Seguramente, a mídia hegemônica fica à beira de um ataque de nervos a partir de pesquisa de opinião divulgada na edição da Folha de S.Paulo do dia 21 de agosto de 2010. Dilma abria 17 pontos de vantagem sobre José Serra. Com tal resultado, a candidata podia ganhar no primeiro turno. Raiva, desapontamento, ranger de dentes. Como é que um poste inventado por Lula ultrapassava tão largamente o candidato tão mais bem preparado, tão mais experiente, que, na visão anterior dela, mídia, quase não havia cometido erros?

Nesse momento, a mídia distribui bordoadas sobre a condução da campanha de Serra, dizendo dos graves erros cometidos, agora descobertos. Claro, a mídia dizia, era possível um milagre, uma reviravolta, e ela quase prometia a Serra e seus coordenadores de campanha: quanto a nós, não se preocupe; faremos de tudo e um pouco mais para propiciar o milagre, tudo ao nosso alcance continuará a ser feito e com maior intensidade ainda para prejudicar a candidata Dilma.
Acrescentava-se: lembrem-se do que dizíamos na reunião de março do Millenium: “Eles não podem passar, não podem continuar”.

Se era possível, e era, a partir daí a atividade político-partidária da mídia devia crescer de intensidade. E cresce o tom contra Dilma. E acentuam-se os temas considerados negativos para ela. Praticamente são excluídas do noticiário, dos comentários, do que seja, em todos os níveis, da mídia hegemônica contrária à candidatura de Dilma, menções negativas a Serra. Havia um demônio à vista: o poste de Lula. Tudo haveria de ser feito para operar o milagre de ao menos levar a campanha para o segundo turno. O cenário de uma vitória de Dilma no primeiro turno tinha de ser revertido.

Logo depois de 21 de agosto outro escândalo construído: o caso do dossiê com dados sigilosos da Receita Federal de pessoas vinculadas ao candidato José Serra, encomendado por petistas, de acordo com o tucano. Nesse momento, já surgia outra pesquisa, Dilma 20 pontos à frente. Começava, com o dossiê, outra campanha jornalística. A Folha de S.Paulo, de modo especial, debruçou-se diligentemente sobre o caso, construindo suítes durante dezesseis dias contínuos e por outros tantos, intercalados, até o segundo turno. Se assuntos negativos fossem escassos para a candidata Dilma, necessário apostar a maior parte das fichas no dossiê, naquele momento.

Sinteticamente, o esquentamento do caso resumia-se ao fato de a investigação da corregedoria da Receita Federal ter descoberto a quebra de sigilo de mais três pessoas do PSDB, além do vice-presidente do partido, Eduardo Jorge: Luiz Carlos Mendonça de Barros, Ricardo Sérgio e Gregório Marin Preciado. E digo esquentamento porque já havia matérias anteriores, desde junho. Todo o esforço da direção da campanha de Serra e dele próprio era jogar o dossiê no colo da candidata Dilma. A mídia e Serra caminham de mãos dadas na perspectiva de responsabilizar a petista. No entanto, o texto às vezes é traiçoeiro. Na Folha de S.Paulo, de 27 de agosto, o jornal se trai e lá pelo interior de uma matéria afirma-se que o PSDB tenta reeditar o que ocorreu em 2006, “quando o escândalo dos aloprados garantiu o segundo turno presidencial”.

No que publica em torno do dossiê, a mídia vale-se do ministro Marco Aurélio Mello, do STF, e do presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante, sabidamente adversários do projeto político iniciado em 2003 no Brasil. Na Folha, a partir do início de setembro, o dossiê passa a contar com vinheta própria: “Escândalo da Receita”, procedimento que sempre adotaram para manter o assunto em alta. Mais tarde, vai se descobrir a ausência de quaisquer novidades nas chamadas quebras de sigilo: tudo havia sido levantado pelo jornalista Amaury Ribeiro Júnior, autor do livro A Privataria Tucana, que sairá no final de 2011, um dos mais vendidos por muitas semanas. O leitor, se quiser, terá ali muito mais do que as breves referências sobre as tais quebras de sigilos de todos os personagens que ocuparam as manchetes de 2010. Descobrirá como se articulou uma das maiores redes criminosas de apropriação do dinheiro público exatamente com aqueles que a mídia tentou transformar em vítimas.

