A natureza da crise brasileira – da crise do Estado brasileiro e seu reflexo no conjunto da sociedade – só pode ser compreendida quando analisada nos marcos da luta de classes que se desenvolve no País. Este artigo faz parte de um esforço inicial de abordagem desta questão, levantando hipóteses que possam contribuir para sua investigação e debate. Ele parte da tese de que podemos estar assistindo, na luta política em curso, aos embates finais da revolução burguesa no Brasil.

A revolução burguesa é o processo pelo qual o capitalismo se torna hegemônico nas formações econômico-sociais, submetendo a seus interesses toda a produção material. Ela tem uma fase de longa duração, marcada pelas transformações sociais e econômicas que levam ao capitalismo, e uma fase mais curta, em que a burguesia completa seu domínio com a conquista do poder político.

Muita gente pensa que a revolução burguesa não ocorre em países de passado colonial, como o Brasil. Há mesmo quem fale em “contra-revolução burguesa permanente”. Outros, por sua vez, tentam identificar em vários episódios da história do Brasil, de 1808 a 1964, a ocorrência completa ou parcial da revolução da burguesia.

No Brasil, a revolução burguesa coincide com o período em que a burguesia, em nível internacional, deixou de ser revolucionária. Depois das revoluções européias de 1830 e 1848, e particularmente depois da Comuna de Paris, em 1871, a burguesia evita os movimentos políticos de massa para promover mudanças sociais. É o tempo da revolução pelo alto, conservadora, em que a cada passo a burguesia sente, ameaçadora, a presença da revolução proletária. Assim, no Brasil, a revolução burguesa desdobrou-se por inúmeros episódios, que assinalavam avanços graduais. Alguns de seus marcos foram o fim da escravidão, em 1888, e do Império, em 1889, que foram comandados pela mesma aliança de classes que dominou a política brasileira desde a Independência, o conluio entre o capital mercantil ligado ao comércio externo e a oligarquia latifundiária. Entretanto, esses eventos significaram também, contraditoriamente, o primeiro estalo no domínio desses setores. O fim da escravidão sinalizou o trânsito para outro modo de produção, baseado na liberdade (teórica, ao menos) da mão-de-obra, e em sua remuneração parcialmente monetária. A República, por sua vez, significou a adoção, pela primeira vez no País, de um sistema jurídico claramente capitalista.

“Ao analisar a revolução burguesa no Brasil, deve-se levar em conta também a realidade mundial”.

As mudanças sinalizadas pela Abolição e pela República foram a expressão visível de mudanças profundas que ocorriam na sociedade brasileira desde a metade do século passado. Eles marcam os primeiros passos do modo de produção capitalista no País, nascido no ventre do escravismo que se decompunha, e caracterizam o período de transição entre os modos de produção escravista e capitalista. Outro marco, anos mais tarde, foi a revolução de 1930.

A análise desse processo de mudança histórica no Brasil deve levar em conta vários aspectos da realidade brasileira e mundial, que impõem uma dinâmica diferente, em muitos pontos, dos padrões clássicos da revolução burguesa. Sob o domínio da oligarquia latifundiária e do capital mercantil, a economia brasileira esteve – desde o começo da colonização – profundamente integrada ao mercado mundial, com um lugar próprio na divisão internacional do trabalho: produzir matérias-primas e alimentos para o mercado mundial. Foi o período em que as teses liberais – as mesmas hoje apregoadas como a última novidade pelos neoliberais – predominaram na economia brasileira. A oligarquia latifundiária era, assim, um elo numa cadeia produtiva que, vindo do exterior, entrava até o mais profundo sertão, sugando e levando para fora o produto do esforço dos brasileiros. O lugar da oligarquia nessa cadeia produtiva era privilegiado, cabendo-lhe as rédeas da produção dos gêneros exportáveis. A oligarquia latifundiária e o grande capital mercantil dominavam assim a economia brasileira, e eram sócios da pilhagem neocolonial.

