Os “entendidos” rosnam de frustração
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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 16ª crônica da série: “Os ‘entendidos’ rosnam de frustração”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Antigamente as coisas eram mais simples e mais amenas. Quando o Brasil jogava lá fora, tínhamos de aceitar a imagem que nos ofereciam os cronistas. A partir do videoteipe, porém, tudo mudou como num milagre.”
Os “entendidos” rosnam de frustração (1)
Amigos, está cada vez mais largo e cada vez mais fundo o abismo que se cavou entre o povo e a crônica. Antigamente as coisas eram mais simples e mais amenas. Quando o Brasil jogava lá fora, tínhamos de aceitar a imagem que nos ofereciam os cronistas. A partir do videoteipe, porém, tudo mudou como num milagre.
Foi assim na etapa da classificação. Era o tempo ainda do João [Saldanha]. E meus bons colegas arrasavam o escrete. Não deixavam pedra sobre pedra. O pobre torcedor, atracado ao radinho de pilha, ou ao jornal do dia seguinte, concluía, apavorado: — “Temos um escrete de pernas de pau!” Ao mesmo tempo, acontecia uma coisa singularíssima. Embora jogando pedrinhas, os brasileiros é que faziam os gols, os brasileiros é que ganhavam as partidas, os brasileiros é que davam as goleadas. O sujeito coçava a cabeça: — “Se percebo, sebo!” Realmente, não era para se perceber. Ao mesmo tempo, aconteciam as coisas mais patuscas.
Por exemplo: — atacavam ferozmente os venezuelanos, e súbito o espíquer dava o berro: “Gol do Brasil!” Todavia, desfez-se o mistério com o primeiro videoteipe. Dava-se o seguinte: — a partida transmitida para aqui só existia na imaginação dos excelentes rapazes. Em verdade, o Brasil era o senhor da partida, rei em campo, dono das jogadas. Com a Venezuela, aconteceu uma notabilíssima.
Terminou o primeiro tempo com 0 x 0. Segundo diziam os rapazes, o Brasil estava uma vergonha, ao passo que o adversário dominava todos os 45 minutos. Vem o segundo tempo e, em dado momento, há um gol do Brasil. E, então, um dos nossos cronistas mais ilustres e, ao mesmo tempo, mais imparciais, grita ao microfone: — “O João vai recuar Pelé para sustentar o escore!” Para não tomar o tempo do leitor, direi apenas que ganhamos de 5 x 0.
Claro que nem todos eram assim. Mas a maioria, sim. E antes de partir, a seleção teve uma experiência terrena do inferno. Certa vez, em São Paulo, os nossos jogadores receberam uma vaia de noventa minutos. Muitos confrades afirmavam que não passaríamos da primeira partida. Outros crocitavam: — “Vai ser pior do que em 66.” Nunca se viu um escrete tão humilhado e tão ofendido.
Eu escrevi no dia em que o time nacional saiu daqui: — “Partiu o escrete. Terminou o seu exílio.” E não deu outra coisa. No México, o nosso escrete assumiu a sua verdadeira e gigantesca dimensão. Paulo Cézar, que, aqui, debaixo de vaias, não sabia nem tirar um arremesso lateral, mostrou o que sempre foi, isto é, um jogador extraordinário. Vamos esquecer os próximos jogos. Mas o que aconteceu até aqui prova, por A + B, que não há um escrete que se compare ao nosso. Foram maravilhosas as nossas exibições contra a Tchecoslováquia, contra a Inglaterra, contra a Romênia, contra o Peru.
E os “entendidos”, que negavam de pés juntos a seleção, que dizem agora? Não dizem nada. Estão rosnando de impotência e frustração. Acabo de receber uma carta de Alfredo C. Machado, brasileiro puro, do legítimo, do escocês. E ele me informa que as hienas, os abutres, os chacais depositam agora as suas esperanças nos uruguaios. A maioria da imprensa ainda não desconfiou que este é o melhor escrete do Brasil. Não sei o que será para o futuro. Mas até aqui os nossos jogos têm sido de uma facilidade constrangedora.
Mas eu não queria concluir sem falar de um “entendido” que foi ao México expressamente para admirar o futebol europeu em geral e o inglês em particular. E ele escreveu não sobre Brasil x Inglaterra, mas sobre a Inglaterra. Em duas colunas, de alto a baixo, só fala dos ingleses, só admira os ingleses, só exalta os ingleses. Cheguei à última linha certo de que o Brasil lá não compareceu. E, então, a Inglaterra jogou consigo mesma, para si mesma, defendeu-se de si mesma e atacou-se a si mesma.
Perguntará o leitor, que é de uma espessa ingenuidade: — “E o gol do Brasil?” Custa a crer que sem lá ter ido o Brasil lograsse um gol prodigioso. Vale a pena contar o lance. Foi assim: — Tostão recebe de Paulo Cézar e dribla um inglês, mais outro, outro mais. Em seguida, vira para Pelé. Este entrega a Jairzinho, que ultrapassa um sétimo inglês e encaçapa. Mas o ilustre colega não admira esse lance genial. Em compensação, porém, baba com os chuveirinhos da Inglaterra. Aí está: — a grande, a inexcedível, a originalíssima, a espantosa novidade do futebol inglês foi o chuveirinho.
O Globo, 16/6/1970
(1) Título sugerido pela edição do livro A pátria em chuteiras (Companhia das Letras, 1994). A crônica foi publicada originalmente na coluna “À sombra das chuteiras imortais” sem título. (N.E.)