Os fundadores do marxismo sempre manifestaram grande cautela em indicar “modelos” para a futura sociedade comunista, considerando que somente a experiência concreta da luta do proletariado nos distintos países poderia fundamentar uma teoria científica da revolução socialista (1). Marx e Engels deram demonstração dessa compreensão ao estudarem com grande atenção a experiência de apenas 72 dias da Comuna de Paris de 1871, corrigindo e desenvolvendo a partir dela a sua teoria sobre o socialismo, especialmente quanto à forma que deveria assumir o Estado do proletariado (2). Da mesma forma, Lenin debruçou-se atentamente sobre os diversos problemas teóricos e práticos da experiência da transição socialista nas condições concretas da primeira revolução proletária –, abordando temas como a aliança operário-camponesa, a ditadura do proletariado, a existência de distintas formas de propriedade e de produção nas primeiras etapas do socialismo, etc.
Os importantes êxitos conquistados pela URSS nesse processo levaram – apesar dos naturais erros e insuficiências da primeira experiência do proletariado mundial – a uma absolutização dos caminhos por ela desbravados e a sua transformação em um “modelo universal” para a construção socialista nos mais diferentes países. O dogmatismo e a escolástica substituíram em grande parte o marxismo, dificultando a apreensão da realidade viva. Importantes reflexões de eminentes pensadores marxistas ficaram obscurecidas por “verdades absolutas oficiais”. Apesar disso – como os dogmas não têm o poder de aprisionar a vida – novas experiências e caminhos vieram à luz em distintos processos revolucionários, principalmente nos países coloniais e semi-coloniais, como a China, Vietnã, Coréia, Laos e Cuba, entre outros.
Seja em decorrência dos erros cometidos, seja em conseqüência do agressivo cerco imperialista e da acirrada luta de classes em nível internacional, a URSS e o Leste Europeu experimentaram primeiro a estagnação e a seguir a reversão de seus processos de transição socialista, culminando com o desmoronamento das chamadas “democracias populares” na Europa Oriental e o esfacelamento da URSS, com a subseqüente restauração capitalista nesses países. em contrapartida, Porém, a persistência na busca de caminhos próprios e inovadores para a revolução socialista na China, Vietnã, Cuba, Coréia e Laos,tem conseguido manter a perspectiva socialista e impedido a reversão de seus processos de transição.
Todos esses processos revolucionários acumularam uma enorme e variada experiência que tem sido pouco estudada e carece de uma maior sistematização e teorização. Importantes ensinamentos já podem ser extraídos dessa difícil e contraditória caminhada – que não há um “modelo único” ou uma “receita universal” para a transição socialista; que a análise concreta da realidade concreta é decisiva para a vitória; que a transição socialista é mais longa do que se pensava; que a consciência social joga um papel fundamental nesse processo; que a construção socialista passa necessariamente por distintas etapas(3); que ela não é irreversível.
Mas a justa compreensão de que não devemos nos fixar em “modelos” ou “receitas” para o socialismo não pode nos fazer ignorar a importância e a necessidade de desenvolver uma “teoria da transição socialista” – renovada e não dogmática –, que leve em conta as especificidades de cada país. Da mesma maneira que a diversidade de formas assumidas pelo capitalismo nos distintos países não foi impedimento para que Marx desenvolvesse sua teoria sobre o Capital e o Capitalismo.
Alguém poderia objetar que, para sermos fiéis a Marx, não deveríamos “especular” sobre o processo de transição do capitalismo ao comunismo. Passados cem anos (ou quase) das mais variadas experiências nesse sentido – com os seus erros e os seus acertos – parece-nos completamente descabida essa objeção. Pois não podemos confundir a negação de “modelos” e “receitas” para a revolução com a negação do da teoria, a partir da prática, e a sua sistematização e generalização; pois “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”.
Outros poderiam argumentar que essa teoria renovada já existe e já está elaborada. Perguntamos: onde? Nos manuais soviéticos, que teorizavam sobre a sociedade socialista enquanto “um modo de produção intermediário” entre o capitalismo e o comunismo? Com suas “leis próprias”? Em uma visão estática que (no nosso entender) converteu um “processo” (4) em um “estado” ou “etapa”? Que generalizou uma experiência calcada em uma realidade específica? Penso que não.
Ou, quem sabe, essa teoria da transição socialista, de caráter geral, encontra-se nas importantes e instigantes contribuições teóricas dos camaradas chineses, vietnamitas, cubanos, etc., quando buscam sistematizar suas experiências concretas? Sem negar que aqui encontramos contribuições inestimáveis para essa teoria do socialismo para o século XXI, entendemos que ainda são desenvolvimentos teóricos voltados para suas realidades concretas, onde convivem questões gerais e questões particulares, específicas de cada processo.
Da mesma forma, a nossa afirmação sobre a necessidade do desenvolvimento de uma teoria socialista para o século XXI – em resposta à crise do socialismo que já perdura há 25 anos – não nega que diversos intelectuais marxistas tenham dado importantes contribuições a esse debate, ao longo desses quase cem anos, as quais precisam ser resgatadas.
Não temos a pretensão de “inventar a roda”. Mas apontamos a necessidade de um trabalho coletivo do nosso partido, em conjunto com os partidos irmãos, no sentido de realizar um balanço histórico e teórico desses cem anos de revoluções socialistas, inclusive ajustando contas com nossos erros e insuficiências (5), única maneira de conseguirmos apresentar aos trabalhadores de todo o mundo uma alternativa socialista viável ao capitalismo em profunda crise.
