Em primeiro lugar, como qualquer outro, o governo de Fernando Henrique Cardoso serve a alguém. Então, a pergunta que devemos fazer é: a quem serve o governo FHC? É uma pergunta didática, porque poderemos tirar algumas dúvidas da nossa cabeça. A atual política econômica implantada em nosso país capta recursos da população através do sistema financeiro, remunera através da caderneta de poupança – algo em torno de 0,5% – e esses mesmos recursos são emprestados em seguida ao próprio governo, à taxa que os próprios mandantes do Executivo estabelecem, hoje em torno de 17%.

Isso significa uma extraordinária transferência de recursos. Talvez nunca na história econômica do país tenha havido uma transferência de recursos para um setor da economia, como nesta era do governo Fernando Henrique Cardoso. Os levantamentos preliminares, que estamos terminando agora, dão conta de que na era FHC, até o início deste ano, o sistema financeiro ganhou 500 bilhões de reais apenas com o pagamento dos juros da dívida interna. Então, o governo FHC serve essencialmente ao sistema financeiro, que acumulou uma quantidade de recursos jamais alcançada em outro governo, nem mesmo no período da inflação – em que se tinha a correção monetária e as taxas de juros reais não eram absurdas como as que são praticadas na atual administração.

Para enfrentar essa situação – com esse modelo implementado – nossa única possibilidade está em constituirmos uma ampla frente de oposições, que vá além dos partidos políticos. Uma frente de oposições composta por todos aqueles que perderam e perdem com o modelo econômico vigente no país. Se os bancos ganham, quem perde é a indústria brasileira, que ficou sem financiamento, ficou sem crédito; quem perde também é o comércio brasileiro, que ficou estrangulado, também sem financiamento ou crédito; quem perde ainda é a agricultura brasileira, que ficou sufocada, sem crédito e foi perdendo competitividade; quem perde, e não é o último setor a perder, é a classe média brasileira – dentre outras coisas, quando estoura seu cartão de crédito e tem de pagar juros extorsivos. Somente uma aliança ampla será capaz de ganhar, mudar e sustentar as mudanças necessárias para implantar um novo modelo econômico no nosso país.

Divirjo frontalmente dos pensamentos que têm a ilusão de que é possível remodelar o atual modelo econômico. Tentar remodelar o atual modelo econômico é fazer com que o Brasil, depois da eleição, rapidamente vire uma Argentina, não só do ponto de vista econômico, mas principalmente do ponto de vista político. Naquele país a oposição se uniu, ganhou a eleição e depois, porque acreditava ingenuamente que seria possível remodelar o atual modelo econômico do país, entrou num buraco tão frio que teve de chamar o adversário para gerir a economia argentina. Não podemos ter essa ingenuidade, porque se seguirmos a linha de raciocínio de pensar ser possível, com pequenos ajustes – como ouço alguns economistas ligados a candidatos de esquerda –, fazer a economia do Brasil melhorar, vamos para o buraco. Temos de estabelecer um novo paradigma, um novo plano econômico para o país, com fundamentos totalmente diferentes dos atuais. Quando ouvimos o ministro Pedro Malan dizer que os fundamentos da economia brasileira são sólidos, sabemos que isso é uma mentira: a dívida interna multiplicou por dez e os déficits nas contas correntes e na balança comercial são permanentes. O Brasil pratica a segunda maior taxa de juros do mundo e tem, cada vez mais, necessidade de ingresso de capital especulativo. Então, que fundamento de economia é esse? Os fundamentos da nossa economia atual são extremamente frágeis. Tanto que a economia brasileira, a todo momento, encontra-se vulnerável a qualquer tipo de especulação, seja uma variação na Argentina ou uma pequena instabilidade em qualquer outra parte do Continente.

Por isso devemos, nesse momento, construir uma candidatura ampla, que seja capaz de dialogar com todos os setores da sociedade, e trazer para essa discussão esses setores que têm sido excluídos neste modelo para que sejam parceiros na construção do novo modelo econômico, que deve ter um caráter nacional e de desenvolvimento a partir dos interesses nacionais.

