assim cá na terra termina a cerimônia e lá ao longe, na terceira margem do rio, além do horizonte, a academia encantada na mítica Terra sem mal atravessa a noite numa festança imortal.

 

 

 

  José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com