Direito e Marxismo: um encontro necessário
Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar uma crítica marxista à visão marxista do direito. Apresentando-o, a partir de uma análise teórica materialista, como fruto das relações sociais e não como mera produção estatal. Pretende mostrar também a complexidade de apreensão do fenômeno jurídico, apresentando seu caráter múltiplo, que só pode ser apreendido a partir de uma visão dialética da realidade. Apresento a idéia de que ele tem um papel estruturador e orientador destas relações sociais. Sendo um instrumento que teve um papel importante na ascensão da burguesia ao poder. E que os marxistas devem se apropriar desse instrumento para seus objetivos táticos e estratégicos. Utilizando o manancial teórico marxista para transformar o direito, rompendo com o positivismo jurídico e aproximando-o da realidade social. Tornando-o um instrumento capaz de apreender toda a complexidade da produção e reprodução dos seres humanos organizados em sociedade.
1Leandro Alves é Acadêmico de Direito e Servidor do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Foi Assessor Sindical do SINDIMETRO/RS e do SINTRAJUFE/RS, Assessor Parlamentar na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
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A visão marxista do direito
A visão mais difundida no meio marxista acerca do direito é a que – por ser ele parte da superestrutura – o toma como mero reflexo das relações econômicas da sociedade. O modo produção da vida material condiciona a vida social e política, sendo, em última instância, o determinante absoluto do direito.
Os defensores de tal concepção costumam justificar seu entendimento numa exposição de Engels em sua obra A “Contribuição à Crítica da Economia Política” de Karl Marx, que diz:
“Na produção social de sua vida, os homens constroem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção formam a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”. (Marx e Engels, “Obras escolhidas”, volume 1, p.301).
Essas palavras tornaram-se um dogma para os marxistas. Tal vezo fez com que a ciência marxista ficasse estagnada no campo do direito, restringindo-se a uma área exclusiva dos intelectuais burgueses. Com o tempo esse entendimento foi sendo combatido. O próprio Engels questiona a maneira equivocada como suas palavras e as de Marx foram interpretadas. Marcus Vinícius Martins Antunes, em seu ensaio Engels e o Direito, utiliza a seguinte passagem de Engels:
“Se alguém tergiversa dizendo que o fator econômico é o único determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que sobre ela se levantam – as formas políticas e a luta de classes e seus resultados, as Constituições que, depois ganha uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior destas até convertê-las em um sistema de dogmas – exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, predominantemente em muitos casos, sua forma. (“Fios de Ariadne – Ensaios de interpretação marxista”, Editora UPF, p.36).
Há uma série de juristas que entendem o papel que o marxismo pode ter no desenvolvimento do direito, mas todos apontam que precisamos primeiramente romper com a visão dogmática sobre o direito. Fabio Coelho Ulhoa, em seu livro Direito e Poder, questiona essa visão dogmática por parte dos marxistas:
“Essa equação reducionista, esse economicismo, é uma deturpação simplificadora do marxismo marxista O modo de produção existente em uma sociedade é a sua base real no sentido de que condiciona as demais relações sociais. Não as determina, por certo; apenas a condiciona. As manifestações do espírito humano possuem o que se costuma chamar de relativa autonomia, de uma lógica interna que não se consegue entender apenas com o reporte às condições materiais da vida social”. (Coelho, 2005: 08).
Mais adiante, Coelho diz:
“Pela redução voluntarista, o Direito é visto como mera expressão dos interesses da classe dominante. Ignora-se, nessa perspectiva, o papel que as classes dominadas desempenham na história e a própria dinâmica da luta de classes. O Direito acompanha, com maior ou menor proximidade, os movimentos dessa luta. As concessões localizadas da burguesia e os avanços e as conquistas do proletariado estão presentes no condicionamento da produção normativa. Além disso, a classe dominante possui suas segmentações, seus projetos diferenciados, que compõem uma complexa rede de interesses, impossível de ser sintetizada na idéia de um Direito que atenda exclusivamente aos de uma classe social apenas. (Coelho: 2005, 8-9).
Além de rever nossa posição em relação ao direito, teremos de desfazer a imagem negativa que temos entre os juristas progressistas, buscando uma aproximação com esse seguimento da intelectualidade que terá um papel estratégico na edificação de um Estado democrático e inovador de suas instituições. Entendo que o caminho para isso é único, retomar a essência do marxismo, que nada tem a ver com o dogmatismo. O marxismo é uma teoria viva, não é um materialismo mecânico, que entende que a consciência social fica reduzida às condições econômicas. Karel Kosik, em sua obra Dialética do Concreto, questiona esse reducionismo e diz:
“Ao contrario, a dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, idéias correspondentes e todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido.” (Kosik, 995, 124).
Então não podemos partir de um “único determinante”, pois assim estaremos negando a própria essência do marxismo. Cometemos, assim, um grande erro. Ao reduzimos o objeto que estudamos, por óbvio, chegamos a conclusões imprecisas.
Entendo que um dos principais erros cometidos por nós marxistas ao analisar o direito é o fato de tomá-lo isoladamente da sociedade. Ao entender o direito como algo fora, ou acima, da sociedade, esquecemos que ele é obra dos seres humanos. Apegamo-nos a forma jurídica – a lei tomada isoladamente – e nos esquecemos do conteúdo – as relações sociais apreendidas na complexidade de todas suas dimensões.
A extinção do direito
Essa visão parcial do direito nos levou a um equivoco que estagnou o pensamento marxista no campo jurídico. Ao entendermos o direito simplesmente como a forma jurídica, adotamos uma visão positivista do direito2, aquela que entende que só o Estado produz o direito. Então partimos para uma solução mecânica que pode ser resumida na seguinte fórmula: se nosso objetivo estratégico é a extinção do Estado e só este cria o direito, nossa relação com o direito já está determinada – só nos resta aniquilá-lo, ou seja, o fim do Estado é igual ao fim do direito. Fica evidente, então, a influência redutora do positivismo jurídico na percepção marxista do fenômeno jurídico.
