Hoje o discurso quase unânime é o de oposição aos chamados “agrotóxicos”. Talvez os antigos alquimistas da idade média, perseguidos como bruxos, tivessem sofrido menos aversão do que os químicos da atualidade. Aliás, o termo “químico” passou a ser um vocábulo maldito. Quanta injustiça!

A toxidez deste debate, levado adiante pelo multiculturalismo ambiental, está, mais uma vez, na dose. Setores da esquerda, desencantados com a dificuldade em se elevar a consciência dos trabalhadores rurais, alçando-os do status de camponeses para operários do campo, exaltam agora a “consciência camponesa” em detrimento da “consciência operária” e abandonam por completo o projeto coletivista das cooperativas modernas para apostar na dispersão da pequena propriedade privada, de cunho familiar. Um retrocesso.

Nessa empreitada, seduzem incautos na mitificação da natureza e na romantização da vida camponesa, imune às contaminações da urbe. Querem voltar a tempos imemoriais, iludidos num fantasioso conceito de harmonia plena entre homem e natureza.

Se vivessem dez mil anos atrás, para manterem-se coerentes com o seu discurso, estes mitificadores da natureza teriam que se opor à própria invenção da agricultura e defender a continuidade do sistema primitivo de coleta e caça. Por mais incrível que possa parecer, há muitos que semeiam abertamente essa ideia de nos fazer regressar ao neolítico.

Óbvio que com o desenvolvimento da agricultura “efeitos colaterais” surgiram. Os povos foram abandonando a vida nômade e se sedentarizaram. Começou aí o surgimento dos primeiros embriões do que são hoje nossas cidades urbanas – outro vocábulo maldito para aqueles que são capazes até de confundir sociedade urbana com capitalismo. A agricultura, assim, contribuiu com o rompimento daquela vida errante e propiciou as populações a viverem mais concentradas, facilitando uma maior disseminação de várias doenças que puderam se difundir mais rapidamente e se tornaram mais virulentas. Pergunta: o desenvolvimento da agricultura foi, então, uma catástrofe para a humanidade?

Muito pelo contrário. Nossa alimentação foi melhorada para fazer frente a estas enfermidades – juntamente com o elevado número de mutações favoráveis que incrementaram o ritmo genético de nossas últimas 400 gerações, acelerado entre 10 e 100 vezes, de acordo com pesquisadores no “Proceedings of the National Academy of Sciences” dos Estados Unidos. Isso sem falar da divisão social do trabalho que permitiu avanços fantásticos das forças produtivas. Mas há quem insiste em olhar pelo lado negativo.

Hoje o discurso em voga contra os “agrotóxicos” e os organismos geneticamente modificados parece ecoar da idade da pedra lascada, tal como o bramido de um mamute. Um absurdo completo que vai intoxicando boa parte da esquerda brasileira.

Mais coerente é combater o uso incorreto ou indiscriminado de um insumo químico (que aí sim, se tornará “agrotóxico”), mas jamais ser contra sua utilização em si (desde que testado e aprovado por órgãos competentes).

O mais novo vilão entre os defensivos químicos eleito pelos adeptos da agricultura campesina é o herbicida da Monsanto, Roundup. Roundup é o nome comercial do glifosato, cuja classe toxicológica é, por incrível que pareça, “praticamente atóxico”, ou seja, tarja verde.

Claro que isso não permite que o aplicador deixe de usar equipamento de proteção individual (como obriga a legislação), desrespeite o período de carência, manipule o defensivo perto de outras pessoas, mananciais ou leitos de rios, entre outras precauções. Mas se forem acatados todos os cuidados recomendados, este e outros defensivos químicos são grandes aliados da agricultura e dos agricultores.

Um médico prescreve um medicamento (químico) a um paciente, admitindo que sua receita será seguida à risca. Em doses acima do indicado, o remédio pode vir a se tornar um veneno e até matar o enfermo desobediente. O agrônomo também vai prescrever um defensivo (químico) ao agricultor, admitindo que seu receituário agronômico será levado à sério. Em doses acima do recomendado, o defensivo químico pode vir a se tornar agrotóxico e até matar o agricultor teimoso. O que fazer? Proibir todos os medicamentos existentes e voltarmos à época dos chás à base de ervas e sementes que eram receitados pelos anciãos? De igual maneira, vamos proibir todos os defensivos químicos e combater pragas e doenças agrícolas à base do controle natural?

Curiosamente, não há sequer uma única denúncia que seja por parte dos mitificadores do campesinato contra o trabalho familiar não remunerado, sem carteira assinada, usando trabalho infantil e expondo trabalhadores ao cabo da enxada debaixo do sol escaldante dos trópicos. Muito menos há um comentário qualquer sobre a incidência de câncer de pele, picadas de cobra, lordoses e escolioses em trabalhadores que combatem plantas daninhas na base da capina, um dos trabalhos mais degradantes e penosos da agricultura.

Ou o glifosato, e outros defensivos químicos, são de fato veneno e devem ser banidos – e consequentemente funcionários da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Ministério da Agricultura e outros órgãos, são criminosos por liberarem esses compostos tóxicos para a população indefesa; ou pelo contrário, são produtos que, se manejados corretamente, auxiliam na produção e os delinquentes são aqueles que de maneira irresponsável adotam a posição de ludistas agrícolas.

O “xis” da questão não é se combater a inovação tecnológica. Mas apropriar-se dela em um contexto progressista. Por que não uma campanha em defesa dos defensivos químicos genéricos (assim como os genéricos da indústria farmacêutica) que liberte, sobretudo, os pequenos agricultores das amarras das multinacionais? Por que não se priorizar a capacitação, orientação e fiscalização dos trabalhadores rurais sobre as formas e métodos de aplicação destes defensivos? Isso tudo exige uma maior presença do Estado no setor.

Outra inovação vilanizada é o chamado transgênico, uma espécie de “Frankenstein” aos olhos da agroecologia xiita. Ao mesmo tempo em que idolatram as chamadas sementes crioulas de milho, que num passado não muito distante foram melhoradas geneticamente pelos astecas e maias; demonizam os cientistas que na atualidade tentam tornar essa espécie mais produtiva, resistente a pragas, mas ricas em vitaminas, etc. Ou seja, tudo que foge ao “natural” é tóxico para os mitificadores da natureza. Esquecem que o próprio milho “nativo” foi criado pelo homem.

Um dos desafios do presente momento é capitalizar o pequeno agricultor, incorporando-o na cadeia produtiva do agronegócio moderno. O desafio é torná-lo grande na produção, dotando-o de crédito para investir em insumos, benfeitorias, maquinário, mão de obra. O desafio é dinamizar as forças produtivas no campo. O desafio é persistir no caminho da superação (e não da elevação) da contradição entre cidade e campo. O desafio e avançar no tempo e não voltar à pré-história.

A questão agrária, agrícola e ambiental não pode ser pautada apenas pela classe média urbana em ascensão. Esse debate interessa a toda nação e deve ser interpretado à luz do marxismo, antídoto para muitos venenos que vão sendo disseminados na contemporaneidade.

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Engenheiro Agrônomo, mestre em Entomologia e doutor em Fitotecnia (Melhoramento Genético de Plantas). Professor do Instituto Federal Fluminense (IFF)