Um grupo de estudantes de Marabá, cidade paraense às margens do rio Tocantins, recebeu com festa dois jovens acadêmicos vindos de Belém. Tomaram conhecimento de que no barco que partira da capital estavam aqueles peregrinos em viagens de estudos. Participaram de um baile especialmente preparado para eles. Os estudantes locais mal sabiam que estavam festejando com dois fugitivos tidos por Salvador Borborema, o chefe de polícia do Estado do Pará, como feras comunistas.

Os “acadêmicos” dançavam com um olho na festa e outro na porta. A qualquer momento a polícia local poderia fazer uma batida ali, avisada que fora da fuga espetacular ocorrida no posto policial de Umarizal, em Belém. Poderia associar o caso à súbita presença de dois forasteiros na cidade. A coincidência não seria nenhum disparate. O melhor era sair dali o quanto antes.

Borborema agira rápido para alardear que no dia 5 de agosto de 1941, às 20h30, um grupo de comunistas que cumpriam pena no presídio do Umarizal peitou os guardas e se dirigiu para destino ignorado. Avisou as polícias das cidades paraenses e dos demais Estados que, além de Pedro Pomar e João Amazonas, fugiram Raimundo Serrão de Castro Sobrinho, João da Cruz e Souza, Henrique Felipe Santiago e Agostinho Dias de Oliveira.

No dia 11, uma circular reservada assinada por Borborema foi emitida em nome das “Armas da República” e do “Governo do Estado do Pará” informando todos a seções estaduais da polícia sobre o ocorrido e pedindo a prisão imediata dos fujões caso aparecessem em algum canto do país. Para facilitar o trabalho, o chefe da polícia paraense enviou, anexo, fotografias dos “aludidos extremistas” e suas “individuais datiloscopia”.

Como não apareceu nem sinal dos perseguidos, Borborema enviou uma carta a Filinto Müller, dia 16, relatando em minúcias o ocorrido anteriormente comunicado por telegrama. “Escoltavam ditos presos, noturna e diuturnamente, cinco guardas civis, além do policiamento normal do posto, do escrivão e do comissário”, desculpou-se. Segundo ele, os guardas montaram um cenário de desordem na prisão para simular luta corporal antes da fuga.

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Os presos gozavam de certas regalias, conquistadas com ações de protestos, no casarão velho com vasta varanda de um bairro tranqüilo de Belém. Recebiam a carne, o pão e o que chamavam de “rancho seco”: carne-seca, arroz e feijão. Faziam a própria comida. Amazonas conta que Pedro Pomar era exímio cozinheiro. E rápido. Enquanto os demais começavam os trabalhos na cozinha às oito horas da manhã, chegava às dez. Ao meio dia a comida estava pronta e bem feita.

Cuidavam da faxina, lavavam a louça e estudavam. Só iam para as celas à noite, depois da reunião do Partido. Fizeram amizade com os guardas, que participavam da habitual rodada de chá servida pelos prisioneiros à noite. Em um rádio que negociavam para comprar do escrivão, ouviam as notícias e ficaram sabendo que no começo de 1941 a Alemanha nazista se aproximava perigosamente da União Soviética.

Estavam ali os mais politizados, os mais comprometidos ideologicamente com o PCB, que se recusaram a dividir a cadeia com presos comuns no presídio São José. Pressionaram a direção local, escreveram cartas que Catharina (mulher de Pedro Pomar) repassava aos seus camaradas para serem distribuídas pelo país afora e conseguiram a transferência. Borborema mandou selecionar “os mais perigosos”: os membros da direção do Partido — Pedro Pomar, Amazonas e Agostinho Dias de Oliveira —, o estudante Raimundo Serrão de Castro e o marujo João da Cruz e Souza. Eram os que exigiam com firmeza o cumprimento da regra tácita de que preso político e preso comum não se misturam.

Quando ouviram pelo rádio que a Alemanha invadira a União Soviética às 3h30 da madrugada do dia 22 de junho de 1941, decidiram que não ficariam ali. Coisas demais estavam acontecendo para que ficassem confinados, ouvindo notícias da destruição que o troar dos canhões nazistas estava provocando na pátria do socialismo. Sabiam a dimensão da catástrofe, que já atingira o Brasil de frente.