Esta armadilha positivista – que só é direito o que é elaborado pelo Estado – construída pela burguesia logo após derrubar o poder feudal, enredou o pensamento marxista no positivismo jurídico de tal forma que o horizonte do direito para o marxismo ficou restrito a duas possibilidades, quais sejam: ou decretamos a morte do direito – já que queremos destruir o Estado –, ou criamos um positivismo “de esquerda” – já que a única forma de direito é o estatal –, a chamada “legalidade socialista”.
Essa visão tem limitado não só nossa ação no campo teórico, mas também no campo político, pois num período histórico onde os setores progressistas necessitam acumular forças para aproximar-se do objetivo estratégico, um mecanismo como o direito – que pode cumprir um papel estratégico na acumulação de forças – não pode ficar fora do horizonte político e teórico dos portadores de novas relações sociais.
Devemos nos desarmar para enfrentar esse debate. As fórmulas e modelos só prejudicaram a teoria marxista. Para desenvolver o marxismo não basta dizer as mesmas coisas que foram ditas no passado pelos fundadores do marxismo, ou deixar de falar coisas novas porque eles não falaram. Precisamos analisar a realidade, ver o que mudou, quais são as características da atual fase histórica e, a partir delas, buscar alternativas baseadas nos princípios marxistas, não como dogmas, mas como fio condutor, como espinha dorsal de nosso pensamento.
Infelizmente, ainda há aqueles que usam as obras dos fundadores do marxismo para impossibilitar a criação de qualquer tipo de formulação que não esteja “nos moldes” do que já foi escrito por Marx, Engels e Lênin. Num “apelo à autoridade”, usam o argumento de que “Marx não escreveu sobre isso”, “Lênin não disse tal coisa” e assim por diante. Tal forma de encarar o marxismo é incompatível com a postura científica de seus próprios fundadores. A complexidade da realidade mundial – em face da derrota sofrida pelo campo socialista – e as tarefas de reconstrução de um novo imaginário socialista, atualizado e em consonância com a realidade, cobram mais dos marxistas.
A luta pela construção de um novo paradigma de enfrentamento das questões teóricas entre os marxistas já vem sendo travada em nosso meio em todo o mundo. Samir Amin nos apresenta uma grade contribuição para ajudar nossa corrente de pensamento a superar antigos vezos ideológicos. Para ele ser marxista na atualidade requer uma profunda mudança em nossa postura intelectual:
“Para mim, ser marxista é partir de Marx e não se deter mele, ou em um de seus grandes sucessores da história moderna, seja Lênin ou Mao. Marxista e marxólogo são dois tipos diferentes. Partir de Marx significa partir da dialética materialista, sem para tanto considerar que todas as conclusões por ele tiradas do uso que ele disso fazia tenham sido necessariamente corretas em seu tempo, ou sejam hoje. Fazer isso significa transformar Marx em profeta, o que ele jamais pretendeu ser. Desmistificar Marx se impõe.” (Samir Amin, 2010: 72).
Tenho plena concordância com Samir Amin, devemos rever entendimentos tidos como inquestionáveis e trilhar caminhos que antigamente não foram explorados pelos fundadores do marxismo. A realidade histórica vivida por eles era diferente. Suas obras devem ser estudadas – e compreendidas – dentro de determinado período histórico, com uma realidade específica.
Precisamos desenvolver o marxismo para que ele possa estar à altura dos desafios atuais, sendo um instrumental teórico capaz de transformar a realidade concreta e não um discurso vazio. E só conseguiremos cumprir essa grande tarefa se adotarmos uma postura crítica, criadora e antidogmática.
Para entender o direito
Devemos entender o direito como um fenômeno social de composição múltipla, não só sob a forma jurídica, mas sim sob a dimensão das relações sociais, como forma de produção e reprodução dos seres humanos em determinada sociedade.
O direito deve ser diferenciado da lei, pois ele é muito mais que isso. A tentativa de igualar o direito à lei – e fazer crer que ele só pode ser criado pelo Estado – é uma construção da burguesia para fazer crer que toda a legislação é direito, ou seja, tem base nas relações sociais de determinada sociedade. Contrariando essa tese, Lyra Filho é enfático:
“A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e AntiDireito, isto é, direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado, pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido”. ( Filho, 1995: 8).
A burguesia, com tal pretensão de igualdade, almeja “congelar” as relações sociais atuais, “anestesiando” a capacidade de crítica da sociedade frente a uma lei injusta, escondendo-a sob o manto da legitimidade jurídica do Estado, tentando fazer crer que as atuais relações sociais – baseadas na exploração – sejam imutáveis, como se fossem inerentes aos seres humanos e não uma construção historicamente determinada.
Depois dessa distinção, é necessário que vejamos o direito não como algo com vida própria, à margem ou acima da sociedade, mas sim como algo construído pela experiência humana. Não se pode falar em direito desconectado da história de determinada sociedade, de suas forças produtivas, de seu desenvolvimento social, dos valores que lhe dão suporte, enfim, não se pode falar em direito apartado da existência humana.
A sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações sociais. Essas relações se dão em diversos níveis e dimensões. Essas relações devem ser entendidas como o próprio produzir-se da vida dos seres humanos organizados em sociedade. Marcos Bernardes de Melo, no seu livro Teoria do Fato Jurídico, apresenta alguns elementos dessa cadeia de relações:
“O ser humano, em situação normal, nasce no seio da família – o grupo social básico – e a partir daí tem início a moldagem de suas potencialidades no sentido da convivência social. A ampliação gradativa dos círculos sociais em que o homem se vê envolvido no desenrolar de sua existência faz crescer, proporcionalmente, o grau de influência que a sociedade exerce em sua formação. À medida que o indivíduo expande a área de seu relacionamento com os outros, participando de grupos maiores, como companheiros de brincadeiras, a escola, as congregações e comunidades religiosas, os clubes, e.g., aumentam também as pressões dos condicionantes sociais que procuram conduzir a sua personalidade conforme os padrões da sociedade. (Mello, 2007: 03).