Se não bastasse essa constatação, conhecida de todos e feita à época, não pela velha mídia naturalmente, a Polícia Federal informou não haver relação entre a quebra de sigilo em unidades da Receita Federal e a campanha presidencial de 2010. As provas evidenciavam que o jornalista Amaury Ribeiro Júnior começara a fazer o levantamento para seu livro desde o final de 2008, e naquele momento trabalhando para o jornal Estado de Minas. O material inicial era de interesse de Aécio Neves, que reagia a ataques feitos por Serra. A mídia hegemônica fez ouvidos de mercador.

Mas, com a notícia aparecendo nos blogs progressistas, Serra percebe as balas ricocheteando. A participação dele na privataria tucana aparecia. E, como num passe de mágica, o assunto, a partir de 10 de setembro, evaporou, sumiu, escafedeu-se. Havia necessidade de outro escândalo, urgente. O dossiê tivera sua validade vencida. Por falta de substância. E aí veio o caso Erenice Guerra, ministra da Casa Civil. Acusação: o filho dela, Israel Guerra, teria intermediado contratos entre empresa privada e governo. Começou pela revista Veja, e como sempre se espalhou como um rastilho de pólvora pelo resto da mídia, urubus em carniça. E a ênfase obviamente seria deslocada para o fato de a ministra ser o braço direito de Dilma, como insistentemente a mídia passou a se referir a Erenice Guerra. Qualquer escândalo devia levar a Dilma – esta a cartilha do Millenium, repita-se. No dia 16 de setembro, a ministra é afastada.

No desenvolvimento do escândalo, era óbvia a articulação entre a velha mídia e o programa eleitoral de José Serra veiculado pela TV. As manchetes da Folha, de O Globo e de O Estado de S.Paulo eram alimento essencial do programa do candidato do PSDB. Uma reforçava a outra. A mídia hegemônica, com seu trabalho, dava ares de verdade a tudo que Serra dizia. Não importa que muitas das denúncias que envolviam Erenice Guerra não se revelaram verdadeiras, como comprovado pela Controladoria-Geral da União. Nem importa que, a posteriori, ela tenha sido inocentada pelo Tribunal Federal da 5ª Região. O processo contra Erenice Guerra por suposto tráfico de influência foi arquivado em 2012 por recomendação do Ministério Público Federal, acatada pelo juiz Vallisney de Souza, da Justiça Federal. Quem paga pelo assassinato da reputação de Erenice? Quem paga pelas tantas mentiras? Ninguém. A mídia julga-se no direito de fazer o que quer e bem entende.

Claro, a Operação Tempestade no Cerrado, como se disse, tinha o claro objetivo de levar a eleição para o segundo turno. E quem sabe, então, sobreviesse o milagre tão esperado, e Serra se tornasse presidente da República. O insistente martelo da mídia, a construção dos escândalos, a retroalimentação noticiosa dos veículos entre si e destes com a campanha de Serra haveria de produzir algum resultado. E a maior parte da mídia hegemônica, quando percebe a tendência de subida de Marina, passa a incensar a candidata, acreditando pudesse ela ser um fator a mais para garantir a passagem da oposição para o segundo turno, como de fato foi. Dilma, no primeiro turno, 3 de outubro, teve em torno de 47,6 milhões de votos (46,91%). Serra, coisa de 33,1 milhões (32,61%), e Marina, 19,6 milhões (19,33%). A Tempestade no Cerrado alcançara seu objetivo.

Guerra religiosa

Agora, no segundo turno, previsto para 31 de outubro, era somente Dilma contra Serra. A mídia lutaria pelo milagre. Que não veio. Ela se esforçou muito, no entanto. E contou com aliados importantes, como as igrejas, não só evangélicos fundamentalistas como a própria Igreja Católica. O debate religioso ganhou intensidade, sobretudo por conta do tema aborto. Dito de outra forma, do tema mulher, a quem a religião pretende suprimir a autonomia sobre o corpo, que era e é a questão.

Durante toda a campanha, entre um escândalo e outro, deu-se a guerra religiosa. Já se falou nisso, mas compensa voltar. Ao menos para mostrar como a irresponsabilidade e a agressividade podem crescer numa campanha. Mônica Serra, mulher de Serra, numa caminhada em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, quando um eleitor evangélico confessou voto em Dilma, afirmou: “Dilma é a favor do aborto”. Quis dar ênfase: “Ela é a favor de matar as criancinhas”. Isso se deu no dia 14 de setembro de 2010, divulgado no mesmo dia pela Agência Estado. Mônica não contava com a verdade: uma de suas alunas na Unicamp no início dos anos 1990, Sheila Ribeiro, dia 10 de outubro, já, portanto, sob o clima do segundo turno, reagiu forte e decentemente ao hipócrita ataque:

– Com todo o respeito que devo a essa minha professora, gostaria de revelar publicamente que muitas de nossas aulas foram regadas a discussões sobre o aborto, sobre o seu aborto traumático. Mônica Serra fez um aborto.