Isso permitiu uma certa acumulação de capitais dentro do País, potencializada pela urbanização que, embora limitada, acelerou-se depois da proclamação da República. Essas foram as bases iniciais para a formação da burguesia industrial, cujas raízes mais antigas remontam à fase final do período colonial (a lei de D. Maria I contra as indústrias da colônia é de 1785). As crises do café, que levaram à adoção de medidas protecionistas, ajudaram indiretamente a proteger a indústria nascente, que se beneficiou também da desorganização do comércio mundial provocada pela Primeira Grande Guerra. Surgiu assim uma área comum de interesses entre a oligarquia e a burguesia industrial que nascia, e que foi o fundamento objetivo da aliança entre essas duas classes, mantendo a burguesia industrial numa posição subordinada.

A revolução burguesa, nessas condições, se desdobrou por décadas, num processo vagaroso e conturbado. Nessa época, por exemplo, já era visível a contradição entre a burguesia industrial e a oligarquia latifundiária e financeira. Ela se manifestou no choque, que marcaria a história da República, entre o projeto do desenvolvimento autônomo, e o desenvolvimento dependente, subordinado ao imperialismo.

Com a Abolição e a República, viu-se a entronização, à frente do Estado brasileiro, dessa aliança de classes, expressão política e econômica desse período de transição. Esse pacto político, contudo, era pressionado cada vez mais pelas camadas médias das cidades. A classe operária, embora muito combativa, era pouco desenvolvida numericamente, e concentrada nas grandes cidades, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo. O campesinato, por sua vez, mourejava sob a carga opressiva da herança escravista – os grandes fazendeiros continuavam senhores absolutos em seus domínios, e o tratamento cruel e sanguinário dado aos seguidores de Antônio Conselheiro, em Canudos, é o melhor exemplo do destino daqueles que se recusavam a se submeter ao poder dos coronéis.

Estes foram os protagonistas da profunda transformação capitalista vivida pela sociedade brasileira ao longo do nosso século. A hegemonia do modo de produção capitalista completou-se após a ditadura do Estado Novo, consolidando esse status depois da década de 1950. Mas ele tornou-se hegemônico não pela destruição da secular oligarquia latifundiária e financeira, aliada interna do imperialismo e seus agentes, mas pela acomodação entre as classes dominantes, pela modernização e aburguesamento de parte da oligarquia latifundiária e subordinação aos interesses capitalistas da parte que resistiu à mudança.

Essa hegemonia se deu quando o capitalismo já estava avançado em sua etapa imperialista, com graves consequências para a natureza do desenvolvimento que ocorria no País. Desde os anos 1920 era crescente a pressão das camadas médias urbanas, de setores da burguesia e de dissidências oligárquicas regionais por mudanças políticas, pressões que culminaram com a revolução de 1930. As mudanças exigidas apontavam no sentido de uma modernização burguesa-conservadora do País: o fim do monopólio das oligarquias latifundiárias sobre o governo federal; a proteção e apoio estatais à indústria; uma legislação trabalhista e sindical capaz de incorporar à máquina do Estado o movimento operário que crescia de forma autônoma.

O padrão de alianças de classes, típico da época em que a burguesia deixou de ser revolucionária, é nítido. Seus agentes históricos foram os militares descontentes, os tenentes, e não as massas populares. Em 1924, por exemplo, o general Isidoro Dias Lopes, líder da revolução tenentista de São Paulo, não aceitou a adesão de militantes operários para não desvirtuar seu movimento. Em 1935, a Aliança Nacional Libertadora, que defendia um programa democrático radical, foi posta na ilegalidade e sob severa repressão policial, tão logo se transformou num movimento amplo e poderoso.

Assim, o pacto político que dominou o País desde os anos 1930 esteve baseado na aliança entre o latifúndio, o capital mercantil, o capital industrial e o imperialismo. Os operários participam de forma subalterna e limitada nesse jogo político, com grandes dificuldades para legalizar seus partidos e severos obstáculos à liberdade sindical, de reunião, de associação, de livre manifestação do pensamento e intervenção no debate político. Os camponeses, por sua vez, ficam à margem da vida política.

“O padrão de alianças de classes é o da época em que a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária”.

