Visitei a Albânia durante todo o mês de abril, antes de seguir viagem para a Iugoslávia (Croácia, Sérvia, Montenegro e principalmente Kosovo), Bulgária e Romênia, à cata de material para um livro.
Eu já conhecia o país, onde morei cinco anos, de 1974 a 1979, trabalhando como jornalista na emissão da Rádio Tirana para o Brasil. Tenho ali bons amigos e domino razoavelmente a língua albanesa.
Ainda assim, confesso que viajei com uma pontinha de apreensão. O noticiário publicado na imprensa brasileira dava o que pensar a quem, como eu, se considera um admirador da experiência albanesa. De um lado, vinham as notícias de reformas do tipo gorbacheviano, aberturas para investimentos multinacionais, restauração da propriedade privada etc. De outro, o anúncio de protestos populares, manifestações contra o governo, bombas, estado de emergência, policiamento reforçado, fuzilamentos, enforcamentos, dissidentes arrastados atrás de tratores… um horror.

Como não nasci ontem, dava meus descontos, tendo em conta a perfídia da imprensa burguesa. Mas, como também não nasci anteontem, mantinha prudentemente uma pulga atrás da orelha. Afinal, diz o provérbio que onde há fumaça há fogo. E fumaça é o que não faltava, nem falta, no noticiário sobre o "País das Águias".

Foi com essa disposição que decidi escrever um livro-reportagem sobre a Albânia nos anos 1990, no contexto da perestroika e da maré capitalista no Leste Europeu. Resolvi dedicá-lo a Galileu Galilei – símbolo da convicção científica, capaz de proclamar o movimento da Terra em torno do Sol mesmo quando o mundo inteiro, o bom-senso e a Santa Inquisição diziam o contrário. Mas adotei também um padroeiro, São Tomé, o apóstolo da dúvida, que é a mãe da convicção verdadeiramente científica. Fui lá ver para crer.

Durante 33 dias, percorri a Albânia desde Butrinti, no extremo sul, fronteira com a Grécia, até Shkodra, na extremidade norte – onde, segundo a grande imprensa, aconteceram manifestações de protesto. Estive também na região de Dropull, habitada por uma minoria grega, onde, sempre segundo o noticiário internacional, quatro jovens que tentaram fugir do país tinham sido amarrados a tratores e arrastados até morrer. Conversei com centenas, talvez milhares de albaneses, sem qualquer restrição, controle, ou patrulha, desde Foto Çami (pronuncia-se "Tchami"), o segundo homem, depois de Ramiz Alia, na direção do Partido do Trabalho da Albânia, até simples operários, camponeses, intelectuais, estudantes, veteranos da guerrilha contra os nazistas, crianças, todo mundo. Almocei com o jovem professor de economia Tanas Nano, que a Agência Reuter havia promovido a ministro da Economia antes de colocar em sua boca um estapafúrdio anúncio de investimentos estrangeiros na Albânia.

Mais de 20 quilos de material entre livros, anotações, fitas gravadas

Visitei fábricas, minas, cooperativas agrícolas, escolas de nível médio e superior. Assisti a uma reunião de base do PTA, agora aberta à participação de qualquer cidadão sem partido. Presenciei a eleição do diretor de uma empresa, pelo voto direto e secreto, ao fim de uma acalorada assembléia em que os trabalhadores apresentaram cinco candidaturas. Recolhi mais de 20 quilos de material, entre livros e folhetos, recortes de jornais e revistas, anotações e fitas gravadas. Fiz até uma pesquisa circunstanciada sobre as cabras, que devem merecer um capítulo à parte no livro, dada a fama que a Albânia tem, por aqui, como "o país das cabras".

Percorri meu roteiro com os olhos bem abertos e os ouvidos atentos, buscando qualquer confirmação, ainda que parcial e sutil, do que havia lido no Brasil. Sou um amigo da Albânia e dos albaneses (ninguém mora cinco anos numa terra sem criar uma relação emocional, de apego ou rejeição), mas sou também um jornalista, que encara a bisbilhotice como uma saudável virtude profissional.
Estou, portanto, bastante qualificado para dizer o que acontece por aquelas terras. E é com toda honestidade profissional, temperada por uma pontinha de prazer, que desminto, de cabo a rabo, categoricamente, todo o noticiário agourento que vem sendo publicado, sobre o fim iminente do socialismo albanês.

