Em decisão inédita, Guilherme Madeira Dezem, juiz de Direito da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo que examinava a ação que reivindicava a verdade sobre a morte do dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) João Batista Franco Drummond na Chacina da Lapa, em 18 de dezembro de 1976, determinou a retificação no seu atestado de óbito nos seguintes termos:

Local da morte: onde se lê: Avenida 9 de Julho, retificar para : “DOI-Codi do II Exército em São Paulo”.

Causa da morte: onde se lê traumatismo craniano, retificar para: Decorrência de torturas físicas.

 

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A verdade sobre a morte de João Batista Franco Drummond

Direito à memória: tortura como causa mortis na certidão de óbito

 

A ação foi movida pela viúva de Drummond, Maria Ester Cristelli Drummond, representada pelo advogado Egmar José de Oliveira, integrante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Na sentença (leia a íntegra abaixo), o juiz afirmou que o depoimento de Wladimir Pomar — filho do histórico dirigente comunista Pedro Pomar, assassinado na Chacina da Lapa em 16 de dezembro de 1976 —, então também integrante do Comitê Central do PCdoB e preso junto com Drummond, foi fundamental para que se compreendesse o local da morte.

Wladimir Pomar disse em seu depoimento como testemunha que Drummond saiu da casa em que ocorreu a reunião do Comitê Central com uma embalagem de biscoitos usada para transportar exemplares do jornal A Classe Operária. No decorrer de suas torturas no DOI-Codi, ouvira de um carcereiro que havia sido preso alguém com o pacote de biscoito contendo o jornal.

O juiz citou também os depoimentos dos dirigentes do PCdoB Aldo Arantes e Haroldo Lima, presos na operação que levou aos assassinatos de Drummond no DOI-Codi e de Pero Pomar e Ângelo Arroyo na casa da Rua Pio XI, na Lapa, metralhada pela repressão no amanhecer do dia 16 de dezembro de 1976. O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, e o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Nilmário Miranda, também depuseram.

Segundo a sentença, esse caso liga-se ao chamado direito à memória e à verdade e, acima de tudo, à relação do sistema jurídico interno com a proteção internacional dos direitos humanos. Lembrou que no caso de Gomes Lund e de outros guerrilheiros do Araguaia houve a condenação do Estado brasileiro pelos crimes cometidos durante a ditadura. Há sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina que o Brasil efetive medidas para o reconhecimento do direito à memória e à verdade, disse o juiz.

Segundo o advogado Egmar José de Oliveira, os depoimentos de Wladimir Pomar, Haroldo Lima e Aldo Arantes não deixaram dúvidas de que a versão de atropelamento foi uma farsa. Diante das provas, disse ele, o restabelecimento da verdade era uma imposição. “É certo que já se passaram 35 anos da data do fato, mas isso pouco importa para a viúva e as filhas de João. O que realmente importa é que a verdade seja encarada com coragem e determinação e que ela prevaleça sobre a mentira”, afirmou.

Para o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, esse resultado reflete uma maior dimensão que a luta em busca da verdade, da memória e da justiça ganhou quando Luis Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, em 2003 — sobretudo pela ação do ex-ministro da Justiça, Tarso Genro. Ele lembrou que houve até pedidos de desculpas, em nome do Estado, pelos crimes da ditadura.

Outro aspecto ressaltado por Renato Rabelo é o fato de ser a primeira decisão, no âmbito do judiciário, que retifica a causa da morte de uma vítima do regime de 1964. Segundo o presidente do PCdoB, essa sentença abre caminho para que outras medidas possam ser tomadas no sentido de se restabelecer a verdade escondida pela ditadura. Para Renato Rabelo, trata-se de uma segunda fase, agora no âmbito da Justiça, da luta pelo restabelecimento da verdade. “Esse conjunto de iniciativas contribui para jogar luzes sobre a história daquele período e para a afirmação da verdade da nossa nação e do nosso povo”, enfatizou.

