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Elias Jabbour: “O futuro do Brasil está ao lado da China”

5 de junho de 2023

Entrevista do professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Elias Jabbour, para o Zero Hora.

Entrevista do professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Elias Jabbour, para o Zero Hora. Publicada em 01.06.2023.

Um dos autores do livro “China: O Socialismo do Século XXI”, Elias Khalil Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e um dos principais especialistas brasileiros sobre o gigante asiático. Ele desfruta da confiança da ex-presidente Dilma Rousseff, atual dirigente máxima do Banco do Brics, para o qual Jabbour está por ser nomeado diretor.

Nesta entrevista, concedida no início de maio, ele apresenta a tese de que a Revolução Chinesa, em 1949, desdobrou-se na “maior transformação social da história da humanidade”, comenta os riscos iminentes de uma guerra convencional entre Estados Unidos e China e projeta uma futura ordem mundial com o declínio da hegemonia norte-americana e ocidental.

Para Jabbour, o desenvolvimento chinês representa, atualmente, o grau máximo que a inteligência humana pode alcançar. Ele ainda rechaça críticas ocidentais que apontam censura, restrições à liberdade e governo ditatorial do Partido Comunista Chinês.

Alguns analistas consideram que estamos no início de uma Guerra Fria 2.0. Porém, há divergências. E havia, na Guerra Fria original, dois campos ideológicos singulares. Hoje, as economias de China e EUA estão entrelaçadas e há dúvidas se a China deseja ampliar sua influência. Há semelhanças?
Há uma tensão, mas é diferente porque envolve algo que o Ocidente tem medo desde o século 15: uma união Eurásica. E isso está se concretizando agora. Esse é o grande ponto de receio do Ocidente porque, pela primeira vez nos últimos 500 anos, o que se chama de Ocidente (Europa e América do Norte) já deixou de ser o agente dinâmico do mundo, do ponto de vista econômico. Isso é uma novidade: desde que Cristóvão Colombo chegou à América, o momento que estamos vivendo hoje talvez seja o grande turning point. Lenin, no final da vida, trabalhava com a ideia de retirar a guerra do campo militar e trazê-la para o campo comercial. Os chineses conseguiram isso seguindo o que o Lenin procurava: investimento estrangeiro para atrair tecnologia e concessões ao setor privado interno. O que Lenin não conseguiu completar: integrar a União Soviética ao resto do mundo e, com suas riquezas naturais, ligar o resto do mundo à União Soviética. A China fez isso com o Ocidente. O destino do Ocidente está umbilicado com a indústria chinesa ou mesmo com a tecnologia consumida na China. A China se integrou à economia global. Consegue ter o governo americano contra ela, mas há empresas dos EUA que não aceitam isso. Isso não aconteceu com a União Soviética, que foi isolada em um bloco, fazendo comércio consigo mesma. E, quando ela começou a fazer parte da divisão internacional do trabalho, entrou como exportadora de petróleo e gás, e não como a China, que é exportadora de produtos de alta complexidade. É uma guerra híbrida, comercial e convencional.

Em um artigo, o senhor avaliou que teremos uma Terceira Guerra Mundial, possivelmente entre EUA e China, e que o estopim será a questão de Taiwan. Acredita que essa tensão pode levar a um conflito de fato?
Já está acontecendo, e é pela Ucrânia. Esse conflito pode se espalhar para o restante da Europa. A China vai fazer o possível para que não chegue à Taiwan. Mas há luz no fim do túnel: as forças separatistas de Taiwan perderam as últimas eleições. Agora, isso significa que os americanos irão entregar Taiwan? Significa que os americanos vão deixar de usar Taiwan para provocar a China e elevar a escalada da provocação? Acho que pode virar uma guerra convencional, mas não sei quando. A China tem margem de manobra em Taiwan. A população taiwanesa é contra a guerra. Não é fácil arrumar uma confusão na região. Uma guerra ali vai destruir 10 das 30 maiores cidades do mundo. Não é brincadeira.

Todos saem perdendo?
O mundo todo vai perder. A China sabe da sua incapacidade militar diante dos EUA. O atual chefe da diplomacia chinesa disse isso. Não interessa para a China o conflito. Agora, se houver, e acho provável que aconteça, a resposta vai ser just in time. No mais alto calibre. A China pode destruir Washington e Nova York. Tem capacidade militar para isso. A mesma coisa os americanos em relação a Pequim, Xangai, Guangzhou. Pode acabar em uma guerra nuclear também.

