Há uma imagem que serve como uma luva para a Comuna de Paris. É a da parábola do "Purgatório" no livro A Divina Comédia do poeta italiano Dante. Fala do homem que viaja pela noite com uma lanterna presa às costas, que não brilha para ele, porém, ilumina o caminho dos que vêm atrás.
Derrotada, massacrada, difamada… a Comuna de Paris de 1871 parece, e é, o fim melancólico de uma época revolucionária. As revoluções do século XIX – nas quais o proletariado foi a força mais ativa – destruíram a monarquia absolutista, mas também se caracterizaram pelas derrotas populares (1794) e da classe operária (1830 e 1848). Conquistada a democracia até o limite que interessava à burguesia, esta classe, a vitoriosa, deixou a revolução de lado e impediu a partir daí o progresso das liberdades democráticas para os aliados de véspera.

A partir de 1850 e até 1875, a burguesia européia viveu seu apogeu, quando o capitalismo experimentou um crescimento espantoso. Sua expansão, se estendendo além das fronteiras nacionais, criou pela primeira vez um mercado internacional. A euforia capitalista na era do que se chamou liberalismo ia durar pouco. Mas, naquele instante, nascia de uma sensação de solidez, de crescimento ininterrupto, constante, que caracterizou aqueles anos, que se combinava com a idéia de que os trabalhadores estavam também, para sempre, "domesticados".

A guerra civil de 1870-71 e a Comuna proletária de Paris entram nesse quadro como um ato retardatário, como um fantasma fora de moda, que se levanta desajeitadamente do passado. Como um eco atrasado das revoluções de 1848-49, coisa "antiga" em confronto com a "modernidade". Na Comuna de Paris os cronistas burgueses não viram nada daquelas belas e "generosas" revoluções de antes. Foi pintada como um espectro medonho, que causava terror.

De fato, ela chegava tarde como parte das revoluções burguesas e era precoce como revolução proletária. Marx mesmo sublinhou este segundo aspecto ao chamá-lo de "assalto ao céu".
Essa ambiguidade contamina por inteiro os acontecimentos relativos à Comuna de Paris. Na consciência dos que a realizaram, ela estava muito mais próxima das revoluções anteriores. Seus protagonistas buscavam nelas suas inspirações, suas palavras-de-ordem e formas organizativas. Esse fenômeno – buscar no passado explicações e justificativas para novos acontecimentos – foi desvendado por Marx numa das mais brilhantes passagens de O 18 Brumário de Luis Bonaparte, em 1851, portanto, vinte anos antes da Comuna:

"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar -se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada”.

Marx mostra seu profundo conhecimento do espírito humano nesse texto que é, a priori, um retrato do aspecto subjetivo da Comuna.

É que aquele "fracasso", aquela "derrota" tinha o caráter das verdadeiras revoluções. Ao mesmo tempo que encerrava todo um período (e encerrava também fisicamente porque a burguesia não poupou os comunardos, trucidando toda uma geração de lideranças revolucionárias), a Comuna, mesmo sem o saber (o homem da lanterna nas costas, na escuridão), abria caminho, lançava luz para os que viriam depois, ela foi o ponto de partida para uma nova época, a época das revoluções proletárias.

Quem se atreveria a essa conclusão diante das pilhas de cadáveres dos milhares de homens e mulheres que haviam realizado a Comuna? Somente quem fosse capaz de afastar os sinais enganosos das aparências e enxergar o significado profundo da realidade. Os exércitos da França e da Alemanha, ferozes inimigos até então, uniram-se para destruir a Comuna. Marx percebeu de imediato: com esse gesto, a burguesia européia identificava na classe operária o seu "inimigo comum". Ou seja, ao arrasar a Comuna, ao tentar eliminar até a memória dela, ao negá-la, a burguesia anunciava ao mundo que reconhecia (e com que horror!) o seu oposto, o seu antagonista histórico. A afirmação de um é a negação do outro, pois não?

Ao levar a França à guerra e à derrota ante a Alemanha em 1870, a burguesia desvendou inteiramente sua capacidade para conduzir o país ao progresso e à democracia. Por isso, quando proclama e reimplanta a república, a classe operária parisiense se apresenta como a melhor alternativa para o povo francês. A derrota de 1848 e o convencimento de que nenhuma melhoria poderia vir para o proletariado dentro da república burguesa reforçavam essa convicção. Por isso, a Comuna teve de reconhecer, desde o primeiro momento, que, chegando ao poder, a classe operária não poderia continuar governando com a velha máquina do Estado. A destruição do Estado se impôs como tarefa imediata.

Nada mais significativo dessa disposição do que o fato de o primeiro decreto da Comuna ter sido a extinção do exército permanente e sua substituição pela Guarda Nacional, formada por operários em sua maioria. Era a perspectiva do "povo em armas". A desmobilização da polícia política completava essa decisão de eliminar os pilares de força física do Estado burguês. E a separação entre Igreja e Estado, eliminação do "poder dos padres", teve o objetivo de destruir o alicerce ideológico que sustentava a máquina estatal repressiva e justificava a dominação de classe.

