A guerra financeira contra a economia como um todo

A guerra económica de hoje não é da espécie daquela travada um século atrás entre o trabalho e os seus patrões industriais. As finanças movimentaram-se para capturar a economia como um todo, a indústria e a mineração, a infraestrutura pública (via privatizações) e agora até mesmo o sistema educacional. (Em 2012, a dívida de empréstimos a estudantes nos EUA excedeu a dívida de cartões de crédito em mais de US$1 milhão de milhões.) As armas nesta guerra financeira já não são forças militares. A táctica é sobrecarregar economias (governos, empresas e famílias) com dívida, sifonar o seu rendimento como serviço de dívida e então arrestar quando aos devedores faltam meios para pagá-la. Endividar governos dá aos credores uma alavanca para fisgar terra, infraestrutura pública e outras propriedades no domínio público. Endividar empresas permite aos credores apossarem-se de poupanças para pensões de empregados. E endividar o trabalho significa que já não é mais necessário contratar fura-greves para atacar organizadores sindicais e grevistas.

Os trabalhadores tornaram-se tão profundamente endividados com as suas hipotecas habitacionais, cartões de crédito e outras dívidas bancárias que receiam a greve ou mesmo queixarem-se acerca das condições de trabalho. Perder trabalho significa falhar pagamentos nas suas contas mensais, permitindo aos bancos elevar taxas de juro a níveis que costumavam ser considerados usurários. Assim a servidão da dívida (debt peonage) e o desemprego assomam no topo da escravidão salarial que foi o foco principal da guerra de classe um século atrás. E para coroar, lobbyistas dos cartões de crédito bancários reescreveram as leis da bancarrota a fim de restringir direitos dos devedores e os árbitros nomeados para decidir disputas levantadas por devedores e consumidores são sujeitos a veto por parte dos bancos e negócios que são os principais responsáveis por infligir danos.

O objectivo da guerra financeira não é simplesmente adquirir terra, recursos naturais e rendas de infraestruturas chave como na guerra militar; é, sim, centralizar o controle do credor sobre a sociedade. Em contraste com a promessa de reforma democrática de um século atrás para proteger uma classe de média, estamos a testemunhar uma regressão para um mundo de privilégio especial no qual alguém deve herdar riqueza a fim de evitar dívida e trabalho dependente.

A oligarquia financeira emergente procura comutar impostos dos bancos e seus principais clientes (imobiliário, recursos naturais em monopólios) para o trabalho. Dada a necessidade de ganhar o consentimento do eleitor, este objectivo é melhor alcançado pela redução de impostos para todos. O caminho mais fácil para isto é contrair despesa governamental, a começar pela Segurança Social, Medicare e Medicaid. Mas estes são os programas que desfrutam o mais forte apoio eleitoral. Este facto inspirou aquilo que pode ser chamado a Grande Mentira da nossa época: a pretensão de que governos só podem criar moeda para pagar o sector financeiro e que os beneficiários de programas sociais deveriam ser totalmente responsáveis pelo pagamento da Segurança Social, Medicare e Medicaid, não os ricos. A Grande Mentira é utilizada para reverter o conceito de tributação progressiva, transformando o sistema fiscal numa trama do sector financeiro para impor tributos à economia como um todo.

Lobbyistas financeiros descobriram rapidamente que o truque mais fácil para comutar o custo de programas sociais para o trabalho é ocultar novos impostos como taxas de utilização (user fees), utilizando as receitas para cortar impostos dos 1% da elite. Esta prestidigitação fiscal era o objectivo da Comissão Greenspan de 1983. Ela confundia o povo levando-o a pensar que orçamentos governamentais são como orçamentos familiares, ocultando o facto de que governos podem financiar seus gastos pela criação da sua própria moeda. Eles não têm de tomar emprestado, ou mesmo tributar (pelo menos, não tributar principalmente os 99%).

A guinada fiscal Greenspan jogou no facto de que a maior parte das pessoas vêem a necessidade de poupar para a sua própria aposentação. O engano cuidadosamente montado e bem subsidiado em acção é que a Segurança Social exige um pré financiamento semelhante – elevando a retenção salarial. O truque é convencer assalariados que é razoável tributá-los mais para pagar gastos sociais do governo, mas também para pedirem ao sector bancário para pagar uma taxa de utilização semelhante a fim de poupar antecipadamente para a próxima vez em que ele próprio precisar de salvamentos para cobrir as suas perdas. Também assimétrico é o facto de que ninguém sugere que o governo estabeleça um fundo para pagar guerras futuras, de modo a que aventuras futuras tais como o Iraque ou Afeganistão não “incorram num défice” que sobrecarregue o orçamento. Assim, o primeiro engano é tratar apenas a Segurança Social e os cuidados médicos como taxas de utilização. O segundo é agravar o assunto ao insistir em que tais taxas serão pagar com muita antecipação, pela pré poupança.