Essa necessidade avulta ainda mais na medida em que se aproxima o centenário da primeira experiência socialista realizada pela humanidade. Data simbólica que, sem dúvida, levará o imperialismo e os seus acólitos a uma furiosa campanha contra o socialismo e os processos revolucionários em todo o mundo. Para enfrentá-la, é preciso avançar nesse balanço histórico e teórico. Para isso, penso que deveríamos constituir desde já um núcleo de camaradas dedicados a essa tarefa, que coordene através do nosso Comitê Central e da ação da Fundação Maurício Grabois, da Secretaria de Relações Internacionais e da Escola do Partido o trabalho dos camaradas que nos distintos Estados se dispõem e têm condições de contribuir nessa tarefa.
Para ter resultados a médio-prazo, esse processo de pesquisa bibliográfica, investigação in loco das principais experiências, intercâmbio de opiniões com partidos irmãos e com a intelectualidade em geral, necessita ser planejado, incluindo especialização e distribuição de tarefas. A criação de grupos de estudo de temas ou processos revolucionários concretos, a realização de seminários internos e com os partidos irmãos – abertos à intelectualidade progressista e à academia – são algumas das alternativas possíveis.
Também está sendo discutida a organização no Brasil, em 2016 e em 2017, de grandes seminários sobre o socialismo, a serem realizados em uma ou mais regiões (simultâneos ou não) e envolvendo palestrantes locais, nacionais e internacionais. Tenho a convicção que eventos dessa importância e magnitude têm plenas condições de estabelecer parcerias com universidades, governos e as mais variadas entidades-instituições, inclusive captando recursos institucionais para a sua realização. É preciso, também, planejar a publicação de um conjunto de livros – a serem lançados no início de 2017 –, abordando os temas tratados nesses seminários e voltados à luta de idéias em torno do socialismo. Todas essas iniciativas teriam desdobramento em novembro de 2017, por ocasião das comemorações dos cem anos da Revolução Russa.
Como a temática é muito ampla, é preciso delimitar algumas temas centrais para o debate. Sem pretender esgotar o assunto, penso que se impõe, em primeiro lugar, uma avaliação histórica e teórica dos principais processos de transformação socialista, pois só poderá ser fecunda uma teoria que tenha por base experiências revolucionárias concretas.
Em segundo lugar, é necessário identificar as principais questões teóricas que vêm sendo enfrentadas nos diferentes processos de transição socialista. Como a multiplicidade de caminhos para construir a hegemonia revolucionária e efetivar a ruptura necessária para a transição socialista; o socialismo como um processo contínuo de transição revolucionária entre o capitalismo e o comunismo (e não como um “modo de produção intermediário”); a questão do Estado e da Democracia no socialismo; as relações entre o Estado, o Partido e as massas trabalhadoras; a persistência da luta de classes no socialismo; o papel da consciência social e da revolucionarização das estruturas ideológicas na construção socialista.
No campo econômico, o papel do planejamento e do mercado durante a transição socialista; a existência de diferentes formas de propriedade e de produção; os mecanismos de distribuição da riqueza e da produção; a combinação dos incentivos materiais e morais; a dialética entre as relações de produção e as forças produtivas durante as distintas fases da transição; o papel da ciência, da tecnologia e da inovação nas transformações socialistas; o socialismo e suas formas de integração internacional nas condições de um mundo hegemonicamente capitalista-imperialista.
  Enfim, estamos diante do desafio de um grande luta teórica acerca do passado, presente e futuro do Socialismo, decisiva para que ele volte a ser uma alternativa real de transformação social libertadora para as amplas massas trabalhadoras de todo o mundo. O tempo urge. Mãos a obra.
Raul K. M. Carrion
(1) “Em Marx não há nem rastro de utopismo, pois não inventa nem extrai de sua fantasia uma ‘nova’ sociedade. Não, Marx estuda como um processo histórico natural como nasce a nova sociedade da velha, estuda as formas de transição da segunda à primeira. Toma a experiência real do movimento proletário de massas e se esforça em tirar dela ensinamentos práticos.” (LENIN, V. I. O Estado e a Revolução. In: LENIN. Obras Escogidas, vol. 2. Moscou: Ediciones em Lenguas Extranjeras, 1960, pp. 340-341.)
(2) “A Comuna devia ser (…) executiva e legislativa o mesmo tempo. (…) todos que desempenhavam cargos públicos deviam receber salários de operários. (…) Assim como os demais funcionários públicos, os magistrados e juízes deviam ser funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis. (…) a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho.” (MARX, Karl. Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra civil na França em 1871. In: MARX e ENGELS. Obras Escolhidas, vol. 2. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1961, pp. 83-85.)
(3) “Demos somente os primeiros passos para nos livrarmos do capitalismo e começar a transição para o socialismo. Não sabemos, não podemos saber quantas etapas de transição para o socialismo haverá ainda.” (LENIN, V. I. Obras Completas, vol. XXVII. In: BERTELLI, Antônio Roberto, (org.) A Nova Política Econômica (NEP). São Paulo: Global, 1987, p. 33.)
(4) “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.” (MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX e ENGELS, idem, p. 223.)
(5) “O proletariado não teme reconhecer que a revolução realizou algumas coisas de maneira esplêndida e outras não. Todos os partidos revolucionários que sucumbiram no passado foram vencidos porque se superestimaram e não souberam avaliar onde estava sua força, nem falar de suas fraquezas.” (LENIN, V. I. Obras Completas, vol. XXIII. In: BERTELLI, idem, p. 53.)