Criado para servir a comunidade, historicamente o Estado tem se convertido em seu opressor. Clarividente, a Comuna acertou o coração da burocracia estatal, esse monstro de muitos braços que sustenta a opressão de classe a partir do aparelho de Estado. Aplicou-lhe o remédio infalível: a) sufrágio universal – todos os cargos administrativos, judiciais e do magistério foram preenchidos através de eleições, tendo os eleitores o direito de revogar a qualquer momento o mandato concedido; b) os mandatos eram imperativos, quer dizer, os eleitos deviam praticar rigorosamente o programa de ação definido pelos eleitores; c) todos os funcionários, graduados ou modestos, passavam a receber salário de operário, com pequena diferença entre os mais altos e os mais baixos, acabando com a luta por cargos e a corrida ao empreguismo.

Caminhando no escuro com a lanterna para trás, os comunardos iluminavam os passos das revoluções futuras. Iam ao cerne da questão vital para os socialistas revolucionários – a destruição do Estado. E o que está implícito na forma de governo proposta pela Comuna não é apenas a supressão do Estado burguês, mas a substituição do Estado pela livre associação dos trabalhadores. Sua forma organizativa é a de um Conselho composto por conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos de Paris, sujeitos a substituição a qualquer momento. Não era um órgão parlamentar, mas uma corporação de trabalho executiva e legislativa ao mesmo tempo.

A exemplo de Paris, cada cidade da França, mesmo as menores e as zonas rurais, devia ter sua própria Comuna. Em toda parte o antigo governo centralizado devia ceder lugar ao governo dos produtores pelos produtores. Havia uma engenhosidade verdadeiramente revolucionária nesse sistema ao mesmo tempo centralizado localmente e descentralizado nacionalmente, sólido na ação executiva, mas constantemente aberto às mudanças, e cujo resultado mais notável seria converter a população em protagonista central da ação de governar.

"Não se tratava de destruir a unidade da nação, mas, ao contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa realidade ao destruir o poder estatal, que pretendia ser a encarnação daquela unidade, independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo não era mais que uma excrescência parasitária". São palavras de Marx, que disse também que a Comuna era uma forma política perfeitamente flexível, diferentemente das formas anteriores de governo, todas elas fundamentalmente repressivas. E mais: "eis seu verdadeiro segredo: a Comuna era essencialmente um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a fórmula política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho".

Engels observou a ironia histórica de que, na Comuna, tanto os proudhonistas como os blanquistas puseram em prática programas de governo econômicos e políticos inteiramente contrários às suas respectivas propostas teóricas, "como geralmente ocorre quando o poder passa para as mãos dos doutrinários".

Sem dúvida, a combinação das circunstâncias históricas continuou, nos anos seguintes, produzindo ironias. Como a de que as revoluções socialistas do século XX não acontecessem nos países capitalistas mais avançados, onde estava a classe operária mais esclarecida, mas em países atrasados, agrário-industriais, sob o cerco do imperialismo etc., e tudo o mais como todo mundo sabe. E a maior de todas as ironias: na União Soviética e nos outros países onde revoluções proletárias e populares buscaram implantar o regime socialista, ao invés de ser destruído, o Estado assumiu a mais gigantesca estrutura já vista. As palavras de Engels, em 1891, já faziam antever as dificuldades da tarefa:

"Em realidade, o Estado não é mais do que uma máquina para opressão de uma
classe por outra, tanto na República democrática como sob a monarquia; e, no melhor dos casos, um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominação de classe".

Mas, a seguir ele adverte:
"Como fez a Comuna, o proletariado vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente, na medida do possível, os aspectos mais nocivos desse mal, até que uma futura geração, formada em circunstâncias sociais novas e livres, possa desfazer-se de todo desse velho traste do Estado".
O paradigma da experiência socialista de nosso século, que foi a revolução soviética, inegavelmente obteve sucesso sem precedente histórico na sua fase inicial. Nunca antes uma sociedade progredira tão rápida e profundamente nos aspectos econômico, científico-tecnológico, cultural e social, a tal ponto que, abismados, os próprios teóricos burgueses reconheciam sua superioridade sobre o capitalismo.

Mas, e o aspecto político? Questões complexas como a relação do partido dirigente com as massas, do partido com o Estado, do Estado com as massas, enfim, a questão magna da democracia, da participação das pessoas simples nas decisões, do governo dos produtores pelos produtores, não foi suficientemente resolvida ao longo do tempo.

Os sucessivos fracassos na solução dos problemas envolvendo a democracia, surgidos no processo de desenvolvimento da sociedade socialista, conduziram a um rumo contrário: ao crescimento contínuo do aparelho estatal, à formação de uma burocracia que abafou a iniciativa das massas e usurpou a soberania popular etc. etc., como todo mundo hoje reconhece. O Estado gigantesco, onisciente e onipresente enfrentou com repressão a diversidade de idéias, esterilizando a imaginação criadora e, assim, condenando à morte a democracia proletária. Claro que há muito deixara de ser socialista.
Ao final, restava o facho de luz da lanterna da Comuna, indicando ainda e sempre o caminho. Quando aconteceu, 120 anos atrás, anunciou ao mundo que um novo personagem – a classe operária – estava presente à História. E que dela não sairia enquanto não cumprisse sua missão, a emancipação do trabalho. Com a Comuna se iniciava a época das revoluções proletárias, o que se confirmou nas décadas seguintes. Época que ainda não se encerrou e que está apenas em seu começo.

Hoje, os socialistas revolucionários estão revendo o processo e os erros da experiência socialista deste século. "No movimento atual, todos nos apoiamos na Comuna".

Carlos Azevedo é jornalista.

EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 31, 32, 33