Dois projetos de desenvolvimento nacional: A construção da hegemonia burguesa assume, assim, uma dinâmica própria. Desde o começo da República até o golpe militar de 1964, dois projetos de desenvolvimento capitalista se defrontaram. De um lado, havia um projeto de desenvolvimento autônomo, expresso na política que Getúlio Vargas defendeu seja no período ditatorial de seu governo, seja mais tarde, quando voltou à presidência levado pelo voto popular. A luta pelo monopólio estatal do petróleo, pela siderurgia, pelas indústrias de base, assinalam esse período. No governo Goulart, preconizava também a democratização do Estado nos marcos da democracia burguesa ocidental, e as chamadas reformas de base como condição essencial para a modernização capitalista do País. As principais eram as reforma agrária, sindical, bancária, da Constituição, e a regulamentação da remessa de lucros das empresas estrangeiras.

Esse projeto de desenvolvimento autônomo foi derrotado, em 1964, pela aliança entre o grande capital brasileiro (industrial e mercantil), a oligarquia latifundiária e o imperialismo, aliança cujo instrumento foram os militares e a hierarquia católica. Seu lugar foi ocupado pelo projeto de desenvolvimento dependente e associado, fomentado por esse conluio de serviçais do imperialismo com setores da elite brasileira. O resultado dessa derrota foi a modernização capitalista do País comandada pelos interesses do imperialismo e do grande capital monopolista (brasileiro e estrangeiro); a manutenção do latifúndio e, em consequência, da oligarquia rural; o aprofundamento da articulação do grande capital brasileiro com o imperialismo; a desnacionalização acentuada da economia brasileira; o desenvolvimento político truncado por duas décadas de ditadura militar e por uma transição democrática onde as forças que dominavam no período ditatorial continuam intactas.

“Desde o começo da República dois modelos de desenvolvimento nacional se defrontam: o autônomo e o dependente”.

A burguesia descobre o Parlamento: Na crise atual do Estado brasileiro, a principal força dirigente da burguesia industrial, a Fiesp (onde estão os principais dirigentes da indústria brasileira, nacional ou estrangeira), comanda o coro dos que desejam desmontar o aparelho estatal atual, e construir outro, adequado a seus interesses de classe. Seus líderes clamam por um Estado barato e eficiente, capaz de implementar políticas favoráveis ao desenvolvimento de seus negócios, para assegurar a lógica do desenvolvimento capitalista no País e aprofundar a subordinação ao grande capital de toda a produção material. Ela é um agente, nesta luta, de seus próprios interesses de classe, mas também dos interesses das empresas estrangeiras instaladas no País. Em 1987, Carlos Eduardo Moreira Ferreira, coordenador do lobbie da Fiesp na Constituinte, dizia: “(…) se o Estado continuar sem limites claros, não teremos a segurança necessária para o bom funcionamento do sistema econômico”. Hoje, Moreira Ferreira é o presidente da Fiesp, e continua na mesma tecla. Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério da Economia, Moreira Ferreira aprovou o Plano Verdade: “É nossa última chance de, dentro da lei e da ordem constitucional, tirarmos o Brasil da crise em que está metido”.

Essa ameaça explícita de rompimento da ordem constitucional ilustra a perplexidade da burguesia industrial que precisa construir uma ordem política adequada às suas necessidades, mas ainda está aprendendo o caminho da disputa política. No ensaio Reconciliando os capitalistas com a democracia – o caso brasileiro, apresentado em um seminário na Itália, em 1992, com o sociólogo José Rubens Figueiredo, Fernando Henrique Cardoso mostra a escassa votação democrática do empresariado brasileiro, manifestada com força durante a ditadura militar, quando as principais lideranças empresariais do País tinham interlocutores diretos no poder executivo, e presença menor no Congresso Nacional. Fernando Henrique Cardoso tornou-se um campeão da democracia que os empresários desejam. Nesse ensaio, sustenta que somente depois da Constituinte de 1987-1988 é que os empresários descobriram o Congresso e a política parlamentar, e aprova essa descoberta. Diz também que, na eleição de 1989, o empresariado enganou-se com Collor. Aceitou e até aplaudiu medidas que colocavam em risco “(…) a própria sobrevivência das empresas, que tiveram seus ativos confiscados”.