Note-se que os elementos apresentados por Mello deixam de lado as contradições de classes, mas isso não invalida a ideia acerca da complexidade das relações sociais. Na verdade os elementos que ele apresenta servem de base para a afirmação que ele fará em seguida no seu livro de que o direito é um instrumento de que a sociedade se utiliza para agir sobre o ser humano, com o escopo de inserir em sua personalidade os valores sociais dominantes na sociedade em que está inserido.
O direito é o mecanismo que organiza as relações sociais, buscando ao mesmo tempo manter e direcionar essa sociedade. Manter o essencial para garantir sua continuidade e direcioná-la. Aqui se apresenta um elemento importante do papel do direito na construção da hegemonia em determinada sociedade, porque o direito tem um duplo aspecto, ele é influenciado pelas relações sociais e depois se volta para essas mesmas relações, dando-lhes direção.
As três dimensões do direito
Disse acima, que não podemos considerar o direito fora da sociedade em que ele é criado. Então, o mesmo não se apresenta como realmente é, mas de uma forma que esconde sua essência. O direito, que segundo uma apreensão restrita seria a lei, é apresentado como a vontade do Estado que, em apertada síntese, seria uma imposição das classes dominantes.
Os marxistas não podem se apegar à aparência dos fenômenos, porque eles não se apresentam como realmente são. A dialética marxista é fundamental para enxergar por trás dos fenômenos, para superar sua aparência. Karel Kosik nos mostra a complexidade da apreensão dos fenômenos numa realidade fetichizada:
“O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera da vida comum da vida humana, que, com sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A eles pertencem: – O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais; – O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens ( a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade); – O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externas na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento; – O mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultado da atividade social dos homens.(Kosik, 1995: 15).
Com o fenômeno jurídico acontece o mesmo. O direito é apresentado como a forma jurídica, mas isso não corresponde à realidade concreta. Trata-se de uma falsa apreensão de sua natureza. Em sua complexidade, o direito possui três dimensões fundamentais que o compõe, quais sejam: a ciência jurídica – o ordenamento posto; a sociologia jurídica – os fatos que o geram; e a filosofia jurídica – os valores sociais e que lhes dão suporte. Cabe salientar que essas três dimensões não são estanques, havendo uma interpenetração entre as mesmas. Essas três dimensões formam o todo do fenômeno do direito.
O direito, para ser entendido, deve ser observado sob a totalidade da experiência humana, e não como uma mera lei escrita, que seja fruto da vontade da classe dominante ou como um “ser com vida própria”. É importante observar a opinião de Giusepe Lumia, que fortalece a visão do direito como um fenômeno com três dimensões e nos apresenta elementos importantes para uma melhor apreensão do que ele realmente é:
“a) a experiência do entrelaçamento real das relações intersubjetivas disciplinadas por certo tipo de regras de comportamento que são as normas jurídicas; b) essas próprias regras, o modo pelo qual são criadas e se organizam em sistemas normativos mais ou menos complexos e estruturados; c) a atividade de aprovação ou desaprovação que assumimos diante de tais regras, segundo as consideramos ou não conforme as idéias que temos sobre o melhor modo pelo qual essas relações derivam ser reguladas.” (Giusepe Lumia, 2003: 3-4).
Destarte, também para Lumia, devemos entender o direito sob estes três aspectos que o determinam: a norma em si e sua elaboração; a realidade social que fundamenta o ordenamento jurídico e o sistema de valores que fundamentam esse ordenamento. Posto de outra forma, devemos observar o direito sob a dimensão científica, sociológica e filosófica. Não há como entender o direito – em face de sua complexidade enquanto fenômeno social – sem levar em consideração os três aspectos que o compõe.
Em sua dimensão científica, temos a norma em si, como é feita a lei, seus requisitos formais e materiais e sua estrutura. Nessa dimensão só a lei e o processo legislativo são levados em consideração. Não importa, nessa dimensão, para que serve a lei, nem quais seus objetivos, só importa se na sua elaboração foram observados os requisitos para sua validade. A visão positivista do direito encerra o fenômeno jurídico nessa dimensão.
Na dimensão sociológica, temos os fatos sociais, que são criados por seres humanos, pertencentes a classes sociais diferentes, temos as forças produtivas, entre outros aspectos. Nessa dimensão importam os motivos da criação da lei, quais seus objetivos e para que serve determinada lei. Tem preocupação com os conflitos sociais que compõem a sociedade.
Na dimensão filosófica, temos os valores morais e políticos. Aqui precisamos perquirir os valores e as ideologias dos grupos que compõem dada sociedade, precisamos realizar a crítica das outras dimensões e construir um conceito do que é justo ou injusto em dada sociedade, enfim, a dimensão filosófica tem uma função axiológica, busca definir o valor específico que se busca no direito.
A complexidade do fenômeno jurídico nos deixa claro que observá-lo apenas sob um desses aspectos nos levará – e tem levado – a uma apreensão equivocada do direito. Por isso defendo que o instrumental teórico marxista tem um papel importante na apreensão e superação dos limites do direito.
