Procura-se otário — tratar com FHC
FHC: Carlos Lacerda redivivo
Nos anos 1950, distribuíam-se prêmios a quem conseguisse reunir o máximo de tolices em frases curtas. Entre elas, havia uma sentença lapidar: “Os quatro evangelistas são três: Esaó e Jacu.” A lembrança vem com a sentença do ex-presidente neoliberal Fernando Henrique Cardoso (FHC) de que “não é porque são mais pobres que (os eleitores de Dilma Rousseff) votam no PT, mas porque são menos informados”. Ele age como aqueles vendedores de produtos conhecidos nas farmácias por BO (Bom para Otário), ao tentar empurrar goela abaixo dos brasileiros grosseiras falsificações — como se fôssemos um país de bocas-abertas. FHC acha que para os brasileiros pensar dói. O bom mesmo, segundo seu cínico evangelho, é mantê-los na obscuridade política para, mais adiante, colher o voto manipulado, sem polimento e sem lapidação.
FHC é o ícone de um pequeno setor do Brasil que se imagina mais capaz, mais limpo, gente melhor do que os seres considerados primitivos por serem descendentes de negros e índios. Nos últimos dias, com suas exaustivas entrevistas pautando a mídia na campanha de Aécio Neves, ele deve ter se sentido um Carlos Lacerda redivivo — aquele histriônico jornalista anti-Getúlio Vargas, anti-Juscelino Kubitscheck e anti-João Goulart. FHC afirmou, entre outras diatribes, que nos governos Lula e Dilma a corrupção se transformou em um fenômeno novo, pois tem “organicidade” e “é sistêmica”. Anteriormente, ele havia declarado que “a ética do PT é roubar”.
O pó da derrota
Para tentar se justificar, ele disse que suas declarações não eram ofensas. “Eles é que ofenderam o povo brasileiro com o caixa 2”, declarou, como se o seu partido não fosse o campeão dessa prática ierregular. O ex-presidente voltou a usar a metáfora da bomba atômica para explicar, segundo sua fantasiosa tese, porque o PSDB não deu entrada no pedido de impeachment do presidente Lula. (FHC já havia dito que “impeachment é como bomba atômica, só assola, não é para ser usado”.) “A eleição de Lula fez parte da construção da democracia. Impeachment é bomba atômica”, disse, explicando que o processo de destituição de um presidente arrasaria a democracia do país.
A verdade é que FHC vem reccorendo ao velho artifício que compensa os partidos conservadores sem forças para levantar as massas: a mídia. E a mídia, que mesmo com sua descabida pretensão de ser “os olhos da nação” — segundo palavras do célebre pensador, jurista e estadista brasileiro Ruy Barbosa — já foi obrigada a dobrar a língua quando o povo derrotou a direita em 2002, 2006 e 2010, tem se esmerado nesse papel. Mas a militância democrática tem tudo para, novamente, furar o bloqueio midiático que esconde a sujeira tucana para amplificar as calúnias contra o campo governista e certamente voltará a fazer a direita morder o pó da derrota.
O pior pecado depois do pecado
Esse comportamento da mídia reproduz a máxima machadiana de que o pior pecado depois do pecado é a publicação do pecado. Seria apaixonante enveredar aqui por uma discussão sobre a moralidade dos povos. Mas os tempos são curtos e basta lembrar que por estar historicamente superado o programa da direita é um terreno fértil para a corrupção. A moralidade se submete aos processos seletivos de variação, adaptação e competição em busca da sobrevivência dos grupos sociais. Daí a contramarcha histórica da direita, que existe unicamente para preservar seus privilégios, por meio de conchavos entre os agentes que sustentam o satus quo.
Se não basta a violência como elemento político, modalidade em que a direita brasileira se destaca historicamente — é só observar a lista de golpes e tentativas de golpes de Estado —, há a constatação ao alcance de todos de que, em matéria de corrupção, os udenistas-tucanos têm muito conhecimento de causa. O rigor moral certamente levaria o país para um severo acerto de contas entre classes sociais. Isso explica porque no cenário político atual há um curioso contraste: de um lado, o exibiconismo de alguns integrantes da CPI da Petrobras — o senador tucano paranaense Álvaro Dias, que acaba de ser reeleito com uma expressiva votação, por exemplo, se comporta como se fosse artista da novela das oito, de tanto que aparece na Globo e na mídia em geral — e, de outro, a Reforma Política travada pelos passos cágados (a sílaba tônica fica a seu critério) da direita.