As transformações se estendem pela economia, a sociedade, as relações familiares, a organização estatal e política, a vida do PTA, o controle das massas operárias e camponesas sobre o país, a educação, a cultura, a imprensa, as relações internacionais… Não haveria como discorrer, neste artigo, sobre o conteúdo desse processo. É assunto que exige um livro, que já está no forno e prometo para breve.

Porém é necessário, diante do bombardeio realizado pelos meios de comunicação, deixar claras umas duas ou três coisas que vi com meus próprios olhos e ouvi com meus próprios ouvidos, em contato direto, sem tradutor nem intermediário, com albaneses de todo tipo.
Ramiz Alia não faz bravata quando recusa a opção dos vizinhos do Leste

A primeira é que não existe, nem na direção do PTA, nem na base, nem nas massas trabalhadoras albanesas a menor intenção de abandonar ou "amolecer" os princípios do socialismo científico. Ramiz Alia não faz bravata quando afirma que "não se manifestarão na Albânia os conhecidos fenômenos do Leste".

A terra de Enver Hoxha rompeu com a URSS e o seu bloco numa época em que isso implicava sacrifícios pesadíssimos e a própria expressão "viver de ervas" estava bem próxima da realidade. Sustentou a polêmica com os soviéticos ao longo de três décadas, numa atitude que muita gente achava quixotesca, já que a URSS aparecia como superpotência todo-poderosa, com uma esfera de influência que abarcava metade do planeta. Não teria qualquer sentido retroceder nessa trajetória justamente hoje, quando o colosso revisionista revela a todo mundo os seus pés de barro, a sua derrota e a sua crise mortal.

As transformações em curso na Albânia são extensas e profundas, porém sempre no rumo do avanço socialista, nunca do retorno, ainda que parcial ou disfarçado, ao velho regime de exploração do homem pelo homem. Os princípios da independência nacional, da propriedade social dos meios de produção do papel dirigente da classe operária e seu partido permanecem intactos. É claro que isso desaponta muita gente, no Ocidente e no Oriente, mas nem por isso deixa de ser verdade.

Uma segunda questão é o apoio popular a esse caminho. Ele já me impressionava em 1974-79, quando a economia albanesa era mais atrasada e o fosso em relação à "sociedade de consumo" era bem maior. Hoje, parece-me ainda mais sólido, para não dizer inexpugnável.

Quando eu estava em Tirana, cruzei e fiz amizade com uma equipe de reportagem da TV Globo, que chegara há quatro dias. Eram três brasileiros, residentes em Londres, curtidos em muitas andanças por Varsóvia, Budapeste, Bucareste, Sofia, Praga, Berlim e companhia. Os três estavam honestamente embasbacados com o que viam e ouviam na Albânia. Sérgio, o cameraman, foi o mais enfático: "Eu cheguei aqui a fim de detonar. Para mim era o último país do Leste que não tinha caído e que tinha de cair. Mas quanto mais eu penso nisso aqui mais eu vejo que não é isso. Será possível que são eles que estão certos?"

Durante oito dias a equipe global, com o jornalista Pedro Bial à frente, procurou diligentemente os sintomas de rebelião, ou pelo menos descontentamento, que eles conheciam tão bem de suas outras reportagens no Leste. Entrevistaram dúzias e dúzias de albaneses, com tradutor, diretamente, em inglês (ficaram admirados com a quantidade de pessoas que dominam línguas estrangeiras), na Universidade, na rua. Como Tirana tem apenas 300 mil habitantes, viraram a cidade pelo avesso, em vão. Só em sua penúltima noite albanesa, na saída de um restaurante, foram abordados por quatro pessoas que se diziam descontentes com o regime e à espera (sem muito entusiasmo) de uma reviravolta à moda do Leste. Bial confessou-me que estava aliviado depois desse encontro, por ver que, pelo menos, não havia unanimidade. E a Rede Globo, conforme eu soube mais tarde, deu o esperado destaque para os dissidentes albaneses…

De onde saem então as notícias que lemos aqui no Brasil, e pelo mundo afora? Que é feito dos protestos que as povoam?