Hoje, a burguesia industrial se vê numa situação complexa. A defesa de seus interesses de classe faz renascer alguns aspectos daquele projeto de desenvolvimento autônomo que parecia derrotado. Hoje, volta-se a falar, com força, da defesa do mercado interno. O economista Stephen Kanitz diz que produzir para os ricos, como se fez nos anos 1980, foi um erro. O mercado brasileiro do ano 2000, diz ele, será formado por 20 milhões de famílias com renda mensal de 300 a 600 dólares, um potencial que não pode ser desprezado. Um economista conservador, como o ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso, defende opinião semelhante. Celso Furtado, em seu último livro, combate a tese de que a abertura dos mercados às exportações dos EUA possa restituir dinamismo à economia de países como o Brasil. O motor do desenvolvimento brasileiro, até nossos dias, diz ele, foi “(…) a formação do mercado interno a partir de um potencial de recursos humanos e de mão-de-obra subutilizados”. E, numa entrevista ao Jornal do Brasil diz: “(…) o Brasil deve pensar em viver com menos apoio externo, ter mais autonomia, voltar-se para o mercado interno e encontrar fôlego para avançar”.

O argumento econômico e o argumento político da reforma agrária: Estender o domínio capitalista ao conjunto da sociedade não significa, contudo, a liquidação da oligarquia latifundiária e do latifúndio, mas sim seu aburguesamento. Na lógica implacável do capital, as terras devem ser incorporadas ao mercado capitalista, como bens de raiz necessários à garantia de negócios financeiros, como reserva de valor, como mercadoria, ou mesmo como reserva estratégica para esvaziar conflitos sociais. Mesmo a questão da reforma agrária passa a ser encarada sob essa lógica. No passado, lutava-se pela divisão das terras a pretexto da modernização da agricultura e da economia brasileira. Era o argumento econômico da reforma agrária, derrotado pelo desenvolvimento capitalista brasileiro que, nos anos 1960 e 1970, modernizou a agricultura do País e atrelou-a (particularmente seu setor mais dinâmico e moderno) às necessidades da indústria. Muitos pensam, assim,que a reforma agrária tornou-se desnecessária. Não compreendem que o argumento econômico era inadequado para a efetiva modernização da sociedade brasileira. Sua derrota permitiu compreender que, na verdade, a luta pela reforma agrária deve fugir à lógica do capital (à qual estava subordinada, segundo o argumento econômico) e assumir claramente a necessidade política da reforma agrária. Trata-se, em primeiro lugar, de distribuir de forma mais democrática esse importante fator da produção, que é a terra, assegurando meios de vida a milhões de brasileiros que vivem no campo. Em segundo lugar, ele permite regular a oferta de trabalho nas cidades. Ela beneficia os trabalhadores industriais ao reter mão-de-obra no campo, e eliminar o excesso de oferta de trabalho que força o preço dos salários para baixo. Finalmente, não se pode esquecer que a abundância na oferta de alimentos no mercado interno depende também da reforma agrária, já que o latifúndio volta-se basicamente para a produção de gêneros de exportação. Outro aspecto, talvez ainda mais importante, é o da luta para destruir os alicerces do poder da oligarquia latifundiária.

“Após a ditadura militar, a vida política e partidária mais desafogada, permitiram uma expressão maior dos interesses populares e dos setores alheios ao grande capital”

O colapso das oligarquias agrárias: Aliás, hoje, esses alicerces estão podres. Na República Velha, as elites agrárias estruturaram um esquema de dominação que articulava os chefes locais, coronéis, a chefes regionais (governadores), culminando em nível federal com o controle da Presidência da República e do Congresso Nacional por seus representantes mais destacados. Esse sistema – conhecido como política dos governadores –, que dava enorme autonomia para as oligarquias locais, foi ultrapassado pelo desenvolvimento político e econômico posterior a 1930, mas a rigor nunca foi destruído completamente. Ele atravessou o período da Constituição de 1946, e voltou a ter força durante o regime militar, quando os chefes dos grotões garantiam resultados eleitorais favoráveis aos candidatos da ditadura, a troco de apoio político e financeiro do governo federal. Mas a modernização capitalista do campo brasileiro expulsou os trabalhadores para as cidades e destruiu o cacife das oligarquias na luta política eleitoral: o voto de curral. Ficaram, assim, sem a principal moeda de troca no pacto político que as mantinha presas aos interesses da elite capitalista brasileira.