Para se ter uma real apreensão do direito é necessário ir além da aparência dos fenômenos e buscar os valores sociais que sustentam o ordenamento jurídico de determinada sociedade, o grau de desenvolvimento da luta de classes e qual correlação de forças na esfera nacional e internacional, o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a composição das instituições políticas e sociais. Somente com uma visão do todo teremos uma real apreensão do direito, conseguindo assim, a utilização de todo o seu potencial no desenvolvimento de determinada sociedade. Nesse sentido as palavras de Plauto Faraco de Azevedo são esclarecedoras:
“A Metodologia Jurídica, para ser fecunda, deve orientar-se por uma concepção do direito, que seja capaz de integrar todas as suas dimensões. Como afirma Elias dias, “não se entende plenamente o mundo jurídico se o sistema normativo (Ciência do Direito) se insula e separa da realidade em que nasce e a que se aplica (Sociologia do Direito) e do sistema de legitimidade que o inspira e deve sempre possibilitar e favorecer sua própria crítica racional (Filosofia do direito). Uma compreensão totalizadora da realidade jurídica exige a complementaridade, ou melhor, a recíproca e mútua interdependência dessas três perspectivas ou dimensões que cabe diferenciar ao falar do direito: perspectiva científico-normativa, sociológica e filosófica.” A não aceitação dessa complementaridade funda-se em uma perspectiva epistemológica injustificável, sujeitando a aplicação do direito a todos os azares, em virtude de separá-los do contexto histórico, em função de que existe e se aplica.” (Azevedo, 1999: 23 e 24).
O que é o direito
O debate sobre o conceito do direito é antigo não só no meio marxista, mas também entre os intelectuais burgueses. Para eles é difícil chegar a um conceito, porquanto teriam que reconhecer o caráter político do fenômeno jurídico, algo que colocaria a baixo todo o “manto de neutralidade” que eles tentam fazer crer que existe no direito. No meio marxista o debate se desenvolveu em dois campos: o que entende o direito como fruto das relações sociais, portanto algo que existiu desde quando os homens passaram a se organizar em sociedade; e, o que entende o direito como um fenômeno que surgiu com a ascensão da burguesia ao poder, basicamente como a norma jurídica. Aqui reside um aspecto fundamental, pois dependendo do campo que o marxista se coloque terá um resultado diametralmente oposto sobre a importância do direito: a consequência do primeiro entendimento será a de que o direito continuará a existir, mesmo com o fim do Estado. Daí ser necessário estudá-lo e desenvolvê-lo, porquanto será um instrumento necessário para nossas táticas e estratégia. Já o resultado do segundo entendimento será necessariamente o de que a extinção do Estado levará ao fim do direito. Nesse caso não precisamos nos preocupar com ele, pois ele fenecerá junto com o Estado.
Evgeny Bronislavoviv Pachukanis, grande jurista soviético, que foi Vice-Comissário do Povo para a Justiça da URSS, em sua obra principal, Teoria Geral do Direito e Marxismo, combateu a visão que entendia o direito como fruto das relações sociais. Defendeu que a questão central para os marxistas era desvendar norma jurídica e que o conteúdo material (as relações sociais) do direito era secundário:
“O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente sob o ponto de vista do seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a regulamentação jurídica como forma história determinada. Se se recusa a analisar os conceitos jurídicos fundamentais, apenas se consegue uma teoria que explica a origem da regulamentação jurídica a partir das necessidades materiais da sociedade e, consequentemente, do fato de as normas jurídicas corresponderem aos interesses materiais de uma ou outra classe social.”(Pachukanis, 1988: 21).
Note-se que o que vai nortear a análise teórica de Pachukanis é o aspecto formal do direito – apenas uma de suas dimensões -, que na época da burguesia é a forma jurídica. Pachukanis chegou a mencionar a existência de “um momento jurídico” dentro das relações sociais. Esse elemento não foi devidamente explicado em sua obra, mas a relação com a forma jurídica é clara. Pachukanis3 chegou dizer que o fim da forma jurídica seria o fim do próprio direito.
“O aniquilamento das categorias do direito burguês significará nestas condições o aniquilamento do direito em geral, ou seja, o desaparecimento do momento jurídico das relações sociais.” (Pachukanis, 1988; 27).
Ao restringir sua análise apenas à forma jurídica, Pachukanis incorreu em um erro que limitou sua possibilidade de apreensão do fenômeno jurídico: deixou de lado a essência – as relações sociais – e se debruçou apenas sobre o fenômeno – a forma jurídica. A necessidade de combater o direito burguês foi levada ao extremo e, da mesma forma que Marx e Engels acentuaram o fator econômico como condicionante absoluto do processo da vida social – devido à luta que se estabeleceu contra os idealistas da época – a forma jurídica foi elevada ao fator principal do direito. Analisamos o que a burguesia criou e nos demos por satisfeitos, não fomos alem da aparência do fenômeno jurídico.
Pettr Ivanovich Stucka4 questiona a visão restrita do direito e defende sua relação direta com as relações sociais. Ele entende o direito como um sistema de relações sociais, utiliza a expressão “forma de organização das relações sociais” ao se referir ao fenômeno jurídico. E com o objetivo de mostrar que não está dissociado da teoria marxista ele usa a seguinte citação de Marx:
“A um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas dos homens corresponde uma determinada forma de comércio e de consumo. A determinadas fases do desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo, correspondem determinadas formas de constituição social, uma determinada organização da família, das camadas sociais e das classes; numa palavra, determinada sociedade civil. A determinada sociedade civil corresponde determinado estado político, que não é mais do que a expressão oficial da sociedade civil.” (Stucka, 1988: 26).
Essas palavras comprovam que a concepção de que o direito tem por base as relações sociais não é nova entre os marxistas. O problema é que essa discussão foi retirada do nosso meio, causando um grande atraso no desenvolvimento da teoria marxista acerca do papel do direito.
