O problema é que o binômio democracia-povo, apelidado pejorativamente de populismo, não combina com concepções políticas que expressam visões da elite — ou seja, o elitismo. Daí as constantes crises, que se agravam quando as forças progressistas ascendem à condição de principais protagonistas do cenário político. É o que vemos atualmente no Brasil.

Anos atrás, quando o regime militar de 1964 começava a transitar do apogeu para o declínio, o então presidente, general Ernesto Geisel, proclamou sem reservas a tese da “imaturidade” do eleitorado brasileiro — opinião reafirmada por seu sucessor, o general João Batista Figueiredo. Mas o que levou Geisel a manifestar esse pensamento não foi aquele elitismo rombudo que sempre caracterizou os que se imaginam os bem-nascidos do Brasil. Foi um elitismo mais sofisticado. Justiça seja feita, ele não encampou em sua fala os termos estáticos, quase essencialistas, dos anos 1920 e 1930, tempos áureos do pensamento autoritário e da sociologia culturalesca, muito presentes nas campanhas da direita hoje em dia. Um exemplo disso foi a proposta feita pelo apresentador da TV Globo, Alexandre Garcia, ex-porta-voz de Figueiredo, que na semana anterior ao segundo turno das eleições presidenciais de 2006 defendeu a tese da aptidão para se obter o título eleitoral.

Também nisto Geisel fez questão de se mostrar olímpico e pedagógico: deu ao elitismo de outrora uma formulação intelectual mais elaborada, postulando que em primeiro lugar deve vir o crescimento econômico, depois o bem-estar social, sendo este, segundo ele, a precondição de um regime democrático sadio. Em vez de vituperar pura e simplesmente a vida político-partidária, via-a como desejável, e até a exaltava, ressalvando porém que ela não poderia ser autêntica enquanto não houvermos alcançado elevados índices de desenvolvimento, e enquanto não tivermos um eleitorado composto de “cidadãos conscientes, racionais, sociabilizados e educados”.

O povo é soberano porque é

Anos depois, esse tema voltou à baila, trazido por ninguém menos que Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Contestar a afirmação que lhe foi atribuída tornou-se durante um bom período o esporte predileto de pessoas como eu, pouco afeitas a outros esportes além de torcer para o Santos Futebol Clube, e a discussão parece ter colocado na defensiva os que gostavam de menosprezar a capacidade intelectual do cidadão comum. Mas nem por isso a velha concepção elitista deixou de se pronunciar. É comum ouvir — pelo menos em certas regiões de São Paulo — que os baixos índices educacionais do povo são os responsáveis pelas esmagadoras vitórias de Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

A própria expressão “povo”, quando usada para esse fim, soa elitista — reflete a pretensão de alguém que olha de cima para baixo, como se lhe fosse dado o direito de aprovar ou não aprovar o que o ”povo” decide. Querendo dizer que ele, que se imagina soberano, precisa aprovar a decisão soberana. Na democracia, o povo não é soberano porque sabe ou deixa de saber algo. É porque é. Ele é a fonte da soberania, contra o pensamento autoritário tradicional, que dava uma localização sobrenatural à origem do poder. É porque encarna o direito de voto, porque vota como entende que deve votar e porque o voto é o único caminho legítimo para quem queira ser investido nas mais altas funções decisórias — regra que deveria valer também para o Poder Judiciário, como ocorre onde imperam democracias mais populares.

O Brasil precisa da união do povo

Por tudo isso, a vida política brasileira não tem tradição de ”pactos” ou de governos de ”união”. Trata-se de uma contradição em si. Ninguém do campo governista acha sinceramente que será possível uma “união” da situação com a oposição em torno dos “interesses do país”. O Brasil precisa, sim, de união para começar a vencer seus problemas. Mas tem de ser a união do povo, dos movimentos sociais e das forças que expressam algum sentimento nacional. Toda vez que um governo fez isso, o Brasil deu um enorme salto de qualidade.

