A ex-presidenta Dilma Rousseff participou do debate de lançamento do livro  China: o socialismo do século XXI, de Elias Jabbour e Alberto Gabriele, lançado pela editora Boitempo. O debate transmitido pela TV Grabois, Boitempo TV e Rede TVT, teve também a participação do economista Elias Jabbour, do advogado Silvio Almeida e mediação da pesquisadora chinesa Tings Chak. 

Dilma destacou o debate instigante que o livro abre ao estabelecer aspectos distintivos do sistema econômico e social chinês. Para ela, o trabalho permite refletir sobre o papel do estado na relação com o setor privado e o capitalismo internacional, em defesa dos interesses do povo, ao mesmo tempo que busca o domínio tecnológico e o avanço econômico.

Para ela, o livro tem uma importância central, ao mostrar que o caminho alternativo seguido pela China, ao contrário daquele pregado no Consenso de Washington, o neoliberalismo defendido no início dos anos 1980. “Um papel consciente de homens e mulheres do Partido Comunista da China, que estabelece uma relação política com a construção do novo estado chinês”. 

Consenso de Pequim

“Não dá pra não admirar um país que sai do feudalismo e do mais brutal controle colonialista para se tornar a segunda economia do mundo, e a primeira em paridade de poder de compra. Tudo indica que, nesta década, ainda vamos ver a China se tornar a maior economia do mundo”, declara.

Ela reitera que o livro tem o mérito de abrir uma discussão teórica, econômica e política a respeito do que é a China. “Para transformar é preciso compreender”, diz ela, descrevendo o gigante asiático como “uma luz nessa situação de absoluta decadência e escuridão que é atravessada pelas sociedades ocidentais”.

Na covid-19, Dilma observa que foi importante assistir o uso de uma política de estado, sofisticados instrumentos de inteligência artificial, para o combate à pandemia. O que, para ela, explica o resultado exitoso contra a doença em um país com tantos habitantes.

O livro apresenta com perspicácia e originalidade , na opinião da ex-presidenta, uma tentativa de formular conceitos e leis de movimento da designação que ela considera bastante interessante de “economia planificada de orientação socialista de mercado”. Um conceito que ela avalia ser importante para entender a epopeia da elevação da China, em apenas 40 anos, de sociedade feudal à potencia na área da tecnologia, da ciência e economia, “e esse imenso desafio de tirar da pobreza 600 milhões de chineses”. 

“Eu compartilho essa admiração em todos os brasileiros, do governo do presidente Lula e do meu, que tentaram e conseguiram tirar o Brasil do mapa da fome e da miséria, mas não conseguiram sustentar e manter a saída da pobreza de forma efetiva”, compara.

Outro motivo fundamental para a compreensão do “socialismo de mercado com características chinesas”, de acordo com ela, é porque mostra que o colapso da União Soviética não levou ao marco zero a capacidade do socialismo de se reinventar e tentar formas de transformação sustentáveis. 

A hipótese fundamental o livro, conforme observa Dilma, é que a China do século XXI inaugura uma nova classe de formação econômico social. “A China não é um desdobramento dentro do capitalismo. É uma nova formação econômico-social. Os autores observam que essa formação social de novo tipo se dá, no aspecto socialista dela, que tem que respeitar a lei do valor, pelo fato de que o núcleo da grande base material e financeira está sob controle público em um estado dirigido por uma força política, o Partido Comunista chinês. Partido que reivindica o socialismo como estratégia a ser viabilizada e, ao mesmo tempo, os mecanismos de mercado estão presentes, vigentes e criam limites e restrições. Essa é a grande ousadia do livro”, analisa ela. 

Dilma admira-se que, nessa larga duração do tempo histórico, que se operou a lei do valor em suas formas mais avançadas, foram aquelas estabelecidas pelo desenvolvimento do capitalismo. “Não é apenas uma relação de troca, mas instaura-se no capitalismo por meio do processo de acumulação”. 

Metamodo de produção

A presidenta destaca o fato dos autores utilizarem-se de categorias marxistas, como modo de produção e formação social, “como fez Althusser no passado”, mas introduzem o conceito de “metamodo de produção”. Uma categoria que, para ela, permite a compreensão da vigência da lei do valor, porque se refere tanto a um tempo histórico maior e um plano global onde um modo de produção domina. “Um conceito muito bem construído que vai ser uma grande contribuição para quem concorda e para quem discorda”, diz ela.