Por outro lado, não podemos também ter a ingenuidade de que o Brasil deva se negar a participar do processo de globalização. O Brasil deve participar, mas com a lógica do interesse nacional – como estamos vendo agora a China, que vem se esforçando para participar da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas segundo os interesses chineses e não os da OMC. O Brasil da mesma forma deve buscar, acima de tudo, se inserir no mercado internacional buscando garantir uma visão dos interesses nacionais. O governo atual cometeu um equívoco brutal, ou seja, entrou no processo de globalização não com a visão dos interesses nacionais, mas com a visão dos interesses daqueles que vendem mercadorias, serviços e capital para o Brasil. O Brasil ofereceu a sua grande riqueza que é o seu mercado interno, e o que ganhou em contrapartida? Nada! E todas as tarifas brasileiras foram derrubadas, todas as tarifas de importação também, o mercado brasileiro foi escancarado de uma forma irresponsável, a indústria brasileira sofre um processo de desnacionalização numa velocidade impressionante, como nunca viu na sua história.

Na minha opinião, esse é o grande diferencial da visão que tenho para outros candidatos que têm se colocado nessa questão da discussão nacional. É a nossa visão do PSB: não queremos reformar o atual modelo econômico; não temos a ingênua pretensão de acreditar que há saída dentro do atual modelo econômico. Até me surpreende que alguns políticos de esquerda tivessem sugerido que houvesse a permanência do ministro Pedro Malan e a de Armínio Fraga, à frente do Banco Central. Isso é um equívoco total. Queremos partir de um caminho diametralmente oposto a esse: unir todo mundo que perdeu, e que perde, com o atual modelo econômico, juntar para construir uma alternativa. Chamar inclusive o setor que hoje ganha e repactuar com ele a sua participação dentro da nova política que queremos implantar dentro do nosso país.

É bom também que fique claro que o governo FHC – além de multiplicar para dez a dívida interna brasileira; além de deixar o país com déficit nas contas correntes e déficit na balança comercial; impor a segunda maior taxa de juros do mundo; gerar a necessidade cada vez maior de captar o capital especulativo para manter a nossa balança, de uma forma artificialmente regular… – está deixando algumas armadilhas para o seu sucessor que são graves, e que é dever da oposição denunciar desde agora.

O próximo presidente que vai tomar posse no dia 1º de janeiro de 2003 vai assumir sem a Desvinculação de Recursos da União (DRU), vai assumir sem o CPMF, vai assumir sem o COFINS, vai governar, em resumo, com menos 40 bilhões de reais de receita. Além dessas restrições orçamentárias, muito provavelmente, terá de governar em meio a uma situação política complicada, porque o discurso do governo – que usou durante seis anos e meio, as medidas provisórias –, agora, é de que está na hora de acabar com a medida provisória.

Então já se tiram 40 bilhões de um presidente que vai tomar posse; com capacidade limitada para poder resolver as coisas com uma certa urgência; e com um Congresso que, por mais que nos esforcemos, ainda será de um perfil bastante conservador. Assim, essas bombas de efeito retardado que vão sendo deixadas pelo governo FHC precisam ser, desde já, pensadas pela oposição em como desmontá-las e denunciá-las à população.

Há também na reforma bancária uma outra bomba sendo colocada: a questão da “eleição” para a direção do Banco Central. Imagine se tirar dos instrumentos políticos do próximo presidente 40 bilhões de reais, e ainda se colocar um presidente do Banco Central “eleito”, o futuro presidente, além de não ter dinheiro, estará impedido de fazer política monetária.

É uma situação muito complexa, difícil e precisamos atentar para essas questões para que evitemos caminhar duas vezes para a Argentina: em primeiro, já exposto, ter de recorrer aos antigos adversários – será triste para a oposição, daqui a seis meses ter que chamar Malan de volta… (como está acontecendo na Argentina, onde o presidente eleito teve de chamar o seu adversário para implantar uma política econômica totalmente diferente daquela que havia defendido durante a campanha). Em segundo, a frustração causada na população da Argentina: não podemos frustrar o povo brasileiro com mais uma decepção. Uma decepção que seria fatal para as oposições brasileiras, que depois de tanto tempo, e de uma oportunidade tão grande de ganhar a eleição, ganhariam, mas de uma forma estreita – sem um programa claro, sem uma aliança política necessária e respostas rápidas para responder às demandas atuais da economia brasileira, frustrando a população do país, provocando nela um sentido de enorme descrença. Caso isso ocorra, certamente vai levar o povo brasileiro, confuso, a reclamar, como última alternativa, a volta daqueles que levaram o Brasil a essa situação terrível, que tentamos ora combater.