No Nordeste, onde essa realidade é mais presente, a falência das velhas oligarquias acelera-se. Nas eleições da última década, o enorme volume de recursos repassado aos políticos locais, para obterem apoio eleitoral para teses e candidatos conservadores, arruinou as finanças públicas dos Estados nordestinos. O “Diagnóstico das finanças públicas dos estados e municípios do Nordeste”, divulgado pela Sudene em fevereiro de 1991, mostrou que, entre 1980 e 1987, o funcionalismo público daqueles estados inchou exatamente nos anos de eleição (1982, 1985 e 1986). Nesse período, a troco de apoio ao governo federal, os governos estaduais obtiveram empréstimos muito superiores à capacidade de pagamento. Assim, nesses anos, a receita líquida dos estados nordestinos cresceu 5,6% ao ano, mas suas dívidas cresceram 25,1%, e o serviço da dívida, 24,7%.

Outra demonstração da mudança foram os resultados da eleição presidencial de 1989 no Nordeste. Ali, Lula obteve quase um terço dos seus votos no primeiro turno, e nenhum candidato das oligarquias locais passou para o segundo turno.

No segundo turno, Collor venceu em todos os estados nordestinos, com exceção de Pernambuco, mas Lula venceu em todas as capitais nordestinas, com exceção de Maceió. Esses fatos refletiram as dificuldades das classes dominantes nordestinas, diz o diagnóstico da Equip, de Recife. “Habituada a manter o controle político através do expediente clientelista”, a elite nordestina viu-se desarmada. “Falta verba para o clientelismo (…) Mais que isso, a crise financeira do governo impossibilita a continuação dos esquemas costumeiros de destinação de verbas públicas para as obras que interessam aos chefes políticos regionais, para abrir as estradas que passam em suas fazendas”. Essa crise impede também a continuação do empreguismo, elemento importante do clientelismo político.

“Antes, queria-se a reforma agrária para modernizar a economia. Hoje, ela impõe-se para acabar com a oligarquia”.

O novo pacto das elites proprietárias: Além de faltar dinheiro para o clientelismo, outro resultado da crise foi as pressões para que a aplicação de recursos públicos fosse reconsiderada. Passa-se a exigir que sejam usados de acordo com a lógica burguesa do lucro e da eficiência empresarial, em benefício da acumulação e reprodução do capital, e mesmo do esvaziamento de tensões sociais que podem ser explosivas. A imprensa conservadora de São Paulo passou a denunciar, com frequência, o mau uso de verbas orçamentárias destinadas aos estados nordestinos. O escândalo em torno desses números pode indicar uma mudança nas relações de classe entre a elite brasileira. Há sinais de que a burguesia industrial considera hoje muito caro o vínculo com a oligarquia agrária nordestina. Moreira Ferreira, da Fiesp, por exemplo, apóia os cortes orçamentários prometidos por Fernando Henrique Cardoso. Se o congresso não ajudar nos cortes, diz ele, “(…) teremos e caos porque o cobertor não dá para todos”. Emerson Kapaz, do PNBE, é mais explícito. “Acho que existe uma força fisiológica, cuja atuação impede o acerto do orçamento da União”. “Os recursos são escassos e é preciso gastar bem o dinheiro que está disponível. Temos prioridades, como investimentos na área social”. Em editorial, o jornal O Estado de S. Paulo, diz: “(…) a solução do problema do Nordeste” ocorrerá quando “o poder político das oligarquias regionais for enfrentado com decisão”, quando se tiver “coragem de enfrentar as forças políticas e sociais que têm contribuído para que a mentalidade dominante na região, não sabemos se pré ou anti capitalista, se espraie pelo Congresso, contamine a representação política como um todo”.