O ser humano não é produto simples da natureza, mas o resultado do convívio com outros seres humanos. Mais que isso, o ser humano precisa conviver em sociedade, não pode existir isoladamente, necessita do convívio social para continuar existindo. É nesse convívio social que o ser humano produz e se reproduz socialmente. Karel Kosik ao falar do caráter social do homem nos diz o seguinte:
“Na produção e reprodução da vida social, isto é, na criação de si mesmo como ser histórico-social, o homem produz: 1) Os bens materiais, o mudo materialmente sensível, cujo fundamento é o trabalho; 2) As relações e as instituições sociais, o complexo das condições sociais; 3) E, sobre a base disto, as idéias, as concepções, as emoções, as qualidades humanas e os sentidos humanos correspondentes.
Sem o sujeito, estes produtos sociais do homem ficam privados de sentido, enquanto o sujeito sem pressupostos materiais e sem produtos objetivos é uma imagem vazia. A essência do homem é a unidade da objetividade e da subjetividade.” (Kosik,1995: 126/127).
É, portanto, na complexidade do construir-se socialmente do ser humano que devemos buscar o direito. O direito é um fenômeno social, não existe por si, ao contrário, é obra dos seres humanos organizados em sociedade. Isso é fundamental para nossa compreensão, não importa o ser humano tomado isoladamente, mas sim integrado em sociedade. Uma regra, um princípio, uma pratica reiterada, só ganha relevância se estiver vinculada a vários seres humanos relacionados entre si. Devemos, portanto, buscar o direito nas relações sociais, como fruto dessas, com toda sua complexidade e antagonismos. Não há direito sem a existência dos seres humanos vivendo em sociedade. E foi a vida em sociedade que apresentou as circunstancias para que se criassem os primeiros elementos do que hoje é conhecido como direito.
Friedrich Engels, em sua obra Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, nos mostra que mesmo as sociedades mais rudimentares possuíam regulamentação das relações sociais, formas de relacionamento entre as gens e tribos e entre seus componentes. Essa regulamentação, ou costumes, como escreveu Engels, orientavam os casamentos, a relação com a propriedade, o funcionamento das “instituições dirigentes”, enfim, dava estrutura àquelas sociedades. Assim:
“Em todas as gens há os seguintes costumes; 1. São eleitos o sachem (dirigente em tempo de paz) e o caudilho (chefe militar). O sachem deve ser escolhido dentro da própria gens e suas funções são internamente hereditárias,no sentido de serem imediatamente ocupadas em caso de vacância. O chefe militar pode ser escolhido fora da gens e, às vezes, seu posto pode permanecer vago. Nuca é eleito sachem o filho do anterior, dada a vigência do direito materno,segundo o qual o filho pertence a outra gens, mas são eleitos frequentemente o irmão do sachem anterior ou o filho de sua irmã. Todos, homens e mulheres, tomam parte da eleição. Mas ela deve ser ratificada pelas outras setes gens, e só depois de cumprida essa condição é que o eleito é empossado, pelo conselho comum de toda a federação iroquesa. (Engles: 70).
“Nenhum membro da gens tem direito a casar-se no seio dela. Esta é a regra fundamental da gens, o vinculo que a mantém unida…” (Engles: 71).
“A propriedade dos que faleciam passava aos demais membros da gens, pois não devia sair dela…” (Engles: 71).
“Um conselho de tribo para assuntos comuns. Compunha-se dos sachens e chefes militares de todas as gens – seus legítimos representantes, porquanto podiam sempre ser depostos e substituídos. O conselho deliberava em público, diante dos demais membros da tribo, aos quais se permitia tomar a palavra e expressar sua opinião; o conselho é que decidia. Como regra geral, o conselho ouvia todo assistente que desejasse falar; também mulheres opinavam, através de um orador escolhido por elas.” (Engles: 75).
“O conselho tribal ficava encarregado, particularmente, das relações com outras tribos. Recebia e mandava embaixadas, declarava a guerra e concluía a paz.” (Engles: 75/76).
A exposição de Engels, ainda que sujeita às descobertas científicas posteriores na área antropológica, continua válida quanto à existência de normas diretivas nas sociedades primitivas, não no sentido que entendemos hoje, mas como orientações e princípios, aceitos pela coletividade com o objetivo de sua manutenção. Havia instituições representativas (conselhos), com normas de funcionamento e com eleições com regras preestabelecidas. Estes costumes representam uma estruturação e direcionamento
daquelas sociedades, garantindo um mínimo de estabilidade para sua existência, permitindo, assim, a continuidade das mesmas. Os costumes representam o inicio do que veio a ser o direito.
Pode-se falar que mesmo nas organizações sociais mais primitivas já existia o direito, entendido esse sob o aspecto que apresento. O próprio Pachukanis reconhece essa afirmação:
“Se passarmos aos povos primitivos vemos aí certamente o embrião do direito, mas a maior parte das relações é disciplinada extrajuridicamente, por exemplo, sob a forma de preceitos religiosos.” (Pachukanis, 1988: 42).
O erro de Pachukanis reside em querer justificar a inexistência do direito nas sociedades primitivas pelo fato de que as normas de condutas eram “disciplinadas extrajudicialmente”. Mais uma vez aparece a confusão entre o direito e a forma jurídica. Não podemos falar em extrajudicial e judicial naquelas sociedades, ela só podia se organizar dentro dos limites que seu desenvolvimento permitia, entretanto negar a existência de instrumentos de organização social – mesmo que rudimentares – é um grande equivoco. Nesse sentido Marcos Bernardes de Mello ressalta o entendimento de que o direito existiu mesmo em sociedades primitivas e de seu papel imprescindível para a organização social:
“O brocardo jurídico ubi societas ibi ius5 ressalta muito bem esse caráter necessário da ordem jurídica. O estado, por exemplo, nem sempre existiu e ainda hoje há grupos que desconhecem as estruturas e os entes estatais. Não se pode dizer, no entanto, que esses grupos não tenham sido ou não sejam sociedades humanas, embora em estágio embrionário ou em desenvolvimento. Todavia, mesmo nessas organizações sociais primitivas, onde são mínimas as carências em relação á convivência de seus integrantes, já se encontravam delineadas normas de adaptação social, as quais são respeitadas e impostas, até, pelo próprio grupo. Essas normas – que são jurídicas pela impositividade – podem ser bastante simples, mesmo rudimentares, mas nem por isso dispensáveis…sejam, porem, rudimentares ou refinadas, elementares ou complexas, simples ou prolixas, as normas jurídicas são indispensáveis e insubstituíveis, porque constituem o único meio hábil e eficaz de evitar o caos social e obter uma coexistência harmoniosa entre seres humanos.” (Mello, 2007:07).
