O Brasil herdou de Portugal o velho sebastianismo. Ainda há quem acredite por aqui na busca eterna do ‘rei bom’ desaparecido, alguém que iria resolver os problemas nacionais de cima para baixo. Um lado positivo do sentimento sebastianista é o da constatação do risco constante da pátria ser tomada por reis que a corrompam, destruindo o que houver de positivo. O outro lado da moeda é a de uma espera sem fim e da delegação a outrem dos problemas que precisam ser resolvidos pelos que os sofrem. A solução culturalmente acalentada há séculos é de que sempre aparecerá àquele que fará a redenção do povo, como Cristo teria realizado a redenção dos homens do pecado original há 2.000 anos.

O sebastianismo na cultura acreditada no país foi explorado à direita e à esquerda em momentos diferentes do passado e do presente. Que político não gostaria de ser conhecido como o ‘salvador da pátria’ e ser eleito com imensa aprovação popular? Não importa se para ele o povo é um ‘detalhe’ e que seus objetivos reais sejam de fato locupletar-se e defender os interesses das elites que o financiaram. Infelizmente, em vários momentos da história do Brasil, o discurso sebastianista, modificado e adaptado em tempos e pessoas específicas, produziu ‘pais da pátria’ terríveis. Isto foi visto, por exemplo, na história do Brasil pós-ditadura.

O sebastianismo está abalado, mas não morreu. Ainda não deixou de ser possível tentar ludibriar as maiorias e buscar o cetro e a coroa imaginária do rei mítico e místico, redentor de seus súditos. Felizmente, está cada vez mais difícil fazer crer de sua justeza. Busca-se saber o que não corresponde ao real e concreto de cada pretendente ao ‘trono’ do Brasil. Obviamente, não se vive um regime monárquico, mas o presidencialismo foi parido do seio deste. Pior ainda, foi inventado em uma colônia – EUA – a partir da idéia de se ter um rei eleito com tanto poder como o da Inglaterra. O regime presidencial-eletivo foi aceito em todas as Américas. Somente em Cuba, ele não existe. Mesmo lá, há alguém que sintetiza o poder de Estado de modo real e simbólico.

O parlamentarismo, derrotado no Brasil em dois plebiscitos – 1963 e 1993 –, demonstrou em contextos diversos que a preferência popular é presidencialista. Isto quer dizer que as maiorias, por mais manipuladas que tenham sido, acreditam que no Brasil é necessário alguém que represente a todos enquanto pessoa e personagem coletivas da República. O parlamentarismo, nas duas vezes que foi proposto, apesar das diferenças, consistia em uma espécie de golpe de Estado antimudancista. Os eleitores o rejeitaram por entender o que havia por trás dos fatos e por ser tributários de uma cultura sebastianista de origem colonial e fortemente reforçada na Era Vargas.

Na década de 1960, a proposta parlamentarista foi para derrubar Jango. Em 1993, o seu conteúdo básico era o de evitar o risco potencial de um presidente mais à esquerda virar as regras do jogo. Em 1963, as direitas estavam unidas contra o janguismo, isto é, contra a versão política progressista da República brasileira que Goulart representava. Esta insistia em um capitalismo autônomo, no nacionalismo, em reformas sociais e no respeito às reivindicações dos trabalhadores. Em 1993, as elites temiam que a crise que o país mergulhou na brevíssima e horrorosa Era Collor acabasse por gerar a possibilidade de um Allende ressuscitado no Brasil. Isto não ocorreu e FHC conseguiu convencer aos eleitores brasileiros por duas vezes sucessivas que era a melhor opção, encarnando a idéia do ‘pai da pátria’, do letrado que iria melhorar a vida do povo considerado ignorante e incapaz de tomar decisões corretas. Que decepção! O engano no poder durou bastante, mas o falso e pretensioso novo dom Sebastião acabou por se transformar em pó, figura de um passado neoliberal que se deseja esquecer.

Com inúmeros percalços e imensos problemas, nas várias fases dos seus dois governos, Lula conseguiu sentar no trono e segurar o cetro, como ninguém antes dele. Afinal, ele se parece demais com seus eleitores. É mestiço como a maioria dos brasileiros. Tem um fenótipo que mistura traços indígenas, brancos e negros. É da ‘família’ Silva, seguramente, a maior do Brasil. Fala um português oralizado, tal como a grande maioria dos seus súditos. E mais importante do que tudo isto, comunica-se com a grande massa de modo fácil e compreensível, por mais que se possa discordar de algumas de suas falas e concordar plenamente com muitas outras. É amigável e capaz de fazer alianças políticas impensáveis. Está terminando o seu segundo governo com um elevado índice de aprovação e com a capacidade de transferir milhões de votos para seu sucessor (a).