Aqui devo recorrer de novo a minha experiência pessoal. Deixei Tirana no dia 2 de maio, e segui viagem, através da Iugoslávia. E foi ali que tomei conhecimento de um despacho da agência iugoslava de notícias, a "Tanjug", datado do dia 8, com um título sugestivo, "Tumultos na Albânia", seguido de maroto ponto de interrogação. O despacho cita como fonte membros de uma organização grega de extrema direita, a "Liga do Épiro Norte", asseverando: "eles apresentaram detalhes que não deixam lugar a dúvida". Diz que Tirana, em Shkodra e outras cidades, durante as últimas semanas não se passou um dia sem que povo saísse às ruas para manifestar sua insatisfação com o regime de Ramiz Alia. (…) Dezenas de manifestantes presos e espancados (…) Situação de emergência na fronteira albanesa (…) Onda de fugas para a Grécia.

E a "Tanjug" prossegue: "Nesse país hermeticamente fechado, apesar de tudo está acontecendo algo de extraordinário. (…) Tempos atrás colocaram bombas no monumento a Stalin em Tirana e na maior livraria da capital albanesa. (…) Stalin apesar de tudo se manteve no pedestal, mas a livraria foi danificada. (…) A situação é tensa em Elbasan. (…) Os jovens são os primeiros a erguer sua voz de protesto, exigindo reformas. (…) A direção albanesa está dividida. (…) Dentro da direção albanesa eclodiu um conflito aberto. (…) Ramiz Alia encarcerou Nexhmie Hoxha (a viúva de Enver; pronuncia-se Nedjmie Hodja) para conter sua rede insubordinada”.

Acontece que eu acabara de estar precisamente em Tirana, Shkodra, Elbasan, na fronteira com a Grécia. Passara incontáveis vezes pela estátua de Stalin e fizera várias visitas à livraria Flora, a última delas precisamente no dia 29 de abril. Conversara, sem exagero, com centenas de jovens. E vira, pelo menos na televisão, a companheira Nexhmie solta na rua e exercendo sua função de presidenta da Frente Democrática da Albânia. Fica, portanto, meu testemunho pessoal, categórico e sem qualquer margem para dúvidas: a "Tanjug" está mentindo.

Quem tem um mínimo de intimidade com os meios de comunicação sabe como é comum a manipulação de um fato. Notícias distorcidas, hipertrofiadas, fantasiadas, acompanhadas de comentários tendenciosos, são coisa de todos os dias. Mas devo dizer que raríssimas vezes na minha experiência deparei-me com a mentira nua e crua, cabeluda, desavergonhada, inventada de fio a pavio, como no noticiário da "Tanjug" sobre a Albânia. Por sua vez, as agências internacionais e os órgãos de imprensa interessados apóiam-se na "Tanjug" como fonte…

Fica aqui o conselho: sempre que lerem alguma coisa sobre a Albânia, confiram primeiro se a fonte é a "Tanjug" e, se for, não caiam nessa. Entra aí um interesse especialíssimo dos círculos governantes de Belgrado, que consideram a difamação da Albânia como um dos meios de manter sob controle a explosiva situação de Kosovo – a região iugoslava habitada majoritariamente por albaneses. E entra também um dos piores exemplos de desonestidade jornalística da atualidade.

É claro que o terremoto do Leste tem repercutido fortemente na Albânia, como em todo o planeta. Os meios de informação do país abrem generoso espaço para o assunto. Além disso, os albaneses têm livre acesso à televisão italiana, iugoslava ou grega. No momento em que andei por lá, comentava-se bastante, por exemplo, a nova versão do Massacre de Katin apresentada por Gorbachev.

No entanto, diante de toda aquela reviravolta fantástica, a primeira reação do albanês comum foi: "Nós estávamos certos. Aí está a prova de que Enver Hoxha (pronuncia-se Hodja) tinha razão”.
Para se entender essa atitude, generalizada, natural e espontânea, é preciso levar em conta o passado daquele pequenino país balcânico pouco maior que o estado de Alagoas, cheio de montanhas escarpadas e marcas de uma civilização antiquíssima.

Antes da revolução que coincidiu com a Guerra Mundial, a Albânia viveu quase ininterruptamente cinco séculos de ocupação estrangeira, primeiro dos turcos otomanos, depois dos fascistas italianos e dos nazistas alemães. Os albaneses só sobreviveram enquanto nação, em condições tão adversas, graça a um profundo, indomável, teimoso sentimento patriótico. Em 1941, com a fundação do Partido Comunista, esse sentimento transformou-se em ação revolucionária: um exército guerrilheiro, que chegou a incorporar mais de 7% do total da população, expulsou os ocupantes sem que um só soldado aliado, soviético, inglês ou americano, tivesse pisado em terras albanesas. Foi o primeiro teste, duríssimo, daquilo que mais tarde o PTA transformaria num princípio – o princípio de "contar com as próprias forças".