Eram vítimas, testemunhas próprias, da propagação daquele conflito que acabara de romper a fronteira, de rasgar as cortinas e mostrar onde seria o palco do confronto entre o horror nazista e o tão sonhado socialismo. Não podiam perder um segundo mais. Um plano de fuga precisava ser urgentemente elaborado. Pedro Pomar acabara de ser julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional (TSN), em 16 de junho, e condenado a dois anos de prisão por exercer “atividades comunistas”. Em grau de apelação, a sentença foi confirmada em 1º de julho.

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A responsabilidade cabia à direção do PCB, que considerava o estudante Serrão jovem demais e o marujo Cruz e Souza não confiável (teria delatado camaradas em tempos passados). Reuniam-se muitas vezes no quintal dos fundos do casarão, discutiam cada detalhe para fazer um plano mais próximo possível da perfeição. Catharina, a mulher de Pedro Pomar, seria parte fundamental da ação. Visitava o marido constantemente, acompanhada do filho Wladimir, então com quatro anos — que às vezes fugia de casa para almoçar com o pai —, e constituiu-se no elo entre a parte presa e a parte solta do Partido.

Mulher de reconhecida coragem, recebeu a incumbência de comprar as passagens para o Baixo Amazonas. O médico Raimundo Silas de Andrade, amigo dos comunistas, seria outro ponto-chave do plano. Faria uma receita para adormecer os guardas. Por algum motivo não esclarecido, o remédio ministrado não fez efeito e o plano foi por água abaixo.

Mal houve tempo para procurar as razões do malogro e calcular os prejuízos, já estavam em confabulações para a elaboração de um segundo plano. Abandonaram a idéia de fugir pela frente e voltaram as atenções para a casa de um vizinho que fora do PCB, adoentado com sérios problemas psíquicos. Mas havia um problema grave — o local era vigiado por cães. A solução seria induzi-los a engolir um poderoso veneno, adornado como se fossem suculentos pedaços de carne. O odor afastava os animais. Os urubus, imunes a cheiros, devoravam as peças e caíam duros. A morte certa e instantânea atestava o poder de fogo da substância administrada, mas não havia meio de enganar o olfato dos cães. Fugiriam pela entrada do casarão.

A meta era fugir até agosto, agoniados que estavam ao saber dos acontecimentos. Ali ficariam de pés e mãos amarrados. O jovem Serrão, desconfiado da trama, foi convidado a juntar-se ao grupo. Era a hora de enfrentar o que desse e viesse. Catharina providenciou carteiras de trabalho com nomes falsos para todos e comprara duas passagens para Marabá, uma para Monte Alegre, duas para São Benedito, em Faro, no Baixo Amazonas. Cada um sabia o destino a tomar depois da fuga. Pedro Pomar e João Amazonas iriam para o Rio de Janeiro. A data da fuga coincidia com a partida dos barcos — 5 de agosto. No dia previsto, seis guardas tomavam conta do posto de Umarizal.
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Caía uma chuva fina quando as seleções de futebol do Pará e da Bahia entraram em campo naquela noite. Para os guardas, seria apenas mais um turno. Começaram a jornada com olhos no trabalho e ouvidos na transmissão da partida pelo rádio. Dois logo saíram para vigiar a Praça Brasil. Às vinte horas, um telefonema comunicou que na Vila Barca — famosa pelas arruaças de valentões, beberrões e desordeiros — uma confusão já havia deixado mortos e feridos. Mais dois guardas abandonaram seus postos para apaziguar aquele antro de perdição, denunciado por alguém do Partido.

Henrique Felipe Santiago cumpria o ritual do chá da noite com os guardas atentos à transmissão do jogo pelo rádio quando Pedro Pomar e João Amazonas escapavam por um buraco aberto no chão deixado por duas tábuas pacientemente serradas nos dias que antecederam a fuga. Saíram pelo porão, atingindo a rua em frente ao casarão. Serrão deveria esperar Henrique Felipe Santiago terminar o seu trabalho, quando João da Cruz e Souza seria avisado que o plano de fuga estava em execução. O marujo era o único que desconhecia o plano de debandada — se decidisse ficar, nada poderia contar à repressão.