Mônica Serra, sem saber o que dizer, sem ter o que dizer, arrumou as malas e seguiu para o Chile no dia 13 de outubro. Desmoralizada. Não pelo aborto, mas pela hipocrisia deslavada. Só voltará no dia da derrota do marido, 31 de outubro, segundo turno. Não se sabe se arrependida.

A guerra religiosa ganharia contornos mais agressivos. Chamaram o papa para a batalha. Ou ele, por iniciativa própria, chamou-se para a linha de frente do combate. Ele mesmo, Benedictus XVI, o inquisitorial, conservador Joseph Aloisius Ratzinger, sucedido pelo suave Francisco. Ao receber um grupo de bispos do Maranhão, resolveu ajudar abertamente a candidatura de Serra. Condenou o aborto e recomendou aos bispos que orientassem seus fiéis. Por orientar os fiéis, leia-se votar na candidatura tucana.

Que papa, não? Por que envolver-se assim numa disputa eleitoral? Por que tomar partido a favor de uma candidatura? Por que correr o risco de ser derrotado? Claro que, diante disso, a mídia fez o alarde que pôde. Quem sabe não viesse daí o milagre, quanto mais se a palavra vinha de Sua Santidade. O milagre não veio. Nem recorrendo ao papa.

Na tentativa de salvar Serra, houve momentos ridículos de nossa mídia hegemônica. O maior deles foi o célebre, e bote célebre nisso, episódio da bolinha de papel. Aquela a que o candidato Serra quis atribuir consistência de um meteorito. O duro é acreditar tenha a mídia, a Rede Globo em particular, mordido a isca, aceitado a encenação do candidato do PSDB. Mordeu convenientemente, claro. Quem sabe, imaginasse ser o meteorito que o salvasse da derrota.

Sabe-se do caso, por universal. Ocorreu na manhã de 20 de outubro, no calçadão do Campo Grande, no Rio de Janeiro. Havia ali uma manifestação do sindicato dos mata-mosquitos, de funcionários da Fundação Nacional de Saúde, cuja lembrança de Serra era amarga: demitira quase 6 mil deles em 1999, quando ministro de FHC. Um deles amassou um pedaço de papel até transformá-lo num projétil capaz de atingir o alvo. Serra, atingido na cabeça, sentiu o triscado, e seguiu a caminhada.

Houve, no entanto, um telefonema, que certamente o orientou para fazer do episódio, quem sabe, a salvação da lavoura, o milagre procurado. Entrou numa Van, foi para um hospital, foi anunciada uma tomografia jamais divulgada, e a bolinha de papel transformou-se em outro projétil, conforme Serra e sua assessoria: uma bobina de fita crepe, uma “coisa grande” – o vice Índio da Costa avaliou a “coisa grande” em dois quilos, Serra reduziu para meio quilo. E o episódio, então, como qualquer um seria capaz de prever, ganhou estatuto de atentado petista, no Jornal Nacional da Rede Globo, que assumiu a tese da contundente “bobina de fita crepe”.

Só que o SBT não embarcou nesse jogo: exibiu, também em horário nobre, a bolinha de papel, ela mesma, com sua consistência insignificante, batendo na cabeça de Serra: ele nem se altera, somente olha para o chão tentando descobrir a razão do triscado. Serra virou piada mundial na internet. Junto com ele, a Rede Globo e a montagem da farsa. O milagre não viera. Bolinha de papel não podia ser a bala de prata que os serristas e a mídia viviam alardeando estar na algibeira.

Dilma vence as eleições com 55,7 milhões de votos (56,05%) e Serra tem 43,7 milhões (43,95%). Como fora em 2002, com a vitória de Lula, o retirante-operário nordestino assumindo a Presidência da República, agora era a mulher vinda da dura luta contra a ditadura que assumia o comando da política nacional. A derrota da oposição fora, inegavelmente, mais uma vez, a derrota da mídia millenarista. Não se acredita, insista-se, em qualquer mudança de posição da mídia hegemônica por conta dessa derrota: ela seguirá combatendo o projeto político iniciado em 2003. Já arregaçou as mangas, e tenta, de todos os modos, desconstruir o cenário de favoritismo de reeleição da presidenta Dilma. A ver.

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Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate

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