Portanto, é essencial diferenciar o direito da forma jurídica, pois com essa diferenciação mudaremos nossa visão acerca de um importante instrumento na luta política. O primeiro envolve o produzir-se dos seres humanos em sociedade, sendo um instrumento que serve para garantir e estruturar as relações sociais, construindo uma coesão social, e por consequência não será extinto com o fim do Estado; o segundo, por sua vez, é
5 Onde há sociedade, há direito.
a lei, é uma das manifestações do direito, foi criada pela burguesia quando ascendeu ao poder e não possui um caráter universal.
O papel do Direito
Uma visão reducionista reserva ao direito uma função meramente conservadora da ordem vigente, um mero instrumento de controle social, restringindo a utilização dessa ferramenta importante para a luta política. Busquemos analisar a forma como o direito foi apreendido e utilizado pela burguesia para a construção de uma sociedade que atendesse aos seus objetivos. Sua postura em relação ao direito foi fundamental para ascender ao poder. As palavras de Tigar e Levy são fundamentais para entender como eram considerados os mercadores dentro da sociedade feudal:
“O lucro, ou a diferença entre o preço ao qual o mercador comprava e o preço ao qual vendia, era considerado desonroso numa sociedade que exaltava as nobres virtudes do assassinato e reverenciava aqueles que viviam ‘graças ao cansaço e à labuta’ – nas palavras de uma carta constitucional da época – dos camponeses”. (Tigar e Levy 1978: 20).
Sendo uma classe marginal no sistema de então, a burguesia teve de buscar formas de criar espaços para consolidar sua concepção de mundo nas entranhas da sociedade que lhe era hostil. Uma análise acurada da história da ascensão da burguesia ao poder mostra que o direito teve papel essencial nessa consolidação. Tigar e Levy apresentam três aspectos importantes na relação entre a burguesia nascente e o Direito:
“Em primeiro lugar, na extensão em que se pode falar em Direito na selva da vida feudal, ele ou silenciava sobre o comércio ou lhe era hostil..À medida que aumentava o número, o poder, dos comerciantes, os ideólogos jurídicos desta classe fizeram um esforço para justificar o lugar do comércio na simetria da vida feudal. Buscaram também uma acomodação com o Direito feudal e procuraram explorar-lhe os pontos fracos. Em segundo lugar, à medida que o comerciante ampliava seu campo de atividades e criava as instituições de comércio, entrava em choque direto com os interesses econômicos e políticos dos senhores feudais de uma outra parte do território… Por último, haviam leis que os próprios mercadores elaboraram, a ordem jurídica que conceberam para servir a seus próprios interesses.” (Tigar e Levy 1978: 20-21).
A classe mercantil vivia em confronto com as leis e os costumes da época. Para transformar essa realidade, a burguesia teve de procurar “brechas” e contradições dentro da própria ordem feudal e foi criando – através de praticas reiteradas e de intensa luta política – suas normas e seus tribunais, que mais tarde serviriam de base para a sociedade que estava em gestação.
A burguesia soube apreender o papel político do direito, entendeu sua função organizadora das relações sociais – compreendida essa como um processo de construção da hegemonia política e social –, utilizou-o para consolidar seus valores e, através de um longo processo de luta política, foi moldando a sociedade à sua imagem e semelhança. Em síntese: o direito teve papel importante na construção de sua hegemonia política e social.
Justamente por entender o papel do direito, depois de derrubar o sistema feudal e construir uma ordem que atendia a suas necessidades, a burguesia abandonou todos os instrumentos que lhe serviram de instrumento de ascensão ao poder com o objetivo único de perpetuar as relações sociais que lhes eram favoráveis. O jusnaturalismo – que fundamentava seu direito de insurreição –, os costumes e as práticas que foram pilares para a construção de sua hegemonia precisavam ser controlados. Plauto Faraco de Azevedo retrata essa questão de forma esclarecedora:
“Efetivamente, sucedeu que, desde o início do século xix, com a instalação definitiva da burguesia no poder, com a aplicação em seu proveito de uma ordem jurídica estatal elaborada e defendida nos sistemas jusnaturalistas e em particular na codificação do novo direito burguês, desaparece o caráter revolucionário do pensamento jurídico burguês e da burguesia em geral. Sua ciência tem, então, por objetivo reforçar o direito existente e não destruí-lo através da revolução. Não se está mais à procura de um novo direito natural, eis que não só foi ele encontrado como foi escrito nas leis. Trata-se tão-só, daí em diante, de aplicá-lo. Torna-se, em conseqüência, dominante o método do direito positivo dogmático.” (Azevedo 2000: 42 e 43).
A burguesia precisava de um instrumento que garantisse a manutenção da ordem que ela havia criado, precisava de uma forma de “petrificar” as relações sociais. É sob essa ótica que a forma jurídica e o positivismo jurídico devem ser entendidos. Ela corresponde, na verdade, às necessidades da classe que ascendia ao poder. A codificação do direito foi uma necessidade sua, a qual é fruto de um momento histórico e não tem um sentido universal. Uma coisa é a forma jurídica, a lei escrita, outra é o direito, que é um processo histórico construído pela as relações sociais, ou seja, pelos seres humanos organizados em sociedade.