Serrão já havia partido quando um dos guardas chegou e começou a relatar detalhes da desordem na Vila Barca. Como se não bastasse a parola interminável, o guarda, conhecido como “Prato Raso”, acomodou-se em uma cadeira de cara para a porta de saída. Não saísse por ali, disse Henrique Felipe Santiago ao apavorado João da Cruz e Souza. Seguisse ele em direção à casa do vizinho Mariano, o antigo militante do PCB com problemas psíquicos. As circunstâncias jogaram a favor e, quando pularam no quintal, deram com a cachorrada presa. Bateram na porta e foram atendidos pelo sogro de Mariano, conhecido pelas conversas por cima do muro. Abriram caminho por dentro da casa até a porta de saída para a rua, onde receberam passagens, bagagens e algum dinheiro. Os demais já andavam na frente.

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Pedro Pomar e João Amazonas receberam de Zeca, primo de Catharina, os provimentos necessários à viagem. Um revólver calibre 38 também fora providenciado. Embarcaram para Marabá, onde um contato do Partido providenciaria os meios para a continuidade da viagem. Venderam o revólver para um médico amigo dos comunistas locais, fizeram mais um dinheirinho e seguiram pelo rio Tocantins. Viajaram em um pequeno barco alugado, conhecido na região como “motor”. Era tempo de seca e de fortes corredeiras, o que dificultava a navegação. Na cidade de Santo Antônio, já em Goiás, na região onde hoje é o Estado de Tocantins, a primeira fase da viagem terminou. Deveriam trocar de embarcação. Procurassem algum contato.

Emprestaram um quartinho de frente para o rio de algum morador e enquanto esperavam observaram que pescadores remavam apressados. Gritos e choros ecoavam da cidade. Saíram às carreiras e viram malocas em chamas. Era um incêndio de grandes proporções, que os moradores lutavam para domá-lo. Pedro Pomar e João Amazonas organizaram a brigada improvisada, postando os bombeiros de última hora em fileira, de modo a agilizar o trânsito das latas de água do rio às chamas. Viram, desolados, a tristeza daquela gente pobre ao constatar sob as cinzas o que restara de seus pertences. Mas o Rio de Janeiro ainda estava longe e era preciso seguir viagem.

Mais adiante, pararam novamente em uma praia. Com a chuva torrencial, não era aconselhável navegar à noite. O condutor do pequeno barco e os dois viajantes seguiram por uma trilha em meio à mata fechada até a casa de caçadores locais. Deram de cara com couros de onça esticados e espalhados por toda parte. Amazonas conta que indagou sobre a freqüência do animal no local e obteve a resposta de que elas chegavam a andar ali por perto. Era uma casa de palha, com quartos fechados, mas os visitantes deveriam montar suas redes na varanda exposta ao relento. Ficassem alerta para caso alguma onça aparecesse no silêncio da noite. Felizmente não apareceu.

No dia seguinte, rumaram para Carolina, uma cidade mais avançada, já no Estado do Maranhão. Procuraram contatos e foram recebidos com deferência. Um senhor que disse ser da cidade paraense de Santarém garantiu que João Alberto, um dos líderes da “Coluna Invicta” de Luiz Carlos Prestes, tocara piano em sua casa por uma noite inteira. Esperaram por dias uma condução para a cidade de Porto Nacional, já em Goiás, próximo de onde hoje é Palmas, a capital do Estado de Tocantins. Foram alojados em um pequeno imóvel pertencente à Igreja Católica, que cuidava não apenas das demandas do céu e do inferno — dominava a cidade, segundo Amazonas.

Dali, seguiram para a cidade de Peixe, ainda em Goiás, guiados por dois canoeiros que conduziam a embarcação com varas rudimentares. Era a última parada pelo rio Tocantins, um oco de mundo que não dava acesso para lugar algum. Passaram dias sondando e estudando o terreno em busca de uma saída. Não havia, teriam de desbravar a mata virgem e foram atrás de um guia que pudesse conduzi-los para algum lugar de onde prosseguiriam a viagem. Descobriram que havia chegado o primeiro caminhão vindo de Anápolis, que voltaria no dia seguinte. Isso resolveria o problema. Conseguiram negociar a carona e embarcaram.

