A independência do Banco Central (BC) é uma oferta do santo graal que políticos recorrentemente fazem ao tecnicismo e aos interesses do “mercado”.

O BC brasileiro há algumas décadas tem autonomia operacional para executar a política monetária. A independência significaria conferir a seus diretores mandatos por períodos fixos e não coincidentes com o do presidente da república.

Em torno do tema estão em disputa os entendimentos sobre a economia e os objetivos do BC. Para a teoria convencional, a inflação seria um efeito da excessiva expansão da economia e mantê-la baixa, dando confiança aos investidores, seria o melhor que o Estado pode fazer para favorecer o crescimento. Assim, o BC deve se pautar somente pelo controle da inflação.

Sob um objetivo tão simples e bem definido, os mandatos fixos poupariam o BC de influências políticas danosas: subir os juros quando preciso seria o preço a se pagar de imediato pelo bem-estar de longo prazo.

A questão muda se o entendimento é que o BC tem responsabilidades mais amplas do que a estabilidade de preços e toma decisões que implicam arbitrar interesses.

 

Os impactos concorrentes mais evidentes são sobre o nível de emprego e a distribuição de renda. Subir os juros para manter a inflação muito baixa é uma maneira de enfraquecer a atividade econômica e, assim, diminuir o poder de barganha dos trabalhadores e disciplinar o crescimento real dos salários. Além disso, os mais ricos são beneficiados ao aplicarem suas poupanças a taxas mais altas, pagas pelo governo com base num esforço fiscal de toda a sociedade. Isto é, transferência de renda de quem ganha menos para quem ganha mais.

Fica claro que a influência política é indissociável das decisões do BC. Defender que suas decisões são puramente técnicas é uma maneira de atender aos interesses dos mais ricos, que são os que formam a conhecida “opinião do mercado”.

No caso de economias periféricas, com moedas não aceitas internacionalmente e ampla abertura financeira, como a brasileira, também é preciso considerar o impacto da política monetária sobre a taxa de câmbio.

Na alta do ciclo de liquidez internacional, essas moedas tendem a se apreciar em função do diferencial entre os juros interno e externo, o que ajuda a cumprir a meta de inflação, mas tem consequências negativas sobre as exportações líquidas e, se duradouras, sobre a competitividade da indústria. Na fase de baixa, a reversão dos fluxos de capitais resulta em depreciações súbitas e, com isso, na necessidade de aumento dos juros básicos para conter seus efeitos inflacionários. A alta do preço da moeda estrangeira também pode resultar em desequilíbrios patrimoniais de quem se endividou externamente e tem receitas concentradas em moeda local.

De novo, as decisões do BC têm efeitos sobre todos os preços-chave (juros, salários e câmbio) da economia e, assim, sobre os interesses tanto de trabalhadores e empresários como de credores e devedores.

Além disso, os bancos centrais surgiram com o objetivo de garantir a estabilidade ao sistema monetário e financeiro, criando regras para atuação dos bancos e provendo liquidez quando necessário, o que pode entrar em conflito com a manutenção da inflação de bens e serviços num patamar muito baixo. A liberalização financeira ocorrida nas últimas décadas, ao facilitar a criação de bolhas especulativas, exacerbou essa contradição e adicionou o desafio de conter a inflação de preços dos ativos.

Se ainda se considera que a inflação tem causas reais, conter a expansão monetária pode ser ineficaz e danoso, como revelou a resposta aos choques do petróleo nos anos 1970. O mesmo vale para quebras de safras e outros choques de custo. No sentido contrário, exemplo recente é o da incorporação de trabalhadores de baixos salários na Ásia, cujo choque deflacionário de custo se mostrou bem mais significativo para manter a inflação mundial baixa do que as alegadas virtudes da existência de mandatos fixos para os dirigentes dos principais BCs.

Novamente, a missão do BC deixa de ser inequívoca; por isso, sua política monetária não pode ser decidida de forma isolada, sem coordenação com as demais políticas macroeconômicas (cambial, financeira e fiscal) e ignorando os variados interesses em jogo.

Ainda assim, é fato que nos Estados Unidos os mandatos fixos dos diretores ocorrem com um triplo objetivo do seu BC (Fed): controlar a inflação, buscar combater o desemprego e manter a estabilidade do sistema. Lá, a reclamação é de que o Fed, embora independente de direito, não o é de fato. “Independência” seria priorizar o controle da inflação. O debate não mudou pela existência de mandatos fixos.

De fato, o debate é de natureza política. Nos Estados Unidos, a força do Congresso disciplina as tentativas do mercado de controlar o BC. Não é por outro motivo que o Fed tem uma missão tripla. Há também forte preocupação com as relações entre o setor financeiro privado e o Fed. No Brasil, o objetivo é único, o controle da inflação. E, desde os anos 1990, todos os presidentes do BC, com exceção de Alexandre Tombini, foram ou se converteram em altos executivos do mercado financeiro, caracterizando um alto padrão de ingerência do mercado sobre o BC.

Aqui, as consequências adversas da independência do BC seriam ainda maiores por causa das características da inserção do país no sistema monetário e financeiro, que resultam numa menor autonomia da política monetária, bem como na necessidade de maior de coordenação entre as quatro políticas macroeconômicas.

Neste contexto, dar mais poder ao mercado soa altamente inapropriado.

Curiosamente, são os políticos que resistem. Afinal, nenhum presidente gostaria de deixar de poder demitir auxiliares em uma área tão sensível à sua popularidade e ainda ter que trabalhar metade de um mandato com os responsáveis pela política monetária escolhidos pelo antecessor.

Porém a independência do BC segue como um chavão para angariar a simpatia do “mercado” e reforçar uma narrativa de comprometimento com a primazia de uma suposta neutralidade das decisões técnicas. Ademais, o presidente da República que aprovar a medida teria a vantagem de indicar os diretores para todo o seu mandato e parte do governo seguinte. Em tempos de fragilidade das instituições políticas, a medida pode finalmente colar.

 

*Marcelo Miterhof é economista do BNDES (este artigo não reflete necessariamente a opinião do banco; e Daniela Magalhães Prates é economista, professora associada da Unicamp e pesquisadora do CNPq. E-mails: [email protected] e [email protected]

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil