A sobrevivência do velho no novo
Nada que nos lembre, sejam os anos 50 (marcados pelo golpe reacionário que levou Vargas ao suicídio), seja o golpe proto-fascista de 1964, com sua longa noite de horror. Nada que nos lembre, sequer, o governo desenvolvimentista de JK, juncado por sucessivas tentativas de golpes de Estado e insurreições militares, articuladas antes mesmo de sua posse.
Na verdade, estamos, desde 1985, vivendo nosso mais longo período de estabilidade democrática, de preeminência do poder civil e silêncio dos quarteis, da história republicana.
O que avançamos à esquerda nesses dez anos só é comparável (talvez até superando-o) ao que o país avançou nos governos Vargas e Jango e, pela primeira vez, a direita não teve condições de interromper o processo de ascensão das massas, embora cogitasse dessa aventura em 2005, da qual recuou em face de seu medo contumaz da voz das ruas. Avançamos sobretudo em conquistas econômicas e sociais, que ajudam a explicar a notável popularidade de Lula e de Dilma. Estamos, todavia, ainda a pagar um preço absurdamente elevado pela “governabilidade”, o nome elegante da construção da base de apoio parlamentar, preço que impede o avanço político. Pois tudo tem seu preço.
A avaliação mais corrente ao período deita suas raízes no plano econômico, considerado, à esquerda e à direita, como fiador da popularidade dos governantes, financiador que é dos avanços sociais, os quais, para poupar espaço, resumiremos na dupla pleno emprego-distribuição de renda: 42,5 milhões de brasileiros entraram no sistema financeiro e conheceram o crédito, tornado acessível graças à intervenção política da presidente.
No segundo semestre de 2002, em plena campanha pela sucessão presidencial, o presidente FHC convocou todos os candidatos para uma ‘reunião de Estado’ (estive em uma delas, acompanhando o candidato Anthony Garotinho, à época no PSB), para anunciar a falência do país. O governo, em seu outono, correra uma vez mais ao FMI e precisava que o próximo presidente honrasse os terríveis compromissos assumidos com a banca internacional. Passados 10 anos, o Brasil, de devedor, tornou-se credor do FMI; a inflação anual caiu de 12,5% para algo como 5%; as reservas cambiais são superiores a um ano de importações, a realidade cambial foi restabelecida e a dívida pública líquida caiu como fração do PIB. Acabou-se com a lengalenga de ‘Banco Central independente’, independente do país e dependente dos banqueiros.
Outros excepcionais indicadores do amadurecimento de nossa economia remetem ao reconhecimento internacional, cuja justa medida é o fato de sermos, hoje, o quarto destino mundial de investimentos estrangeiros (65,3 bilhões de dólares, segundo a Unctad), e o Tesouro Nacional emitir (e vender) títulos de 20 anos, pagando uma taxa de juros real inferior a 4%! E tudo isso – e muito mais – mantendo a política de aumento real do salário-mínimo. A qual, nesse governo, contrariando economistas da FGV, deixou de ser elemento inflacionário. Aumentou-se o salário mínimo, aumentou-se a renda dos assalariados, aumentou-se o crédito, derrubaram-se os juros, e a inflação permaneceu sob controle.
Mas, o que mais festejo são os ganhos políticos e o que mais critico é a timidez política, e exatamente por isso elogio, finalmente, o pronunciamento da Presidente na televisão, tão bom que irritou a direita impressa. Espero, porém, que esse pronunciamento não seja o primeiro e último. Pois, se o grande mérito do governo foi a decisão de governar para as grandes massas – decisão de que decorrem os ganhos na economia – são tímidas as conquistas políticas e ainda mais tímida a disposição do governo de enfrentar o debate político, esperando que por ele falem os movimentos sociais, desarticulados e esvaziados, exatamente pelo exílio da política.
Ilustra essa inapetência política a forma como foi anunciada a queda dos juros pela qual clamavam sindicatos, empresários, a sociedade e a boa política (jamais nos esqueçamos dos discursos de José Alencar), apresentada que foi como mera medida econômica!
Ora, a queda dos juros foi decisão política da presidente, para a obediência da tecnoburocracia econômico-financeira e da banca, como foi sua decisão, política presidencial, determinar a correção no câmbio, o aumento do crédito pessoal e cutucar, com a ação dos bancos estatais, a banca refratária.
O governo, acossado pela crise de 2005, optou pela composição a mais ampla possível – elástica tanto do ponto de vista do espectro ideológico quanto do padrão ético – abrigando sob suas asas desde a esquerda (PSB, PT, PCdoB e PDT) a partidos como o PP de Maluf, o PTB de Roberto Jefferson e as armadilhas dos soi-disant evangélicos, enfim, uma malta que tem sua grande homenagem no velho e notório PMDB. A contra-prestação veio em termos, pois, se a governabilidade foi assegurada (mas não só como efeito dessa composição), a maioria no Congresso, hoje como ontem, é instável e rentista, sempre sujeita que é ao toma lá – dá cá.
De outra parte, essa geleia, informe e contraditória política e ideologicamente, privou o governo da ação das massas, que lhe são favoráveis, desmobilizou os sindicatos e não ensejou o surgimento de movimentos sociais e culturais capazes de trazer para a política os novos valores e as novas aspirações. Isolando-se, o governo corre o risco de imolar-se nas teias das transações da pequena política, a rainha do Parlamento de hoje, deixando a política para os ‘outros’.
Tal privação talvez explique a resistência de nossos governos em enfrentar a necessária reforma do Estado, que só nós podemos patrocinar, democratizando-o e descondicionando-o da destinação neoliberal para a qual foi moldado. Intocado, permanecerá o Estado de ontem herdado do tatcherismo e da razzia dos dois Fernandos: anti-povo, anti-nacional, o Estado da banca e dos privilégios, o Estado privatizado pelos interesses do capital, uma estrutura, portanto, que resiste à modernidade, à supremacia dos interesses nacionais e das grandes massas, alienado funcional e ideologicamente.
Ao não politizar seus avanços e conquistas, o governo de centro-esquerda renuncia à formulação de um corpus ideológico que daria significado e permanência às conquistas alcançadas, a melhor maneira de garantir no futuro a sobrevivência dos avanços de hoje.
No nosso silêncio fala a direita.
O povo, que apoia o governo que o beneficia, é alvo de uma guerra ideológica sistemática levada a cabo pelos grandes meios de comunicação de massa, ideologizados, partidarizados, reacionários. Trata-se, porém, de guerra sem conflito, pois um só exército vomita fogo. Este é o preço da inércia dos partidos, da inércia do que ainda resta de esquerda, esquecida de que, até para ocupar caixinhas no organograma do governo, é indispensável travar a luta política. Sem ela, ou perdemos o governo ou dele seremos apeados.
Veremos o que virá.