Jabbour e Gabriele respondem a uma pergunta sobre quais as características específicas desta nova formação social vão engendrar, possivelmente, um novo padrão de desenvolvimento, portanto, um modo de relações de produção e forças produtivas. “Esse metamodo de produção contempla experiências nacionais de formações econômicas e sociais. Este é o grau de liberdade no qual este desenvolvimento da China é possível”. 

“Pra mim é muito importante esta reafirmação que se dá ao longo de todo o livro de que nenhuma engenharia social alternativa poderá ir além dos limites impostos pelo metamodo de produção, apesar dos graus de liberdade que as formações sociais possuem”.

Dilma observa que esse grau de liberdade só pode ser construído pela ação racional e transformadora dos homens, por isso, ela considera importante, e recomenda como objeto de investigação, compreender mais profundamente o papel do Partido Comunista da China neste processo. 

Regulação financeira

A ex-presidenta do Brasil cita a síntese, ao final do livro, a respeito desse novo padrão de formação social. “Elencam, além da vigência da lei do valor, tanto a construção de um macro-setor produtivo, quanto a adoção do planejamento e da racionalidade. Julgo extremamente importante o conceito de capacidades estatais, que dá conta das formas inovadoras da supervisão e administração  dos ativos do estado”, analisa. 

Ela cita como o governo chinês tenta controlar a financeirização, através da forma como age a comissão de valores mobiliários da China e todos os sistemas de regulação, “que são a forma de controlar aquilo que, sem dúvida nenhuma, é um dos desequilíbrios e contradições da formação econômico e social chinesa, que é o controle sobre o capital”.

Para ela, este elemento da regulação e controle é importante ser compreendido, porque tem que dar conta da relação entre o fato de que há um grande setor privado na China, este macro-setor produtivo, mas, sobretudo, como o estado regula grandes plataformas digitais, como Ali Baba, ou como tratar a questão do endividamento. “Enfim estes mecanismos de contenção dos processos que podem levar à crise”, resumiu, citando intervenções na abertura do capital da Earth, pelo que podia ameaçar o sistema financeiro, ou a forma como o governo lida com a Evergrande, dois grandes complexos bilionários privados vistos em risco de colapso. 

Ela também menciona a capacidade do estado, que considera decisiva, que é a soberania monetária. Ela menciona como isto é um problema permanente para o Brasil. Uma capacidade do estado chinês de controlar a política monetária, para além dos interesses financeiros, visando a situação do estado. 

“Dentro dessa hipótese, que é o fato de ser uma alternativa ao consenso de Washington, e é, certos marcos da China são muito importantes, porque não permitem a ocorrência de uma crise do tipo Lehman Brothers, provocada pela financeirização e pela característica da vigência da lei do valor, a forma prioritária de riqueza e a forma monetária fictícia de títulos e moedas. O controle sobre isso é uma das maiores contradições do capitalismo”, admira-se. 

Outro elemento que Dilma vê na China, a partir do livro, é a importância de um setor financeiro público. “Há restrição de financiamento e a China precisa se mover, portanto, a capacidade de grandes obras e investimentos, e formação da própria China, implica algo importante, que é o credito, que é algo a ser destacado”.

Projeto e planificação

Diante de todas essas ferramentas de controle, Dilma destaca a ênfase que se dá a questão do planejamento racional. Em relação à economia do projetamento, ela diz não ter tantas certezas, quanto tem em relação ao metamodo de produção. Para ela, podem aparecer outros conceitos como esse. “Pode haver um viés pessoal, porque eu considero o projeto algo menor, menos importante. Um projeto é dificílimo de ser elaborado, e precisa de forças nacionais, mas só ganha sentido dentro do marco de planificação, por isso não gosto muito da forma como isso foi construído, por mais importante que seja o Ignácio Rangel”. 

Dilma ficou contente de ver a abordagem dos autores em relação ao legado de Ignácio Rangel, sendo tratado para além da questão da inflação. Segundo ela, a única abordagem que sua geração de economistas via, nos anos 1970-80, naquele economista. “Depois, eu percebi o tamanho do intelectual que ele era. Mas não acho que se resolva a questão com um planejamento racional de um projeto. Isso se faz dentro do capitalismo, até no Brasil. O que é muito complicado e difícil é essa planificação racional”, questiona ela. 

Ela observa como os autores tratam essa economia do projetamento como sendo uma planificação. Mas ela diz não estar muita certa disso, por não estar muito claro para si, embora considera que essa é uma característica distintiva para eles. 