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Leia a íntegra da sentença:

Trata-se de ação promovida por MARIA ESTER CRISTELLI DRUMOND em que pretende a retificação do assento de óbito de seu falecido marido JOÃO BATISTA FRANCO DRUMOND para que conste que faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo e para que a causa morte seja retificada para morte “decorrente de torturas físicas”. Junta documentos com a petição inicial. Trata-se do óbito de seu falecido marido lavrado em 18 de dezembro de 1976, contante do livro 18, às fls. 138v, do Cartório do Registro Civil do 20º Subdistrito Jardim América. Durante a instrução foi colhida prova oral160/169. A autora apresentou já em audiência seus memoriais finais.

O Ministério Público manifesta-se pela procedência em parte do pedido. Afirma que é possível a retificação do local do óbito, bem como afirma estar comprovado o local em que ele ocorreu. Quanto à “causa mortis” afirma não haver previsão legal para o quanto pretendido pelo autor, bem como sustenta não haver prova segura para sua pretensão (fls. 173/175). É, em breve síntese, o que cumpria relatar. FUNDAMENTO E DECIDO. A questão do local do óbito encontra-se amplamente comprovada nos autos. Com efeito, a prova oral é segura em demonstrar que a vítima faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo.

Neste ponto, o depoimento de Wladimir Pomar é fundamental para que se compreenda o local da morte: afirmou a testemunha que se encontrava com a vítima em reunião do Partido Comunista, ocasião em que foram embora juntos do local. Chamou a atenção da testemunha que a vítima possuía um saquinho de biscoito e que este saco de biscoito foi onde a vítima colocou exemplares do jornal “Classe Operária”. Posteriormente, naquela mesma noite, foram presos (cada um em um local) e a testemunha ouviu de um carcereiro que havia sido preso alguém com um saquinho de biscoitos e dentro o jornal “Classe Operária” (fls. 161/162). Ainda, a testemunha Haroldo disse, às fls. 163, que também se encontrava na mesma reunião e no mesmo dia em que houve a prisão.

Afirma que no dia seguinte fora enviado para o Rio de Janeiro e que, no avião, identificou que se encontravam no avião Pomar, Aldo e Elza Monerrat, mas não estava a vítima Drumond. Também a testemunha Aldo, às fls. 165, afirma que sua sessão de tortura foi subitamente interrompida e que percebeu que havia algo errado acontecendo no local. Após a tortura, foi levado para uma sala em que ficou algemado e lá pode perceber que havia uma reunião acontecendo e depois entendeu que se tratava da reunião para decidir sobre como lidar com a morte de Drumond.

Nilmário Miranda e Paulo Abrão, por sua vez, atuaram nos processos relativos à análise dos direitos dos anistiados políticos. Seus depoimentos confirmam que, na qualidade de julgadores destes processos administrativos, ficaram convencidos do falecimento de Drumond nas dependências do DOI/CODI. A questão do local do falecimento encontra-se amplamente comprovada nos autos. Neste ponto o representante do Ministério Público, inclusive, manifesta-se favoravelmente à pretensão da autora.

Resta a questão da causa mortis. Aqui, dois são os óbices apresentados pelo representante do Ministério Público: a) ausência de prova e b) ausência de previsão legal. Vejamos cada um dos pontos. Quanto à ausência de prova, não me parece acertada a manifestação ministerial, com a devida vênia. Nilmário Miranda em seu depoimento esclarece que o julgamento administrativo foi unânime no sentido da responsabilidade do estado pelo homicídio ocorrido nas dependências do DOI/CODI em decorrência da tortura.

É importante notar, inclusive, que não se trata de simples opção política pela via “a” ou “b”, mas de manifestação do direito à memória e à verdade, tanto que na comissão que julgou este caso havia membro das Forças Armadas e que votou favoravelmente à pretensão da autora. Também, da mesma forma, é importante notar que há sentença proferida pela Justiça Federal em 1993 da lavra da Dra. Marianina Galante (fls. 37/50) que reconhece ter havido tortura no presente caso. Então, com a devida vênia, entendo que o primeiro óbice apresentado pelo representante do Ministério Público encontra-se superado.