Toda ordem social pressupõe relações humanas. Para consolidação de determinada ordem, essas relações devem ser planejadas e devem possuir certa continuidade. Como e por quem serão planejadas dependerá do sistema social e político dessa determinada sociedade. O direito é um mecanismo que organiza as relações sociais, dando-lhes uma orientação e certa continuidade. Essa organização tem por fulcro consolidar determinados valores em determinada sociedade; esses valores, por sua vez, são historicamente determinados pelas próprias relações sociais; e essas relações têm seus limites impostos pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas.
O grau de complexidade que as relações sociais e institucionais alcançaram – com a multiplicidade de ações que o ser humano é obrigado a realizar para produzir e se reproduzir, independentemente de sua vontade – não permitem simplificações nem tampouco visões estreitas acerca do papel do direito. Há que se buscar um entendimento do direito em sua totalidade, compreendendo-o como um produzir-se da própria experiência humana, como um mecanismo de consolidação de determinados valores e de determinados objetivos.
Como a humanidade pode produzir e se reproduzir sem uma organização política e social? Como uma Nação pode relacionar-se com outra sem um conjunto de princípios que balizem essas relações? Como irão se concretizar as relações entre os blocos econômicos? Até onde vai o poder do Estado com relação a outro Estado? Qual o limite do Estado perante o ser humano? Podemos construir outra forma de organização política? De onde surgirá essa nova forma de organização?
As respostas a essas perguntas não podem ser encontradas distanciadas do que a própria humanidade produziu até o atual momento histórico. Não podemos criar uma nova sociedade desconectada da antiga. O novo tem, necessariamente, de ser construído dentro do velho, deve existir uma transição do velho para o novo. As transformações sociais não se dão por “saltos” impostos pela nossa vontade, nem tampouco se realizam dentro de um laboratório, mas são construídas em uma sociedade real, com seres humanos reais e sob condições econômicas e políticas concretas.
A humanidade ainda não inventou uma forma de organização política capaz de dar conta da complexidade político-organizativa diferentemente da atual. Não há, no horizonte imediato, outra forma de estruturação social que não a do Estado como organizador da sociedade. Em outras palavras, o fim do Estado pode até ser um objetivo estratégico, mas não está no nosso horizonte histórico a sua destruição; portanto, é a partir dele e com ele que iremos criar as bases da nova sociedade.
O objetivo de destruição do Estado não pode ser mais entendido como fim do direito, mas justamente o contrário. O direito deve ser utilizado na luta de classes para alcançar avanços que podem ajudar numa transição longa e complexa que é a construção do socialismo/comunismo. O direito deve ser entendido e utilizado pelos marxistas – como foi pela burguesia – como um instrumento da luta política pela substituição do Estado capitalista por outra forma de organização política e social mais avançada. O direito não substitui a revolução, isso tem que ficar claro. Entendo que ele pode ser um instrumento a serviço dela. Precisamos utilizar todos os meios e espaços possíveis de luta. Para tanto, precisamos nos despir de pré-conceitos, modelos e dogmas. Entender que o processo revolucionário é longo e que compreenderá várias transições e que o campo do direito tem um potencial importante nessas transições, sendo fundamental para o futuro da
luta de classes. Não sei qual fisionomia terá a sociedade socialista e sua organização política e social, mas de uma coisa tenho convicção: ela nascerá e será testada nas entranhas da atual.
Contribuição para uma nova visão marxista do direito
Anteriormente, apresentei os elementos que entendo importantes e que devem ser levados em consideração para uma real apreensão do direito, quais sejam: a) a infra-estrutura ou base econômica, na qual incluo o grau de desenvolvimento das forças produtivas internacionais e nacionais; b) as instituições políticas – que compreendem Executivo, Legislativo, Judiciário, funções essenciais à Justiça, etc.; c) as instituições sociais – que abrangem as entidades sindicais, estudantis, comunitárias, enfim, os movimentos sociais em geral; e, d) o grau de desenvolvimento da luta de classes, tanto internacional como nacional.
Para garantir a sobrevivência do ser humano e a execução de seus objetivos essenciais, é necessária a instauração de uma ordem que direcione e organize as relações sociais. Como ficou comprovado toda sociedade precisa de normas – por mais rudimentares que sejam -, não importa o grau de desenvolvimento ou o conteúdo destas relações. Para determinada sociedade – não importa se capitalista, socialista ou comunista – continuar existindo e alcançar seus objetivos, é necessário que os meios de adaptação social, notadamente o direito, garantam a continuidade dessa sociedade.
O direito é o instrumento que cumpre a função de dar estruturas a estas relações sociais, dando-lhes forma e condições de consolidar os objetivos de determinada sociedade. Ele funciona como estruturador e mediador das relações sociais, econômicas e políticas; portanto, relações de poder. O direito serve como amálgama e orientador da sociedade em desenvolvimento.
O espaço em que se dá a produção do direito é complexo e possui várias esferas, pois abrange o próprio produzir-se de determinada sociedade. O direito posto como está hoje, sob a hegemonia da burguesia, exerce um papel de freio do desenvolvimento social. Os entraves positivistas não permitem seu desenvolvimento pleno, não deixam que ele exerça seu potencial estruturador e mediador de determinada sociedade. Ou, como expõe o professor Herkenhoff:
“O positivismo reduz o direito a um papel mantenedor da ordem. Sacraliza a lei. Coloca o jurista a serviço da defesa da lei e dos valores e interesses que ela guarda e legitima, numa fortaleza inexpugnável”.(Herkenhoff, 2001: 16).