É necessário também atentar para o discurso correto. Quando estamos tratando de política é preciso que coloquemos no centro da discussão o elemento principal e não o acessório; e principal, nesse momento da vida do país, é mudar o modelo econômico. Vejo alguns companheiros que têm bandeiras importantes, mas que o governo federal, sabiamente, vem, aos poucos, capturando-as. Não adianta achar que o problema do Brasil é um problema social – o problema do Brasil é um problema econômico com conseqüências sociais gravíssimas. Achar que vamos resolver o problema do Brasil com médico de família, com bolsa escola, isso é uma ingenuidade. É melhor então, deixar o Paulo Renato que já está fazendo bolsa escola, ou seria melhor deixar o José Serra que já está fazendo programa de saúde da família. A questão central no Brasil, que precisa ser combatida e que precisa ser enfrentada, é a questão do modelo econômico, que não tem remendo, que precisa ser mudado e costurado na nova aliança de forças políticas e sociais para ganhar e transformar a sociedade brasileira. E implantar um regime que não só produza renda. Aqui, outro equívoco é dizer que o problema do Brasil é geração de riqueza. O Brasil é a oitava economia do mundo, produz riqueza em quantidade. O problema do Brasil é distribuição de riqueza. O Brasil precisa implantar mecanismos concretos de distribuição de riqueza – estamos atrás de Trinidad Tobago no ranking social da distribuição de salários e distribuição de renda média do mundo.

O ministro da Fazenda deveria vir a público e justificar como uma dívida de 50 bilhões de dólares foi parar em 550 bilhões (e só de juros pagamos 500 milhões de dólares); como o déficit de contas correntes está cada vez maior; como temos a segunda taxa de juros do mundo; como é que os nossos índices sociais pioraram durante esse governo?

Precisamos reafirmar claramente que qualquer tentativa de remendar o atual sistema econômico é inviável. Não podemos remendar aquilo que certamente nos levará a uma crise política, a uma crise econômica, e uma crise social sem precedentes – como está vivendo hoje a Argentina. Temos de mudar de paradigma – não estamos aqui para pegar o paradigma dos nossos adversários para tentar maquiá-lo e dar a ele uma nova roupagem.

A questão da crise que estamos vivendo agora no Brasil da falta de energia elétrica foi muito oportuna para desmascarar qualquer possibilidade de reafirmação da competência do governo para qualquer coisa. O governo Fernando Henrique Cardoso demonstra irresponsabilidade com o país, ao não ter preocupação sequer em investir em linhas de transmissão – e não digo nem no sistema como um todo, porque eles agora querem botar a culpa em São Pedro por não chover. Na verdade, esse problema no Brasil não decorre da falta de água: há água em abundância no Sul e há água em abundância no Norte. O país não investiu em linha de transmissão e isso desmascara, num momento muito apropriado, a falácia do discurso da eficácia do governo FHC, que foi incompetente para resolver os problemas sociais e que foi incompetente para resolver os problemas econômicos brasileiros.

Essa história de dizer que a equipe econômica é competente é falsa; é incompetente, despreparada, trabalhou apenas dentro de uma lógica para favorecer apenas um setor da economia, foi incompetente para resolver os problemas de infra-estrutura do nosso país. Está aí o país passando por esses momentos difíceis que conturbam ainda mais a vida da população, cada vez mais ansiosa. E incompetente para resolver muitos outros problemas que aqui não citamos.

Anthony Garotinho é governador do Rio de Janeiro e pré-candidato à Presidência da República pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Este texto reproduz parte de sua intervenção no Seminário 2002: um novo projeto para o Brasil, promovido pela Liderança do PCdoB na Câmara Federal, no dia 15/5/2001

EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 15, 16, 17