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CPC: POPULISTA E AUTORITÁRIO?

Como já vimos nas partes anteriores desse ensaio, uma das principais acusações contra o projeto cultural do CPC da UNE foi de que ele teria sido populista e autoritário. Mas, afinal, o que é a ideologia populista, que parece impregnar todos os movimentos políticos e sociais no pós-1930?
Segundo Francisco Weffort, o principal teórico do populismo no Brasil, a ideologia populista seria uma ideologia de fundo pequeno-burguesa que tenderia, necessariamente, a obscurecer “a divisão real da sociedade em classes com interesses sociais conflitivos e a estabelecer a ideia do povo (ou da Nação) entendido como uma comunidade de interesses solidários”. O professor Armando Boito, por sua vez, afirmou que a ideologia populista possuiria como uma de suas características o que poderia se chamar de “culto do Estado Protetor”. Portanto, ela seria uma espécie de ideologia estatista e, por isso mesmo, bloquearia a constituição das classes, dificultando que os trabalhadores assalariados (manuais e intelectuais) se transformem em força social autônoma.
Levando-se em conta as características centrais apresentadas por estes autores, dificilmente poderíamos enquadrar, sem problemas, o projeto político e cultural do CPC dentro da rubrica populismo. As suas principais obras, de fato, se inseriam dentro de uma perspectiva nacionalista, mas esta não acobertava a existência de contradições de classe no interior da nação. Pelo contrário, a grande maioria delas reconhece a existência da luta de classes e a sua centralidade para a compreensão do nosso processo de desenvolvimento político e cultural. A questão nacional é sempre referenciada na acirrada luta entre os diversos projetos existentes – e conflitantes – no interior da sociedade brasileira. O nacionalismo do CPC não era, portanto, um nacionalismo de tipo burguês e sim antiimperialista. 
Os intelectuais e os artistas do CPC propuseram se colocar ao lado do povo. Mas, para eles, o povo não era algo metafísico. Os jovens cepecistas tinham uma concepção determinada (marxista) de povo e distinguiam dentro dele as diferentes classes sociais. E mais, procuravam se colocar dentro da perspectiva de uma delas: o proletariado. Se foram felizes no seu intento já é outro problema. Emblematicamente a peça que deu origem ao CPC chamava-se A mais-valia vai acabar, seu Edgar.
Quanto à ideologia estatista, podemos dizer que se existiu – e deve ter existido em algum grau –, ela não foi o núcleo central da concepção e prática cultural. O CPC jamais reivindicou a incorporação ao Estado. Existiu, inclusive, uma resistência quanto a mantê-lo com verbas públicas. Mantinha suas atividades com a venda de seus espetáculos a entidades ou através da cobrança de ingressos. Como afirmou o primeiro presidente do CPC: “o nosso público, que iria usufruir nossa criação cultural, é que deveria pagar por ela, pois só assim tiraríamos, como de fato tiramos, o Estado da jogada e não ficaríamos, como os sindicatos, atrelados ao Estado pelo umbigo da dependência econômica”. Continuou, “intuitivamente, ou, quem sabe, forçado pelas circunstâncias, o CPC constituiu-se como órgão da sociedade civil, foi criado e sustentado por ela o tempo todo”.
E por fim, o CPC não foi um instrumento de desorganização das chamadas classes médias, ou dos trabalhadores; pelo contrário, ele foi um canal de organização e expressão dos interesses da categoria social dos estudantes universitários, em especial da jovem intelectualidade progressista. O papel organizador do CPC está para ser melhor estudado.

E quanto ao autoritarismo do CPC?