O seu maior legado é a adoção de uma política externa independente, latino-americanista e defensora de princípios democráticos-formais e reais universais. No cenário econômico, o seu governo atravessou a última crise internacional do capitalismo, demonstrando como era falsa e perigosa a perspectiva privatista e a submissão maior ao império. O Estado mantido forte, porque cessaram as privatizações selvagens do governo anterior, pôde resistir aos efeitos maiores dos abalos sistêmicos vindos dos países ricos. A economia vem crescendo de vento em popa, com índices comparáveis à época do milagre da ditadura, sem o endividamento externo do período que tantos problemas causaram ao país.

As burguesias parecem estar bem satisfeitas com a política econômica do governo, restando algumas pequenas resistências a alguns aspectos. Os burgueses, em sua maioria, não suportam o estilo de Lula e gostariam que seu sucessor fosse alguém mais afinado com o discurso conservador e antipopular. Entretanto, as burguesias são pragmáticas aqui e por toda parte. Se os negócios vão bem, não importa quem seja o rei, desde que ele não toque nos seus interesses mais essenciais. Elas compõem, desde que não sejam ameaçadas pelas lutas de classe e que os governos garantam a ordem e a manutenção do status quo.

As elites agrárias são as mais resistentes, por efeito do apoio tácito e contraditório do governo aos movimentos dos camponeses sem terra. Não aceitam bem a continuação do mesmo processo, porém não possuem meios para impedir que isto ocorra. Não podem acabar com o movimento dos camponeses e nem fechar a porta e os olhos do Estado para a existência dos imensos problemas do mundo rural brasileiro. A questão fundiária nacional oriunda da época do escravismo e da Abolição continua a assombrar a história do Brasil. Um dia será completamente resolvida, assim se espera. Nesta data, o passado de iniqüidades do mundo rural será lembrado como hoje se lembra da escravidão e de todos seus tormentos.

De modo geral, a população pobre do país, isto é, a maioria dos brasileiros reconhece na Era Lula um governo bom. Elegeu o rei e ele correspondeu aos seus anseios de sobrevivência e de melhoria social. Os muito pobres recebem ajudas em dinheiro e em outros programas sociais que sempre foram sonegadas pelos governos anteriores. O valor real do salário mínimo é, agora, um dos maiores da história do Brasil. A miséria extrema diminuiu e ninguém mais se imagina sem estes tipos de apoio. Os não tão pobres têm sido também ajudados de outras formas e o crédito nunca foi tão abundante.

O capitalismo com todas as suas vantagens e desvantagens foi estendido a milhões que se tornaram novos consumidores e membros do crescente mercado interno. É verdade que as estruturas sociais profundas permaneceram intactas. Os problemas sociais tradicionais dos países capitalistas pobres estão aí expostos para quem quiser ver nas cidades e no campo. Entretanto, para muita gente o que foi feito parece que jamais poderia ter acontecido. A gratidão popular é incomensurável, refletindo o nível de consciência atual e possível das grandes massas.

Dos atuais candidatos à presidência dois se destacam com os possíveis primeiro e segundo lugares. Eles têm personalidades próprias e são também personas construídas na complexa teia de relações entre as mídias, a população e suas aparições públicas concretas passadas e presentes. Com os demais candidatos ocorre algo diverso, porque somente uma é mais conhecida do grande público. Os demais são pessoas não tão familiares ao universo construído pelas grandes mídias. Os seus tempos de propaganda reduzidos e a rejeição que provocam nas elites contribuem para que a massa dos eleitores tenha dificuldade de perceber que eles estão na mesma disputa. Destes todos, somente uma, por ter sido ministra do governo Lula, é mais conhecida e mais comentada pelos meios de comunicação.

Apenas um será eleito para ocupar o posto tão cobiçado da República. Já é possível imaginar que talvez não haverá segundo turno. A candidata apoiada pelo atual governo estaria virtualmente eleita com uma elevada margem de votos. Seria a primeira vez da história da República brasileira que uma mulher iria ocupar o maior posto do país. Existem fortes resistências ao fenômeno e a intriga tem sido disseminada de todo jeito. O fato da candidata ter pertencido aos setores mais aguerridos da geração de 1968 lhe é cobrado sem descanso. Mesmo que hoje ela tenha sabidamente posições políticas moderadas, não se perdoa que, na grande noite da ditadura, ela tenha empunhado armas para combater o regime despótico da época. Tenta-se, sem muito sucesso, desqualificá-la para o cargo, afinal, sempre exercido pelo sexo masculino.