Não há nenhuma necessidade inerente de destacar qualquer área particular da despesa pública como causadora de um défice orçamental se este não for pré financiado. Isso é uma paródia de política de tributação progressiva apenas para obrigar trabalhadores cujos salários são inferiores a (no presente) US$105 mil a pagarem esta retenção salarial ao FICA (Federal Insurance Contributions Act), isentando ganhos mais elevados, ganhos de capital, rendimento rentista e lucros. A raison d’être para tributar os 99% para Segurança Social e Medicare é simplesmente evitar tributar a riqueza, pelo ataque ao rendimento dos baixos salários com uma taxa muito mais alta do que aquela dos ricos. Esta não é a forma como foi criada o imposto original sobre o rendimento nos EUA no seu início em 1913. Durante os seus primeiros anos apenas os mais ricos 1% da população tinham um retorno a registar. Havia poucos alçapões e os ganhos de capital eram tributados à mesma taxa do rendimento ganho.

O programa governamental de seguros do litoral, por exemplo, recentemente incorreu num passivo de US$1 milhão de milhões (trillion) para reconstruir as praias e lares privados devastados pelo Furacão Sandy. Por que este seguro subsidiado a baixa taxa comercial para a minoria rica que vive neste cenário de propriedade de alto risco ser tratado como despesa normal mas não a Segurança Social? Por que poupar antecipadamente através de um imposto salarial especial para pagar por estes programas que beneficia a população geral, mas não impor uma “taxa de utilização” semelhante para tributar por seguro de inundação para casas frente à praia ou para guerras? E já que falamos nisso, porque não poupar antecipadamente outros US$13 milhões de milhões para pagar o próximo salvamento da Wall Street quando a deflação da dívida provocar que outra crise drene o orçamento?

Mas sobre quem deveríamos nós cobrar estes impostos? Impor taxas de utilização para a reconstrução do litoral exigiria um imposto que caísse principalmente sobre os proprietários ricos de tais propriedades. O seu papel dominante ao financiar as campanhas eleitorais dos congressistas e senadores que redigem o código fiscal sugere a razão porque eles são capazes de evitar o pagamento antecipado do custo de reconstruir suas propriedades frente ao mar. Tal tributação é só para assalariados sobre rendimento de aposentações, não para os 1% sobre os seus próprios lares de férias e aposentação.

Com a não elevação dos impostos sobre a riqueza ou a utilização do banco central para monetizar despesa sobre algo que não seja o salvamento de bancos e a subsidiação do sector financeiro, o governo segue uma política pró credor. O favoritismo fiscal para a riqueza aprofunda o défice orçamental, forçando governos a tomarem mais empréstimos. Pagar juros sobre esta dívida desvia a receita de ser gasta em bens e serviços. Esta austeridade fiscal contrai mercados, reduzindo a arrecadação para a beira do incumprimento. Isto permite que possuidores de títulos tratem o governo do mesmo modo como os bancos tratam uma família em bancarrota, forçando o vendedor a liquidar activos – neste caso o domínio público se fossem as pratas da família, tal como o primeiro-ministro britânico Harold MacMillan caracterizou as liquidações privatizadoras de Margaret Thatcher.

Num viés de duplo pensamento orwelliano, estas privatizações são feitas em nome de mercados livres, apesar de ser imposta pelas instituições financeiras globais cujos administradores não são democraticamente eleitos. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a burocracia da UE trata governos como bancos tratam proprietários de casas incapazes de pagar sua hipoteca: pelo arresto. À Grécia, por exemplo, disseram-lhe para começar a liquidar os principais sítios turísticos, portos, ilhas, direitos de exploração de gás no offshore, sistemas de águas e esgotos, estradas e outras propriedades.

Governos soberanos são, em princípio, livres de tal pressão. É isso que os faz soberanos. Eles não são obrigados a regularizar dívidas públicas e défices orçamentais através da liquidação de activos. Eles não precisam tomar emprestado mais divisa interna; podem criá-la. Este auto-financiamento mantém o património nacional em mãos públicas ao invés de entregá-lo a compradores privados, ou ter de assumir empréstimos junto a banco e possuidores de títulos.
31/Dezembro/2012

 

A continuar.

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Esta é o segundo artigo de uma série. A primeira parte encontra-s em http://resistir.info/crise/hudson_28dez12.html

[*] O livro The Bubble and Beyond resume as teorias económicas de Michael Hudson.   O seu livro mais recente é Finance Capitalism and Its Discontents . O autor contribuiu para Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion .   [email protected]

O original encontra-se em www.counterpunch.org/2012/12/31/the-financial-war-against-the-economy-at-large/. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .