Estamos às vésperas do segundo turno de eleições presidenciais mais acirrado dos anos de democracia brasileira pós ditadura. Nessa reta final, vimos oscilação nas pesquisas, apoios consolidando-se de lado a lado e um contingente relativamente inalterado de eleitores decididos a anular o voto. Pois bem, com massas de votos praticamente consolidadas em patamares equânimes à direita e à esquerda, é bem provável que aqueles que ainda se mantém indecisos e aqueles que tendem a anular o voto sejam os que decidirão a eleição a favor do retrocesso ou da consolidação das conquistas progressistas dos últimos anos.

Na prática, os votos em branco ou nulos não interferem no resultado da eleição, a não ser pelo fato de que registram uma omissão do eleitor em relação ao que está em disputa. Entretanto, num contexto de acirrada disputa e principalmente de avanço conservador, anular o voto é anular a possibilidade de manifestar-se contra o conservadorismo que tem ganho força e encontrado a sua mais perfeita tradução na candidatura de Aécio Neves. Anular o voto hoje não é abster-se de dar opinião, é contribuir para que aqueles que sempre estiveram do lado do cerceamento das liberdades constitucionais assumam o comando do país de vez. Com a eleição do parlamento brasileiro ocorreu algo assim. O conservadorismo ganhou terreno também por causa daqueles que decidiram omitir-se de interferir no pleito e assim frear a conquista de postos de candidatos com sólidas raízes reacionárias.
É preciso que se tenha clareza do movimento à direita pelo qual passa o país, e que tem cooptado muita gente boa, muita gente inocente e crédula tem dado trela a grupos de expressão claramente obscurantista de vários matizes. Costuma-se dizer que eleger Aécio é retornar aos anos 90. Isso na melhor das hipóteses. Eu creio, na verdade, que eleger Aécio é fazer o Brasil voltar ao protofascismo escroque dos piores anos de chumbo. Assim como no Golpe de 64, houve quem se omitisse colocando a sua desilusão com a esquerda acima das contradições reais que, resolvidas à direita, apearam Jango do poder, hoje vejo muita gente colocando o “sagrado direito de não se manifestar” acima da reação real e necessária a um movimento conservador que tem catalizado as forças mais obscurantistas do ser brasileiro: colonialista, patriarcal, oligárquico, midiático, machista, homofóbico. São essas forças que estão ganhando espaço com Aécio e seu exército midiático. É contra elas que os cidadãos estão chamados a opinar no dia 26 de outubro. Ao contrário do que prega a campanha aecista, o voto útil não é o voto anti-PT, o voto útil é o voto a favor da democracia.
Ouvi vários argumentos de gente que respeito muito, inclusive colegas professores e intelectuais, a favor de votar nulo, como ação política que combinaria uma forma de “punição ao PT” e uma “rejeição ao projeto conservador”. Sempre respondo a essas pessoas que é muito luxo ver passar o arrastão neoconservador de braços cruzados olhando da janela do seu “hotel abismo”. É muita idiossincrasia deixar pessoas como Bolsonaro, Borhausen, Malafaia imporem o seu ideário xenófobo e retrógrado a um país que se tornou muito mais plural, diverso e bonito nos últimos anos. Anular o voto hoje pode significar anular-se, passando uma procuração para que sua liberdade, e a de tanta gente, seja hipotecada e lentamente desconstruída por um possível governo neoliberal e fascitoide.
Não é mesmo um tempo bonito para omitir-se. Essa não é uma alternativa real. Lembrem a lição do velho mestre Graciliano Ramos: “Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social”. A opressão é sedutora e, muitas vezes, tem a marca do novo, da mudança, do patriotismo, da lei, da justiça. Sabemos bem em prol de quem essas palavras são brandidas como armas de ódio. Daqui a pouco estamos amarrados pela desumanização, sem saber mais como fomos nos enredar com os fios que nós mesmos ajudamos a tecer. Mas, diria o Velho Graça, que sabia bem o peso e o lugar da utopia no processo social brasileiro, “nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”. Esses estreitos limites são hoje as candidaturas que se nos impuseram no segundo turno das eleições presidenciais. É possível mover-se devagar, levemente, para manter-se relativamente a salvo da opressão. Mas, para isso, é preciso deixar de lado algumas convicções estreitas, alguns ensimesmamentos decorativos e reconhecer que uma responsabilidade maior está em nossas mãos.
Eu, que aprendi a amar Manuel Bandeira com meus pais que repudiavam a ditadura militar, ainda estou com ele: “Não quero saber do lirismo que não é libertação!”. Anular o voto me parece um claro gesto de anular-se, omitir-se da participação política e crítica contra uma onda que se espalha pelo mundo e já chegou com força ao Brasil. É preciso votar a favor da liberdade, a favor da esperança. Esse é o verdadeiro plebiscito, que a mídia inteira quer disfarçar, pois ela nunca foi amiga da liberdade e sim do capital. É preciso dizer não à ostentação da violência fascista que fazem diuturnamente a mídia e o candidato da direita. No dia 26, é preciso dizer: basta de, inocentemente, deixar falar a voz da opressão! 
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com
*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.