A soberania do voto
Os ataques de FHC ao povo, portanto, está longe de ser um devaneio; eles refletem um pensamento ideológico agora novamente usado de maneira enfática para reforçar o sentimento “antipetista” (na verdade uma espécie de fascismo difuso) em regiões do Sul e do Sudeste como contraponto ao sentimento do povo pobre, que interage mais com os poderes públicos em todo o país. São, na verdade, conceitos que apostam na despolitização individualista e liberal da chamada “classe média” — boa parte dela elevada para alguns degraus acima na escala econômica do país pelas políticas dos governos Lula e Dilma. Com isso, FHC e seus asseclas afrontam um princípio básico da democracia: a soberania do voto.
Todas as constituições democráticas, inclusive a do Brasil e suas limitações, dizem que o povo é soberano. Isso quer dizer que o fundamento da democracia é o voto individual de cada um dos milhões de cidadãos legalmente habilitados a votar. Mas a elite brasileira nunca aceitou esse princípio civilizatório. Anos atrás, quando o regime militar de 1964 começava a transitar do apogeu para o declínio, o então presidente, general Ernesto Geisel, proclamou sem reservas a tese da “imaturidade” do eleitorado brasileiro — opinião reafirmada por seu sucessor, o general João Baptista Figueiredo.
Elitismo rombudo
Mas o que levou Geisel a manifestar esse pensamento não foi aquele elitismo rombudo que sempre caracterizou os que se imaginam os bem-nascidos do Brasil, como acaba de proclamar FHC. Foi um elitismo mais sofisticado. Justiça seja feita, ele, apesar de ter sido um ditador sanguinário, não encampou em sua fala os termos estáticos, quase essencialistas, dos anos 1920 e 1930, tempos áureos do pensamento autoritário e da sociologia culturalesca, muito presentes nas campanhas da direita de hoje em dia. Um exemplo disso foi a proposta feita pelo “comentarista” da TV Globo, Alexandre Garcia, ex-porta-voz de Figueiredo, que na semana anterior ao segundo turno das eleições de 2006, diante do favoritismo de Lula, defendeu a tese da “aptidão eleitoral” para se obter o título eleitoral.
Também nisto Geisel fez questão de se mostrar olímpico e pedagógico: deu ao elitismo de outrora uma formulação intelectual mais elaborada, postulando que em primeiro lugar deve vir o crescimento econômico, depois o bem-estar social, sendo este, segundo ele, a precondição de um “regime democrático sadio”. Em vez de vituperar pura e simplesmente a vida político-partidária, como fez FHC, via-a como desejável, e até a exaltava, ressalvando porém que ela não poderia ser autêntica enquanto não houvermos alcançado elevados índices de desenvolvimento, e enquanto não tivermos um eleitorado composto de “cidadãos conscientes, racionais, sociabilizados e educados”.
O povo é soberano porque é
Anos depois, esse tema voltou à baila, trazido por ninguém menos que Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Contestar a afirmação que lhe foi atribuída tornou-se durante um bom período o esporte predileto de pessoas como eu, pouco afeitas a outros esportes além de torcer para o Santos Futebol Clube, e a discussão parece ter colocado na defensiva os que gostavam de menosprezar a capacidade intelectual do povo. A própria expressão “povo”, quando usada para esse fim, soa elitista — reflete a pretensão de alguém que olha de cima para baixo, como se lhe fosse dado o direito de aprovar ou não aprovar o que o ”povo” decide. Querendo dizer que ele, que se imagina soberano, precisa aprovar a decisão soberana.
Na democracia, o povo não é soberano porque sabe ou deixa de saber algo. É porque é. Ele é a fonte da soberania, contra o pensamento autoritário tradicional, que atribui uma designação sobrenatural à origem do poder. É porque encarna o direito de voto, porque vota como entende que deve votar e porque o voto é o único caminho legítimo para quem queira ser investido nas mais altas funções decisórias — regra que deveria valer também para o Poder Judiciário, como ocorre onde imperam democracias mais populares.