Qual a sua avaliação sobre a atuação dos EUA em Taiwan. O senhor fala em provocações. Qual seria o objetivo?
Há hoje 42 tecnologias sensíveis no mundo, e a China está à frente em 37. A grande fronteira tecnológica é a infraestrutura de semicondutores, que a China está duas gerações atrás dos EUA. E quem tem essas infraestruturas hoje instaladas em seu território é Taiwan. Ou seja, o que está em jogo não é somente Taiwan, e sim a TSMC, que é a empresa taiwanesa que exporta para a China os elementos de semicondutores. Essa fábrica é o que pode trazer para a China independência tecnológica em relação a semicondutores. A China hoje tem 2 mil startups patrocinadas pelo Estado voltadas à produção de semicondutores. Esse bullying tecnológico que a China sofre está tendo efeito contrário: ela está deslocando toda a sua energia nacional para superar a barreira dos semicondutores. O que pode ocorrer com o mundo na medida em que a China alcançar os americanos nessa tecnologia? É evidente que o Estreito de Taiwan é uma região ultrassensível. Assim como o Brasil é uma região ultrassensível. Se a Ucrânia é um local de disputa hoje na Europa, se Taiwan é um local de disputa no Leste Asiático, o Brasil também é um local de disputa na América Latina. Acho que Ucrânia, Taiwan e Brasil são os três grandes pontos de tensão mundial hoje.

No século 20, tivemos a consolidação de uma ordem global liberal: o american way of life, o dólar como lastro do comércio internacional, as organizações comandadas pelos EUA, única superpotência emergente da Guerra Fria. A China ganha espaço e contesta essa ordem. É possível imaginar uma ordem global sinocêntrica? A China quer isso?
A China não quer governar o mundo. Não tem essa pretensão. A financeirização é um fenômeno interessante, porque foi fragilizando os países capitalistas centrais a tal ponto que a distância entre a China e eles diminuiu rapidamente. O mundo entrou em crises financeiras sucessivas, enquanto a China reduzia a distância em relação aos americanos. A financeirização foi corroendo por dentro o sistema, e isso foi possibilitando que a China alcançasse os objetivos que seriam de longo prazo no curto e médio prazos. Outro ponto: o custo de você ser hegemon no mundo é muito alto. As pessoas me perguntam: “A China quer que o Brasil seja um país forte?”. É evidente que sim, porque ela não quer ter o ônus de instalar bases militares na América Latina. Para ela, um Brasil forte, industrializado, com tecido social reconstruído, com uma base industrial tecnológica é importante. Não quer ter o ônus de ser polícia do mundo, isso não é nem o perfil dos chineses. A ordem multipolar que a China prega conta com uma América Latina com papel central, com Brasil, Argentina e México; a África com papel central; e a própria Ásia, com China, Índia e Rússia, idem. Mais: o lugar da China não é o Norte Global. Ela nunca será aceita no clube dos países desenvolvidos. O lugar histórico dela é o Sul Global, o Terceiro Mundo. Eles se veem nessa condição. Querem o Sul Global fortalecido porque isso, para eles, é uma muralha também.

A esquerda critica as bases da Otan próximas à Rússia e as movimentações dos EUA perto da China. Por outro lado, no Ocidente, os críticos da China dizem que ela avança comercialmente, com compras de propriedades em setores estratégicos, e que isso pode ser também uma ameaça. Diante disso, vivemos o ápice da sinofobia, potencializada pela pandemia de covid-19?
A sinofobia está a mil por hora até por uma questão de decadência moral no Ocidente e de ter que se colocar a culpa em alguém. A China se declara um Estado socialista, e há 30 anos se falava que o socialismo tinha morrido. Isso, por si só, já é motivo para que o Ocidente fique em polvorosa. A gente tem de dar nome aos bois: é racismo. É essa visão europeia e americana de despotismo oriental que julga a China como ditadura. Você pega 5 mil anos de história da China e resume a um conceito de ditadura ou democracia quando, na verdade, o mais inteligente seria observar quais são as formas históricas de propriedade e sistema de governo e políticos que advêm disso. O Ocidente vive uma crise da democracia liberal. No fundo, é a crise de uma democracia que nunca existiu. O Ocidente é uma plutocracia. Nos últimos 30 anos, cerca de cem países adotaram democracias liberais e mais de 60 estão em crise por algum motivo: fome, falta de governança, dívida. A sinofobia é racismo, só que os ocidentais não se olham no espelho. O Ocidente está se desmanchando.