“Considero que esse livro, por tudo que vai significar de debate novo, vai ensejar de discussão e propiciar compreendermos a grande distância que esse país, depois de todos esse anos de fracasso, estão de um processo em que o desenvolvimento resulta em beneficio de seu povo. Um país que considera o uso de todas as suas forças para projetar um futuro”, celebra.

Mais uma vez, ela enfatiza que a obra vai ter grande efeito para a discussão, tanto para entender a China, “e esse momento em que ela surge como uma ruptura do mundo unipolar, como para nos estimular para pensar novos caminhos”. Dilma acredita e reitera que o livro tem gosto de “quero mais”, apontando para a necessidade de evolução do debate. “São intelectuais como Elias que têm capacidade de projetar ainda mais seu conhecimento e produzir novamente”.

Sujeito oculto e “general intelect” 

Dilma ainda fez pedidos aos autores sobre temas que ainda sente falta de serem tratados com a densidade que trataram a questão econômica. Ela pediu uma discussão a respeito do papel do Partido Comunista chinês. “Pois há toda uma gama de preconceitos e sujeito oculto no caso do desenvolvimento da China nos países ocidentais. É preciso entender o papel do Partido na relação com os instrumentos de estado, o Partido e a superação da pobreza, pois acho que é uma relação também teórica da relação entre o político e o econômico, para além do estado. Acho interessante como é construído o estado de direito na China”, sugere. 

“Explorar e expandir a questão da discussão dos limites e restrições da lei do valor tem a ver com o processo de acumulação, a concorrência intercapitalista e o progresso técnico, e a inexorável construção da desigualdade, se esse processo se dá espontaneamente”. É assim que ela observa a importância da atuação do estado.

Ela lembrou um debate que o economista Luiz Gonzaga Belluzzo sempre traz  de Marx, nos Grundrisse, de que não há alternativa à acumulação, “há que acumular”. Neste processo que se dá pelo constrangimento dos capitalistas individuais de adotar a melhor tecnologia para competir, se cria um sistema de máquinas, que é fruto de algo que ele chama de “general intelect”, que é a capacidade criada não pelos capitalistas individuais, mas pela interação com o conjunto da sociedade. É esse general intelect que vai ser responsável, conforme resgata ela, pelas últimas grandes revoluções industriais e tecnológicas, da máquina a vapor, da eletricidade, da eletrônica e agora da inteligência artificial. 

Dilma considera  marcante no desenvolvimento chinês a capacidade de, em 40 anos, se introduzir como liderança nessa área. Daí que ela sugere uma abordagem dos especialistas, que muito lhe interessaria entender, que é a relação disso tudo com o grande setor privado chinês, suas grandes plataformas e o macro-setor produtivo. “É uma das coisas que me intrigam: como se dá esta relação. Como uma das maiores forças do planejamento da expansão da economia chinesa, o aumento da produtividade do trabalho, é uma conquista não só da inteligência artificial…”, diz ela, antes de ser interrompida por problemas técnicos.

Na opinião de Dilma, Jabbour e Gabriele permitiram que tenhamos no Brasil “uma base muito qualificada” de debate sobre a China. “Não conheço nenhuma outra obra que consegue ensejar tanto debate a partir dela, com tanta lucidez e clareza dos dois”, elogiou. 

Concluindo, Dilma salienta que a China criou o setor privado urbano, num padrão que é similar a qualquer outro, nem pode ser pensando nos moldes do que aconteceu na Inglaterra, por exemplo. Mas esta não é a questão pra ela. “Se a lei do valor vige, com a lei da acumulação sendo a mais elevado do valor, e o progresso técnico deriva da relação intercapitalista, o que acho que está acontecendo é: como eles dominam a dinâmica do sistema?”, indaga. 

Na opinião dela, a partir da leitura do livro, os chineses tornam racional o processo de geração de progresso técnico, usando como indicador o mercado. “Mas pegando o macro-setor produtivo e principalmente o financeiro, colocando rios de dinheiro em computação quântica, por exemplo, para ir à Marte, para adotar internet das coisas, criam o 5G. É por aí que o capitalismo se move”. 

Assim, o papel do estado é crucial, e Dilma o considera maior que grandes projetos como a Rota da Seda e outros que a ousadia do governo tem proposto. Para ela, o progresso técnico que se observa lá, é domínio da quarta revolução industrial e tecnológica. “Há uma presença do setor privado coordenado pelo estado, de forma absolutamente diversa”, conclui.