O caminhão levava serras e machados para fazer a estrada. Onde havia riacho o motorista cortava uma árvore para fazer as vezes de ponte, que na fala do povo local chamava-se “mata-burro”. Ia comprando couro. Pedro Pomar e João Amazonas viajaram sobre a carga, que crescia durante o trajeto. Num dos “mata-burros”, o motorista disse que era bom saltar para embarcar na outra margem. Em outro, dissera que não precisava. Tomassem cuidado, apenas. Estava errado e a carga despencou, despejando couros e viajantes de uma altura de quatro metros. Mas chegaram são e salvos a Anápolis, apesar do castigo de uma longa viagem em que praticamente não dormiram e alimentaram-se precariamente. Deram-se conta de que estavam há um mês e tanto a caminho do Rio de Janeiro.

Chegaram em Araguari, no Triângulo Mineiro, possivelmente viajando de trem, dia 23 de setembro de 1941, aniversário de Pedro Pomar — completava 28 anos. A data, o êxito da fuga e os feitos da viagem mereciam uma comemoração especial. Tomaram uma cerveja, com brindes ao aniversariante e ao avanço da dupla na tarefa de ajudar no combate o nazi-fascismo. As notícias davam conta da destruição das defesas soviéticas pela tempestade hitlerista. O senhor de Berlim determinara que dia 2 de outubro seria desencadeada a grande ofensiva. Tufão era o seu nome em código, um verdadeiro ciclone que devia abater-se sobre os soviéticos, destruindo as últimas forças combatentes diante de Moscou e fazendo desmoronar a pátria do socialismo.

Rio de Janeiro estava logo ali, mas antes passariam pela provação de uma frente fria temporã na cidade de São Paulo, onde esperaram a ligação do fio condutor do trajeto com a última etapa da viagem. Chegaram na então capital da República no final de setembro, sem uma moeda no bolso. Estavam apenas com o endereço de uma parente de Pedro Pomar — a mãe, segundo Amazonas, uma tia, segundo outras versões. O certo é que dois dias depois se hospedaram em uma pensão, na Rua Maxwel, em Vila Isabel. O motivo de estarem ali fora comunicado, muito tempo antes, ainda na prisão de Umarizal.

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Em nenhuma época da história se mentiu e se caluniou tanto com tanta fúria e cinismo como estão fazendo as agências telegráficas e a imprensa financiada pelo imperialismo. O autor dessa constatação, publicada no jornal A Classe Operária de 1º de março de 1941, mandara avisar Pedro Pomar e João Amazonas que precisava deles no Rio de Janeiro para levantar o PCB e erguer barreiras contra o nazi-fascismo.

Chamava-se Maurício Grabois, era paulista de nascimento e criado na Bahia. Sustentou a imprensa comunista, com a ajuda do jornalista Amarílio Vasconcelos, enquanto as levas de prisões, seguidas de torturas insanas e assassinatos a rodo, derrubavam a direção nacional do Partido. Sobrou um para semente, Domingos Brás, que fora responsável pela imprensa do PCB.

Ele e Maurício Grabois estavam em São Paulo, auxiliando a direção do Partido local e trabalhando em um projeto para manter A Classe Operária em funcionamento, quando um ex-oficial da Marinha, expulso por participar da ANL, informou sobre a ativa resistência dos comunistas paraenses. Chamava-se Paulo Roppe e trabalhava como piloto-comandante da companhia aérea Panair, fazendo a rota regular entre Rio de Janeiro e Belém.
Grabois também era funcionário da empresa, exercia funções burocráticas. Disse a Paulo Roppe que avisasse Pedro Pomar e João Amazonas — e eventualmente outros dirigentes locais do Partido — a respeito do plano de levantar o PCB em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais como eixo propulsor da sua retomada em âmbito nacional. Viessem o quanto antes.

Capítulo da biografia de Pedro Pomar, por Osvaldo Bertolino