Não podia ser mais claro – a aliança entre a burguesia industrial e o grande capital, nacional e estrangeiro, do Sudeste, com as oligarquias agrárias do Nordeste parece mesmo ultrapassada, e sua reformulação pode ser o passo final para completar o domínio da burguesia industrial sobre o Estado brasileiro. O prestígio das mudanças políticas que ocorrem no Ceará é revelador. Lá, a elite industrial derrotou os coronéis, e implanta uma modernização que não é conflitante com os projetos do grande capital.

Em 1930, o pacto das elites foi alargado com a inclusão da burguesia industrial. Hoje, há sinais de uma tendência das lideranças burguesas em diminuir o papel das velhas oligarquias agrárias nesse pacto político. Durante a ditadura militar, o Estado brasileiro foi praticamente privatizado, moldado para servir aos interesses do grande capital. O poder executivo foi o centro do domínio da burguesia sobre o Estado, enquanto o Congresso Nacional era manietado, e a vida política e partidária severamente limitada. Com o fim da ditadura, o papel do Congresso Nacional cresceu. A eleição direta do presidente da República, e a vida política e partidária mais desafogada, permitiram uma expressão maior dos interesses populares e dos setores alheios ao grande capital. Além disso, o peso da oligarquia agrária no Congresso tornou-se desproporcional seja à sua importância política, seja aos serviços político-eleitorais por ela prestados ao grande capital.

Em consequência, é inevitável que, para o domínio da burguesia industrial, a importância do Congresso Nacional seja agora decisiva. E as mudanças exigidas pela Fiesp, CNI, PNBE e outras importantes entidades de classe do empresariado, apontam nesse rumo. Assim, o esforço da burguesia industrial para completar seu domínio sobre o Estado passa por aquilo que, a seu critério, é a modernização da máquina governamental e dos institutos de disputa político-eleitoral. Por isso, ela exige a Revisão Constitucional, contra o parecer de inúmeros juristas. O objetivo dessa reforma constitucional não é apenas a limitação das conquistas sociais asseguradas na Carta de 1988. A burguesia procura uma forma de governo que permita acomodar, sob sua direção, um pacto de proprietários, que seja hegemônico também no Congresso Nacional, contra os interesses populares. Procura legitimar esse pacto atraindo para ele lideranças sindicais apelegadas ou moderadas.

Foi em busca dessa forma de governo que a burguesia insistiu no parlamentarismo conservador que foi oferecido ao eleitorado no plebiscito de abril passado. Quer também uma legislação partidária e um sistema eleitoral adequados para a garantia da estabilidade de sua hegemonia. Assim, repetindo a experiência histórica das burguesias de outras nações, a burguesia brasileira prepara-se para ultimar a construção de um Estado claramente burguês, adequado ao jogo político da democracia burguesa. Suas aspirações apontam nessa direção. Se a democracia burguesa impõe a existência de um parlamento com poderes reais no jogo dos poderes da União, é preciso, para a burguesia, que seja um parlamento seguro. Ela quer, por exemplo, enfraquecer ou eliminar os partidos políticos progressistas, ligados ao povo (principalmente o Partido Comunista do Brasil), e fomentar e fortalecer os partidos comprometidos com o capitalismo. Quer também um Congresso Nacional que seja a expressão da burguesia, e não de seus aliados, como ocorreu até aqui. A introdução de uma forma de voto distrital tem esse sentido: trata-se de criar as regras para a formação democrática, isto é, por via eleitoral, de um Congresso adequado ao domínio da burguesia, onde a representação dos interesses de classe dos trabalhadores seja diminuída e manietada. Para completar sua obra, é essencial que as cadeiras do Congresso sejam redistribuídas, diminuindo a representação dos Estados mais pobres, dominados por oligarquias atrasadas, e aumentado a representação dos mais ricos – isto é, de São Paulo, onde o grande capital tem sua implantação mais sólida.

Esse parece ser o sentido do jogo da burguesia. Cabe, em primeiro lugar, ver se ela terá força política para vencê-lo. Em contrapartida, aos trabalhadores não cabe mais lutar para aperfeiçoar a democracia burguesa, mas sim para superá-la. Mais do que nunca, cabe à classe operária aprofundar a luta pelo socialismo.

* Jornalista e membro do conselho editorial da Princípios.

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