Sem dúvida, o Anteprojeto do CPC possuía uma retórica autoritária, em especial quando tratava dos diversos tipos de arte não elitista. A desqualificação da cultura produzida diretamente pelas populações despossuídas era uma evidência disso. Estas são as passagens mais problemáticas daquele texto. Existia também uma visão messiânica sobre o papel dos artistas e intelectuais cepecistas. Mas, este viés autoritário e elitista foi matizado em passagens do livro A Questão da Cultura Popular, do próprio Carlos Estevam Martins. Em outros textos a distinção entre cultura popular, cultura do povo e cultura popular revolucionária praticamente desaparecia.
Uma pergunta fica: será que devemos julgar todo um movimento, em especial da proporção que adquiriu o CPC, a partir de um ou de alguns documentos programáticos? A resposta é não. O movimento desencadeado pelo CPC foi bem maior que os seus manifestos e proclamações.
Tendo em vista o autoritarismo e o elitismo das nossas classes dominantes, o CPC trouxe ares democratizantes ao sufocante cenário cultural nacional. Nada mais democrático, nos marcos da vida brasileira, que a insistente busca de se construir a unidade artista/povo.
A popularização da arte, mesmo dentro dos limites impostos pela estética cepecista, deve ser considerada positiva. A apresentação de peças teatrais, recitais de poesia e shows de música popular nas universidades, sindicatos, praças públicas e bairros populares garantiu uma socialização maior do conhecimento produzido pela intelectualidade brasileira. Outro aspecto a se destacar foi o aparecimento de inúmeros jovens artistas que, sem o canal aberto pelo CPC, não poderiam ter se projetado local ou nacionalmente.
A integração de velhos compositores populares provindos dos morros cariocas ou do norte/nordeste brasileiro, praticamente desconhecidos do grande público (Cartola, Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, João do Vale, etc.), e artistas oriundos das camadas médias urbanas (Vinícius de Moraes, Carlos Lira, Sérgio Ricardo etc.) revigorou a música popular brasileira, democratizando-a. O movimento real de valorização do samba de morro, do samba enredo, do frevo, da literatura de cordel (sempre menosprezados pelas nossas elites culturais) não poderia ser entendido apenas com a simples leitura do Anteprojeto de Manifesto do CPC da UNE, escrito em 1962.
Existem aqueles críticos que afirmam ter ocorrido uma instrumentalização dos compositores populares pelo CPC. Esta teria sido a maneira encontrada para atrair o grande público que, no final, acabaria recebendo as “mensagens prontas” desses intelectuais de classe média. Acredito que esta é uma visão bastante simplificada fenômeno. Se, no limite, podemos falar em instrumentalização ela ocorreu numa via de mão dupla, na qual todos acabaram se beneficiando.
Luís Werneck Vianna, fazendo um balanço da experiência, chegou à mesma conclusão: “A sociedade brasileira registrou a presença do CPC porque ele foi capaz de resgatar o tema da cultura popular, valorizando e integrando essa cultura a partir de um aparelho que tinha existência nacional, que era a UNE”. Assim, uma das principais contribuições do CPC (a que ficou!) foi ter constituído uma parceria importantíssima para a cultura brasileira entre os compositores populares e os jovens artistas pertencentes às camadas médias urbanas. O que conhecemos hoje como MPB é fruto dessa união benfazeja.
É um claro exagero ver na concepção e na prática do CPC um desprezo pelo povo realmente existente. Foi ao povo real que o CPC procurou se vincular, e nessa tentativa sofreu vários e justificados tropeços. E foi, justamente, essa ousadia que lhe custou perseguições e o fechamento após o golpe militar de 1964. A ditadura recém-implantada procurou, de todas as maneiras, impedir o estabelecimento de qualquer laço entre os artistas/intelectuais de esquerda e as massas trabalhadoras.  Algo que ela conseguiu realizar com algum êxito. 