O segundo teste viria pouco mais tarde, em 1947-48. A Iugoslávia de Joseph Broz Tito tentou anexar a Albânia, transformando-a em sua sétima república federada, dentro de uma linha geral que incluía o rompimento com a URSS de Stalin, a busca de apoio no bloco anglo-norte-americano e um tipo de sistema econômico-social, mais tarde batizado de "autogestão", bem diferente do socialismo. Mais uma vez a terra de Enver Hoxha foi posta à prova. E mais uma vez resistiu.

Em 1956-1961 aconteceu o terceiro teste – sem dúvida o mais difícil de todos. Dessa vez a própria União Soviética, a pátria da Revolução de Outubro, o centro do bloco socialista e do movimento comunista mundial, sob a direção de Kruschev tentava submeter os albaneses. O confronto, entre uma linha geral revisionista e outra revolucionária, logo degenerou em pressões abertas. Em 1961 Moscou suspendeu toda ajuda técnica, econômica e militar à Albânia, retirou seus especialistas do país, cortou as bolsas dos estudantes albaneses na URSS e por fim rompeu relações diplomáticas com Tirana.

Na época, Kruschev chegou a anunciar que em questão de semanas a direção albanesa se venderia "por trinta dinheiros" ao imperialismo americano. Enver respondeu que os albaneses preferiam viver de ervas a abandonar os princípios marxistas-leninistas. Passaram as semanas, os meses, os anos, e ficou claro quem tinha razão. Esta foi, por assim dizer, a prova de fogo do socialismo albanês. Depois dela, o enfrentamento com o revisionismo chinês, nos anos 1970, foi quase a repetição de um caminho já traçado – e sabe-se, desde O 18 Brumário de Marx, que quando a História se repete o que era tragédia vira farsa. Eu morava em Tirana na época e lembro como os albaneses troçavam das "chinesices" de Pequim.

O fato é que há pelo menos 30 anos a Albânia, partido e povo, estava convencida de que o caminho dos "revisionistas kruschevistas" conduziria precisamente ao capitalismo nu e cru. Existem incontáveis toneladas de material escrito atestando essa convicção. Se houve alguma surpresa, foi apenas pela maneira fulminante, ruidosa e claríssima com que a profecia se realizou.

Isso não quer dizer que os albaneses não se interessem pelo que acontece na Europa Oriental. Pelo contrário. Senti, nas minhas conversas, que eles estão dissecando minuciosamente os acontecimentos do Leste, em busca de ensinamentos. Seria talvez muito cômodo resumir tudo num comentário cheio de auto-satisfação: "Eu não disse?". Mas a atitude em Tirana é outra. Agora, que a linha kruschevista chegou, por assim dizer, ao seu desfecho, eles passam numa peneira cada vez mais fina toda a experiência desses 30 anos, e também a anterior.

Ramiz Alia, falando na 9ª Reunião Plenária do CC do PTA (janeiro de 1990), comentava: "Não devemos nos contentar com o fato de que tudo previmos e demos nossa opinião. Agora, devemos extrair lições do que aconteceu no Leste. Devemos nos colocar a pergunta e buscar a resposta: por que surgiu o revisionismo? quais as suas causas objetivas e subjetivas, quais os atrasos e as precipitações, os erros e as concessões? A análise deve se estender também aos processos ocorridos na União Soviética durante um longo período de prática da construção socialista naquele país”.

Um dos meus interlocutores mais categorizados na direção do PTA formulou de maneira ainda mais enfática o sentido desse meticuloso garimpo: "Queremos saber o que foi que deu errado no socialismo deles".

A interrogação não tem sentido acadêmico. Seu objetivo é tirar lições para o próprio socialismo albanês, que vive uma fase de efervescência e mudança comparável à dos anos 1960, após o rompimento com Moscou. De certa maneira, pode-se dizer que a Albânia está vivendo, sobretudo a partir de janeiro deste ano, uma "perestroika ao contrário": enquanto a de Gorbachev e companhia se encaminha nitidamente para o completo restabelecimento da sociedade capitalista à moda ocidental, a "antiperestroika" albanesa, com os pés fincados nos princípios marxistas-leninistas, passa em revista com olho crítico todos os aspectos da vida do país precisamente para defender e impulsionar a construção socialista.

* Bernardo Joffily, 9 de junho de 1990.

EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 35, 36, 37, 38, 39