E o avanço da China sobre propriedades e setores estratégicos do Ocidente?
A China faz o que qualquer país do mundo com projeto nacional faria. Isso não é expansionismo, é ocupação de espaço geopolítico. Agora, se o Brasil permite isso, é outra história. Quem está errado somos nós (brasileiros). Todo mundo fala que a China avança, mas ela o faz porque os países permitem. E você não vai fazer comércio ou manter uma relação de investimento com um país que faz comércio há 3,6 mil anos e achar que está sendo esperto com eles. Você não pode entrar no jogo com a China sem que tenha um projeto de longo prazo. Porque você vai ser engolido. Isso independe se a China é socialista, capitalista, de direita ou de esquerda. A capacidade que os chineses têm de fazer comércio e de usar o comércio como arma política é impressionante. Temos de lidar com a China com um projeto nacional, não como um país que quer vender commodity, não como Michel Temer fez colocando um monte de empresas para os chineses comprarem. Jair Bolsonaro também o fez. O Brasil tem de ter uma legislação dura em relação a isso. Agora, nós não vamos pedir para que chineses tenham complacência em relação a nós. Não vão ter. Qualquer país respeita quem se respeita. Está na hora de o Brasil se respeitar nesse aspecto. Até porque uma das características da China e do governo chinês é se adaptar a projetos sociais autônomos. A China não é um país imperialista, nem colonialista, nem neocolonialista.

Pode dar exemplos?
A Bolívia. A China poderia muito bem importar o lítio boliviano e fabricar baterias no seu próprio território. A Bolívia exigiu da China a industrialização do lítio em território boliviano. A Etiópia está exigindo da China a instalação de zonas econômicas especiais lá, não quer mais exportar commodity para a China. Paquistão e Irã fizeram a mesma coisa: “Queremos infraestrutura, transferência de tecnologia”. A China está fechando um negócio com a Tailândia, de trens de alta velocidade, que prevê transferência de tecnologia.

A China censura a internet e tem presos políticos. Como você classifica o país em termos de liberdade?
A China é uma democracia não liberal porque tem suas próprias formas históricas de representação popular. Qualquer vila, distrito ou aldeia tem o Partido Comunista e uma assembleia popular local. Na última reunião da Assembleia Popular Nacional, foram mais de 3 mil destaques vindos das bases. Não existe isso em outra parte do mundo. A gente tem de compreender que a China tem suas próprias formas históricas de representação popular, que remontam há 2 mil anos, a uma antiga prática de democracia à base da aldeia. Não acredito que um trabalhador alemão, americano ou brasileiro seja mais livre do que um chinês. Outra coisa: a China tem preso político? Quem? Os EUA têm presos políticos em Guantánamo.

Na China não há presos políticos?
Se alguém me mostrar que tem, vou falar que tem. E lamentarei isso.

Na sua visão, isso é parte do discurso do Ocidente de vilanizar a China?
Não tenho problema em assumir que há presos políticos na China, desde que me provem. Sou cientista, não torcedor. Até onde sei, não há. Restrição à internet: no mundo inteiro há restrição à internet, não só na China. Nós, aqui, trabalhamos 24 horas por dia para o Twitter, para o Google, a Meta. E todos sabem no Ocidente que as big techs se transformaram em instrumento de desestabilização de sociedades. Eu coloco a pergunta: por que a China tem de se dar o direito de ser desestabilizada como foi o Brasil, o Irã, por conta de uma liberdade de acesso à internet? A restrição na China não é à internet. É às big techs, que não são chinesas. Até porque, hoje, o ouro do mundo não é o petróleo. São os dados. E Mark Zuckerberg (dono da Meta) já confessou que trabalha para o governo americano. Então, como a China vai permitir, em meio ao bullying comercial e tecnológico, que suas empresas e seus cidadãos entreguem para os EUA os seus dados? Não é uma questão moral, é política e geopolítica.

