Tinha a intenção de dedicar este artigo à eleição de José Graziano ao cargo de diretor-geral da FAO. A escolha de Graziano, idealizador e executor inicial do Fome Zero, que se tornou uma marca internacional do governo Lula, de certa forma compensa um pouco as escolhas para as chefias da ONU e do FMI, sobretudo a desse último. A condução de mais um cidadão europeu, ainda que agora uma mulher, à direção do Fundo não apenas significa a perpetuação da hegemonia do Velho Continente nesse órgão. Ela certamente prenuncia um processo análogo, na não muito distante sucessão no Banco Mundial. A reafirmação do precedente europeu não deixará de ser invocada por Washington para manter o controle da maior agência internacional de apoio ao desenvolvimento.

Para o Brasil, que busca uma presença crescente no continente africano e na América Latina e Caribe, a sucessão no Banco Mundial é de grande interesse e não podemos estar ausentes das negociações a respeito. Tudo isso torna a eleição de Graziano para o mais alto posto já ocupado por um brasileiro no sistema ONU (em termos reais e não puramente formais) de singular importância. É uma cunha que logramos abrir na governança mundial, circunstância que devemos aproveitar por meio de apoio político e financeiro, sobretudo, aos programas com que estejamos mais identificados.

Mas uma reflexão mais profunda sobre o significado da vitória brasileira na FAO terá de ficar para outra oportunidade. Nesta primeira ocasião que tenho de escrever para a CartaCapital depois do falecimento de Itamar Franco, não posso deixar de registrar alguns fatos que marcaram sua gestão em matéria de política externa. Com justiça, o nome de Itamar será lembrado como o de um político digno que completou a transição democrática no Brasil, logo após o impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto popular em quase 30 anos. E que soube, com humildade, mas também com sentido de humanidade, garantir as condições que permitiram alcançar a estabilidade monetária, uma conquista que até hoje os brasileiros celebram e prezam.

Mas Itamar tomou também iniciativas importantes na área diplomática. Foi durante o seu governo que o Mercosul ganhou institucionalidade plena, com o Protocolo de Ouro Preto. Ouvindo vozes por vezes contraditórias, Itamar soube conduzir com firmeza o processo que culminou no estabelecimento da Tarifa Externa Comum (TEC), base da União Aduaneira. Sonhou estender a integração a toda a América do Sul, propondo, em uma Cúpula do Grupo do Rio em Santiago do Chile, em fins de 1993, a criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana, precursora da Unasul.

Poucos se recordam, mas foi também no governo Itamar o lançamento, em Brasília, da parceria estratégica com a China, durante a primeira visita de Estado do então presidente Jiang Zemin. Talvez a sua mais importante iniciativa no plano internacional tenha sido com relação a Cuba. Itamar compreendeu perfeitamente o anacronismo da política de isolamento imposto ao regime cubano e apontou, em discurso na Assembleia Geral da OEA, em Belém do Pará, em meados de l994, os inconvenientes dessa atitude obtusa. Seriam necessários 15 anos para que a organização interamericana deixasse sem efeito a suspensão imposta à ilha na época da Guerra Fria. Mas a atitude de abertura, que chamou de “dinâmica da cooperação” (no lugar da “estática da confrontação”), não ficou só na retórica. Em um gesto ousado, dadas as condições da época, Itamar escreveu a Fidel Castro, exortando-o a aderir ao Tratado de Tlatelolco sobre desarmamento nuclear na América Latina e Caribe, o que o dirigente cubano viria a fazer poucos meses depois.

Na mesma correspondência – da qual tive a honra de ser portador –, Itamar conclamou Fidel a fazer algum gesto concreto em relação a direitos humanos. E coube a mim, naquela mesma ocasião, fazer o anúncio da decisão do governo cubano de convidar o Alto Comissário das Nações Unidas, o equatoriano Ayala Lasso, para visitar o país, o que igualmente viria a ocorrer pouco tempo depois. Essa visita iniciou um diálogo que, em outras circunstâncias, poderia ter trazido resultados. Infelizmente, episódios subsequentes, como as incursões de aviões de cubanos exilados em Miami no espaço aéreo de Cuba, impediram que a dinâmica se desenvolvesse. A inclusão de Cuba no “eixo do mal” e sua designação por Washington como um dos países patrocinadores do “terrorismo internacional” inviabilizaram a continuidade dessas tentativas de diálogo.

O tempo de Itamar Franco era curto e suas iniciativas não puderam se desenvolver plenamente. Mas o sentido de dignidade e independência que conferiu às nossas ações no plano externo deixariam sementes que viriam a frutificar mais tarde. É mais que justo homenageá-lo também por isso.

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Fonte: CartaCapital