E, ao contrário do que dizem os seus críticos, os intelectuais e artistas cepecistas optaram pela constituição de uma “comunidade de destino” com o povo brasileiro, apesar do abismo social existente no país. Algo que procuraram realizar com denodo até serem atingidos pela repressão. Também não é correta a afirmação de que os artistas cepecistas queriam ser individualizados, e fugir do anonimato característico do “verdadeiro” artista do povo. Nenhum movimento cultural da história do país teve no seu interior um sentimento tão forte de negação da “obra de autor” e da individualização do artista. E por isso mesmo foi muito, e corretamente, criticado por vários intelectuais da época, especialmente os ligados ao Cinema Novo.
Muitas de suas obras foram produzidas coletivamente, entre elas a mais famosa o Auto dos 99%, na qual os autores nem ao menos eram divulgados. Algumas delas foram mesmo alteradas após críticas e sugestões do próprio público. Mesmo os casos de censura, como a feita pela diretoria da UNE contra a peça A Vez da Recusa de Estevam Martins, eram encarados com naturalidade e não como uma ofensa ao autor. Afinal, segundo eles, o autor pouco importava. O importante era a mensagem a ser transmitida ao povo e a resposta deste.
Outra característica do teatro cepecista, uma herança do Arena, foi ter eliminado, ou reduzido ao máximo, a rígida divisão de trabalho dentro da produção teatral. Todos exercitavam a elaboração dos textos, a interpretação e os demais trabalhos necessários à montagem dos espetáculos.
O CPC da UNE foi responsável pela proliferação de movimentos de cultura popular por todos os estados brasileiros. Isso não se restringiu apenas às universidades. Formaram-se dezenas de CPCs, organizados por entidades secundaristas, sindicais e populares. A direção de uma parte deles estava nas mãos de correntes que não se afinavam com a força política hegemônica no CPC da Guanabara. Muitas delas estavam sob a direção de Ação Popular (AP), organização da esquerda católica.
O documento do CPC de Belo Horizonte, divulgado no I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, expressava uma visão que destoava daquela apresentada no Anteprojeto de Manifesto do CPC. Ele afirmava: “queremos ressaltar que a cultura popular não pode consistir numa certa tendência que há de se elaborar intelectualmente o que o povo tem que querer, na sua luta de libertação. Tal atitude tem característica de uma imposição paternalista, provavelmente sem resultados consequentes. Linha de doação ou imposição de uma conscientização, onde o povo não foi provocado para refazer e repensar a partir de seus próprios meios de comunicação. Parece-nos prematuro procurar definir a cultura popular, uma vez que somente agora ela atinge uma dinâmica de elaboração”. Mais à frente dizia que a superação dos condicionamentos socioeconômicos “só poderá ser feita em moldes humanos se houver participação do povo, exprimindo-se dentro dos quadros de sua cultura”. Apesar das divergências, todos reconheciam que o motor do movimento havia sido o CPC da UNE.
Embora seja difícil medir o enraizamento da maioria dessas entidades e movimentos culturais que se formaram naqueles anos, é possível constatar certa tendência à expansão. Os dados demonstram que eles tinham uma base social real e respondiam a uma necessidade sentida pela m maior parte da sociedade brasileira que era a da democratização da cultura. 
Enfim, se o CPC tivesse apenas o lado autoritário, como afirmaram seus críticos de esquerda e de direita, não teria tido a expressão que teve. Não teria contribuído para essa proliferação, descentralizada, de centros de cultura popular. Não teria feito história. Teria sido apenas uma seita de artistas e intelectuais sectários. Como disse, corretamente, o professor Manoel Berlinck: “Afirmar (…) como querem alguns, que o CPC foi um movimento autoritário, inserido na República Populista (…) é ser, no mínimo, insensível. Esses não percebem que não é sentado que se caminha e que se faz o caminho ao andar”. 

* Esta versão texto foi originalmente apresentada no seminário Memória do Movimento Estudantil, realizado em dezembro de 2004 no TUCA/PUC-SP. Os trabalhos foram publicados em livro no ano seguinte pela editora Museu da República. O texto também foi publicado no livro Juventude, Cultura e políticas públicas, editado pela Anita Garibaldi e o Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ).

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.

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