Pegue o exemplo de Getúlio Vargas, o mais destacado presidente da história brasileira. Ele mudou a agenda do país e manejou como nenhum outro as contradições políticas de seu tempo. Nosso processo de transição do regime militar para o civil, no começo dos anos 1980, também ocorreu por meio de um pacto, embora com concessões às forças que sustentaram a ditadura e não explícito. O resultado foi que, na esfera econômica, não houve, durante os anos 1980, um pacto ou acordo abrangente que pudesse facilitar a adoção de uma visão desenvolvimentista — o que poderia obstaculizar a investida do neoliberalismo no início dos anos 1990. Chegamos, no máximo, na esteira de vários planos fracassados, às tais ”câmaras setoriais”.

Os métodos de campanha da direita mostram que ela não é o legítimo representante nem do conjunto dos empresários brasileiros. Ela representava mais nitidamente um setor da sociedade que se imagina dono do Brasil por razões históricas. É aquela gente que sente raiva de quem faz alguma concessão ao povo. “Os impostos que pagamos são a nossa contribuição para que o pobre do interior do Maranhão melhore de vida”, escreveu Danuza Leão, umas das porta-vozes dessa gente, em sua venenosa coluna no jornal “Folha de S. Paulo” do dia 17 de julho de 2005. Para esse setor da sociedade, o “Bolsa-Família” sai indevidamente do seu bolso. Na verdade, eles sequer pagam os impostos devidos corretamente. Mas acham que suas vozes são as que valem.

Em São Paulo, é comum ouvir a palavra “poderosa” antes da sigla Fiesp toda vez que algo é dito sobre a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Repetida à exaustão como recurso para ressaltar a influência da inquilina do prédio de dezesseis andares construído sob a forma de pirâmide num dos pontos mais valorizados da Avenida Paulista, a combinação da sigla com o adjetivo colou. A fórmula sintetiza o poderio do baronato paulista, que hoje em dia não está mais diretamente ligado ideologicamente à Fiesp. Quando a entidade fez algumas críticas ao peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo durante a “era neoliberal”, foi duramente atacada. Fernando Collor de Mello chegou a dizer que a Fiesp era um “covil de retrógrados”. E Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC), disse que a entidade era um “monumento ao desperdício”.

Filme italiano da década de 1950

A mídia tem, dentre seus inúmeros hábitos golpistas, a mania de atribuir derrotas a questões pessoais de seus candidatos prediletos. É certo que em geral eles não são exatamente líderes carismático. Mas que diferença isso faz? O carisma pode muito, mas não consegue frear a passagem do tempo. E o que diminuiu o poder político dessa gente foi exatamente isso: o tempo passou. Dos tempos do boquirroto FHC no poder aos dias atuais, muita coisa mudou. É equivocado imaginar que bastaria pôr no timão um nome de peso para que o projeto da direita recobrasse o brilho perdido. A economia do país mudou. O cenário político é outro. E a direita? Resposta: continua a mesma. Isso quer dizer o seguinte: os conservadores perderam poder político, mas não o dinheiro, a pose. Poderosa politicamente a direita não é mais, mas economicamente ainda é. E a nossa história tem demonstrado que a elite brasileira não titubeia quando precisa usar esse poder contra o povo para assegurar os seus privilégios.

A tentativa de alguns que acreditam que é possível convencer essa gente a respeitar a decisão do povo lembra a passagem de um filme italiano da década de 1950. No filme, um militante político é chamado de Roma para falar a uma platéia de camponeses, reunida num cinema de uma aldeia. A razão de sua visita: uma jovem noiva local perdera a virgindade dias antes do casamento, e todos ficam sabendo do fato. A notícia revolta os moradores, que passam a maltratar a jovem. A tarefa do militante é convencer a platéia de que nada justificava essa conduta. Num discurso emocionado, ele fala do papel da mulher na construção da ”nova sociedade italiana” e argumenta sobre a necessidade de superação de velhos preconceitos. Todos parecem concordar com o que fala. Ao final, ele pergunta para a plateia: “Então, como devemos considerar essa jovem?” Ao que a plateia responde: “Vagabunda”. Essa plateia rancorosa é a imagem da direita brasileira.