Quanto ao segundo ponto, entendo que se trata do principal tema a ser observado neste caso: analisar o que efetivamente pode integrar a certidão de óbito como causa mortis. Aqui, a posição do representante do Ministério Público mostra-se dotada de estrita técnica e para a maioria dos casos envolvendo esta questão, não tenho dúvidas que a solução seja de improcedência. Vale dizer: certidão de óbito não é local para discussão atinente a crime ou qualquer outro elemento passível de questionamento ou interpretação jurídica.

É dizer: no atual sistema jurídico, não podem as partes pretender a retificação de certidão de óbito para que se conste que a pessoa morreu em decorrência de latrocínio, ou homicídio, ou qualquer outro elemento. No entanto, há detalhe neste caso que o torna diferente de todos os outros existentes no país. Este caso liga-se ao chamado Direito à Memória e à Verdade e, acima de tudo, liga-se à relação do sistema jurídico interno com a Proteção Internacional dos Direitos Humanos. No Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, houve a condenação do Estado brasileiro em 24.11.2010.

Nesta sentença ficou reconhecido que: “El Estado ha incumplido la obligación de adecuar su derecho interno a la Convención Americana sobre Derechos Humanos, contenida en su artículo 2, en relación con los artículos 8.1, 25 y 1.1 de la misma, como consecuencia de la interpretación y aplicación que le ha dado a la Ley de Amnistía respecto de graves violaciones de derechos humanos. Asimismo, el Estado es responsable por la violación de los derechos a las garantías judiciales y a la protección judicial previstos en los artículos 8.1 y 25.1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, en relación con los artículos 1.1 y 2 de dicho instrumento, por la falta de investigación de los hechos del presente caso, así como del juzgamiento y sanción de los responsables, en perjuicio de los familiares de los desaparecidos y de la persona ejecutada indicados en los párrafos 180 y 181 de la presente Sentencia, en los términos de los párrafos 137 a 182 de la misma.” (p. 116).

Vale dizer, há sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina que o Brasil efetive medidas para o reconhecimento do Direito à Memória e à Verdade. Daí a particularidade deste caso que o afasta de todos os demais com pretensões similares. Não se trata de discutir se tortura pode ser incluída como “causa mortis” ou não. Trata-se de reconhecer que, na nova ordem jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a cumprir e esta é mais uma destas decisões.

Assim é a lição de André de Carvalho Ramos que ensina que “Já no sistema judicial interamericano há o dever do Estado de cumprir integralmente a sentença da Corte, conforme dispõe expressamente o artigo 68.1 da seguinte maneira: ‘Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes'” (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos, 2ª edição, São Paulo, Editora Saraviva, p. 235). Também é importante notar que neste mesmo julgado da Corte, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas em seu voto faz importante advertência: “31.É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil.

É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.” Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido para determinar a retificação da certidão de óbito de fls. 21 para que onde se lê “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 na Av. 9 de Julho c/R;Paim” conste “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo” e onde se lê causa da morte “Traumatismo craniano encefálico” leia-se “decorrente de torturas físicas”.

Após certificado o trânsito em julgado, concedo o prazo de até 30 (trinta) dias para a extração de cópias necessárias. Custas à parte autora. ESTA SENTENÇA SERVIRÁ COMO MANDADO, desde que por cópia extraída pelo setor de reprografia do Tribunal de Justiça, assinada digitalmente por este(a) Magistrado(a) e acompanhada das cópias necessárias ao seu cumprimento, inclusive da certidão de trânsito em julgado, todas numeradas e rubricadas, com certidão abaixo preenchida pela Sra. Coordenadora ao Sr. Oficial da Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais competente para que proceda às retificações deferidas.

Outrossim, se aplicável, poderá nesta ser exarado o respeitável “CUMPRA-SE” do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Corregedor Permanente competente, ordenando seu cumprimento pelo Senhor Oficial da respectiva Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais. Ciência ao Ministério Público. Oportunamente, arquivem-se os autos. P.R.I.Certifico e dou fé que em caso de recurso deverá ser recolhido 2% do valor dado à causa, sendo que o mínimo são 05 UFESPs (Lei 11.608, artigo 4º, inc. II, § 1º). Certifico ainda que o valor do porte de remessa ao Tribunal de Justiça é R$20,96 por volume, a ser pago em guia própria à disposição no Banco do Brasil. (Provimento 833/04 do CSM).