O positivismo jurídico – não importa sua variável – que fundamenta e estrutura o nosso pensamento jurídico é limitado para a apreensão da complexidade social. De maneira simples, podemos dizer que o positivismo, tem por pressuposto que só é direito aquilo que emana do Estado; portanto, só leva em conta as leis escritas de determinado Estado. Em nome de uma pseudo neutralidade, deixa a complexidade da realidade social fora de seu horizonte.
Tendo em vista seu papel essencialmente político, o direito para fazer uma mediação que consiga apreender toda a complexidade social, precisa estar permeável a todos os elementos que compõem essa sociedade. O direito, como está estruturado, não leva em consideração a complexidade das relações sociais, ou seja, da experiência humana. A ciência e a filosofia marxista podem fazer com que o direito rompa com seus entraves positivistas. Defendendo a necessidade de um novo instrumental teórico para o direito. Esse instrumental teórico é o marxismo. Vários juristas já defendem uma nova concepção teórica para o direito, defendem um encontro do direito com a realidade social. Plauto Faraco de Azevedo defende claramente o encontro do direito com a realidade na qual está inserido:
“Não se pode considerar a norma jurídica isoladamente, sendo necessário buscar sua conexão com seu e fim, com seu conteúdo ético-jurídico e com sua repercussão social, com as condições históricas em que surge com seu desenvolvimento em nossa época. Donde ser indispensável ligar vários aspectos: O histórico, o sociológico e o sistemático, ou, como dizia o jovem Savigny, o filosófico. Só assim, com está visão ampla, pode a Ciência jurídica desempenhar de modo satisfatório a tarefa social que lhe incumbe.” ( Azevedo, 1999: 58 e 59).
Esse papel – de aproximação do direito com a realidade – é tarefa do marxismo, só ele pode realizar uma revolução no direito, fazendo com que ele vá ao encontro da realidade social. Com o marxismo o direito pode livrar-se do positivismo, levando em conta a totalidade da experiência humana. Tornando-se um instrumento capaz de compreender e apreender os diversos componentes da sociedade, os fatores culturais dos diferentes grupos sociais, os interesses das diferentes classes.
A ideia de tornar o direito permeável à complexidade do produzir e do reproduzir-se da sociedade não é uma novidade, existe uma série de “movimentos” nesse sentido. A Nova Escola de Direito, o chamado “Direito achado na rua” ou Direito Alternativo, e os “Abolicionistas” são exemplos importantes dessas tentativas. Há, com relação a esses movimentos, um grande desconhecimento por parte dos marxistas. Nós temos um vezo antigo, qual seja, adoramos colocar um rótulo em pensamentos que não dominamos. Se determinado pensamento parece não estar dentro de nossa “cartilha”, colocamos um rótulo e, do alto de nossa sabedoria, decretamos sua invalidade.
A teoria marxista pode fazer com que o direito dê um salto qualitativo frente à complexidade das relações sociais, tendo um papel importante na luta por uma sociedade realmente humana. Só o manancial
teórico marxista está apto a captar toda a complexidade da realidade social, convertendo-a em uma verdadeira fonte de enriquecimento do direto. O marxismo pode utilizar todo o potencial que o direito – enquanto estruturador, mediador e orientador das relações políticas e sociais – pode oferecer em um processo longo de transição para uma sociedade socialista.
O objetivo de Lênin – que entendia o marxismo com uma teoria revolucionária e não como um dogma – e de todos os grandes marxistas ao longo da história foi construir e aperfeiçoar a teoria marxista dentro de suas realidades. Não podiam – nem queriam – prever o futuro. Tampouco criaram uma religião com dogmas inquestionáveis.
Não pretendo determinar todos os elementos para uma nova visão marxista acerca do direito. Seria uma contradição. Pretendo iniciar esse debate e apresentar duas convicções, quais sejam: a de que o marxismo tem importante papel para a transformação do direito e a de que o direito tem um grande papel na luta de classes e na transição para uma sociedade socialista.
Entendo que nós marxistas temos um grande caminho a percorrer e muito que construir no campo do direito, mas para tanto, parafraseando Stucka, precisamos parar de mudar de nome as ruas do marxismo, bem como parar de pintar suas velhas paredes de vermelho, precisamos é atualizá-lo.
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2 O positivismo jurídico advoga a possibilidade de se entender o direito e aplicá-lo independentemente de valorações éticas, políticas e sociais, não importando sua relação com a produção e reprodução da sociedade. Para essa concepção só importa a lei – como suporte de validade da própria lei– e o Estado – como o único criador do direito – como fator de legitimidade.
3 Importante ressaltar que Pachukanis faz uma autocrítica acerca da teoria defendida por ele em sua principal obra. Nessa autocrítica ele assume a concepção de que o direito é fruto das relações sociais. Ele fala no direito como uma forma de regulação e consolidação das relações de produção e também de outras relações sociais. Não está muito clara essa mudança de entendimento por parte de Pachukanis, alguns escritores levantam a possibilidade de ele ter sido forçado a mudar de opinião face aos interesses do Estado Soviético – notadamente no período stalinista -. Outros dizem que essa autocrítica foi fruto de uma reflexão teórica, que o levou a reconhecer seu equivoco.
4 Petr Ivanovitch Stucka (1865/1932), filho de camponeses, nasceu na Letônia, nas proximidades de Riga. Participante ativo das lutas revolucionárias, foi um dos articuladores da fusão do Partido Operário Social-democrático Letão com o Partido de mesma denominação russo, onde militou entre os bolcheviques e chegou a membro do comitê de Petrogrado. Comissário do Povo para a Justiça no primeiro governo revolucionário liderado por Lênin. Ocupou diversos cargos na URSS, dentre os quais o de Diretor do Instituto do Direito Soviético.
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