O virtual segundo lugar também veio das esquerdas, as quais abandonou há muito tempo para servir ao projeto do capital. Sua persona, por mais que se esforce, não consegue ser simpática. Transparece facilmente que ele é contra a tudo que foi positivo nos governos de Lula e quer colocar os pobres no seu ‘devido lugar’. Ele não consegue esconder seu apego aos maneirismos das elites brasileiras, mesmo sendo de origem modesta e tendo vivido um período importante de sua vida onde criticava o que hoje defende. Seu ódio a qualquer sintoma de abertura progressista é por demais evidente, por mais que tente esconder. Seu balão de ensaio, governando São Paulo, dá uma idéia do que faria com o Brasil. Também representa uma continuação. Deseja ser o novo FHC, empolgando o cetro para fazer funcionar o neoliberalismo radical de seu predecessor. Cada vez mais, seu sonho de sentar no trono presidencial se desvanece e transforma-se em poeira histórica.

O terceiro lugar virtual desta eleição está sendo disputado também por uma mulher. Ela tem como mote o sério problema do meio ambiente e como vice um empresário que se situa em posição de proveito comercial de seu tema predileto. Trata-se de uma candidatura com problemas de legitimidade. Ela é crítica de um governo da qual foi ministra por muito tempo. Seu papel nas eleições é claramente de tirar votos do possível primeiro lugar e não o de ganhar o pleito. As alianças que fez indica que é uma espécie de via alternativa do provável segundo lugar. Veio das forças progressistas e hoje serve ao que há de mais reacionário no país. Tenta explorar sua origem humilde, mas não consegue convencer que realmente acredita no que diz. Parece uma onça de papel, repousando sob uma árvore de plástico. Apesar de empolgar parte das preferências das classes médias urbanas, não consegue atingir a população mais pobre e lulista.

Os demais candidatos sabem que não têm qualquer chance. Aproveitam o momento e o espaço eleitoral presidencial para vender seus peixes. Alguns deles são homens sinceros, desejosos de viver em um país melhor. O problema é que o grau de inserção social de suas idéias é muito pequeno e a possibilidade de ir muito longe também. Talvez, no futuro, exista uma outra situação. No presente, a eleição será decidida – ou já está decidida – entre a continuadora e possivelmente renovadora da Era Lula e o candidato-síntese das classes dominantes do Brasil. O que se espera de fato é o resultado de tudo isto. A democracia do país precisa ser aprofundada e as estruturas sociais necessitam de fortes transformações. Não basta o país crescer. É preciso dividir a renda e modernizar as relações sociais. Permitir que as grandes massas tenham acesso às informações científicas e técnicas do tempo presente. Combater a ignorância, a desinformação e o império da intriga midiática que assola o Brasil atual.

Sabe-se que tudo isto não depende exclusivamente de quem será eleito. Nenhum rei, por melhor que seja, liberta seus súditos e nem lhes dá nada além do habitual sem resistência. Se eles não protestarem e exigirem mudanças, nada pode acontecer de mais substantivo. Vive-se um momento de calmaria social. São poucas as manifestações, as greves e a organização popular vem demonstrando, em várias áreas, sinais de fraqueza. Muitas delas ficaram a reboque do Estado e esperam que ele resolva seus problemas. Mais cedo ou mais tarde isto mudará e se voltará a ouvir o clamor popular nas ruas, como se ouviu em vários períodos da história do Brasil. Os mais jovens não viram 68, as greves operárias do ABC no final dos anos 70 e nem os milhões nas ruas no início dos anos 80. Problemas não faltam e nada é capaz de deter a maré humana quando ela irrompe no cenário da história.

Somente as grandes massas serão capazes de enterrar o sebastianismo de uma vez por todas e tomar as rédeas da história em suas mãos. A ampliação da democracia e da justiça social não podem ser objetos de apenas uma eleição. Muitas águas precisarão rolar, até que se possa considerar que o Brasil é um país justo e equânime para todos os seus cidadãos. Esta questão está presente há muito tempo, mas não é ela que será resolvida agora. Os que não desejam de forma alguma qualquer justiça social mais profunda devem sempre ser derrotados, até que se chegue a uma solução mais duradoura.

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Luís Carlos Lopes é professor e escritor

Fonte: Carta Maior