O senhor defende que houve na China, a partir da Revolução de 1949, a maior transformação social na história da humanidade, por tirar um grande contingente de pessoas da miséria. Pode explicar a abordagem?
A China é hoje produto da maior revolução social da história da humanidade, que foi a Revolução Chinesa, em 1949: uma imensa revolta camponesa, após mais de cem anos de humilhação dos mesmos países que hoje dizem que a China é uma ditadura. De um dos países mais ricos do mundo, a China passou a ser um dos 10 mais pobres em 1949. A expectativa de vida era de 35 anos. O analfabetismo beirava os 90%. Em 72 anos, isso mudou completamente graças a essa revolução social. É evidente que o socialismo é um sistema social muito novo. Tem apenas cem anos. Isso não é nada, um embrião na História. O capitalismo tem 600 anos. O feudalismo tem mais de 2 mil anos, a escravidão, mais de 2 mil anos. A China é um socialismo embrionário, que vai se reinventando ao longo do tempo. Advogo no meu livro que, a partir de 1978, o socialismo chinês se reinventa, algo fora da ortodoxia marxista. A China construiu seu próprio caminho ao socialismo. Hoje o governo usa big data, 5G, inteligência artificial para ter uma intervenção mais rápida na economia. Como entender que a China conseguiu gerir, elaborar e executar milhares de projetos simultaneamente após a crise de 2008? Isso significa uma elevação da capacidade de planejar e executar a partir da plena utilização das inovações tecnológicas disruptivas. Falta uma ciência social para entender a China hoje. Ela tem de ser descoberta cientificamente. O grau máximo que a inteligência pode alcançar hoje no mundo é o que estamos vendo na China.

Diante da aproximação entre China e Brasil, há risco de desagradar os EUA? Em algum momento, o Brasil vai ser forçado a escolher um lado?
O Brasil é muito grande para caber no quintal de alguém. O Brasil tem de tirar o melhor que os americanos podem nos entregar. Eles têm condições de entregar grandes empresas, na forma de joint ventures? Se tiverem, eu aceito. A China tem. O Brasil, na década de 1950, planejou sua economia a partir da tendência do automóvel. Nós não temos autonomia de lançar tendência para planejar a economia. Temos de aproveitar as tendências de fora. A tendência naquela época era o automóvel. Por isso, Juscelino Kubitschek traz as montadoras, ao lado delas surgem de 2 mil a 3 mil empresas metalmecânicas. Hoje, vemos a destruição das ligações brasileiras, um problema de soberania, inclusive: você não vai de Porto Alegre até Manaus de carro, ônibus ou caminhão. O Brasil está com suas infraestruturas destruídas. O básico de um país capitalista é ter infraestruturas que unifiquem seu mercado nacional. O Brasil não tem mais isso. E qual o país do mundo que entrega uma tendência para isso? A China. Falo de trens, rodovias, portos. O futuro do Brasil está ao lado da China.

Japão e Austrália, vizinhos da China próximos aos EUA, anunciaram investimento em forças militares. A China tem como aliados a Coreia do Norte e a Rússia. Há desvantagem em relação a aliados e isso deve ser prioridade na política externa chinesa?
A China hoje é a maior parceira comercial de 140 países. O problema da China não é falta de aliados. Ela tem praticamente toda a Eurásia, a África e a América Latina a seu lado. O problema dela não é o isolamento. Ao contrário: as pessoas não percebem que quem está se isolando é o Ocidente. Houve uma reunião da Organização para a Cooperação de Xangai, em que metade do mundo estava lá em termos de população, e cujo informe final foi muito claro: “Não aceitamos ingerência ocidental nos nossos países, e não aceitamos bullying econômico ao Irã”. Quem está sofrendo um problema de isolamento é o Ocidente. O Ocidente está desmoralizado em todos os aspectos.

Uma crítica que se faz é sobre a questão ambiental. A China precisa avançar nesse ponto? Como está o debate internamente?
Se você juntar os investimentos em tecnologia verde de Europa e EUA, a China dobra. A China é o país que mais investe em tecnologia limpa. A resposta que o mundo está dando hoje à questão climática não é feita pelo Ocidente, e sim pela China. É que as informações não chegam para nós.

As narrativas do Oriente não chegam aqui?
Qual foi a última notícia boa que vocês viram sobre a China? Nenhuma. Não chega. A gente fala de repressão à internet na China, e não fala (do mesmo problema) no Brasil. Nós vivemos uma tempestade semiótica integral contra a China no Brasil.