“Metade do céu” é uma expressão surgida na China revolucionária para referir-se às mulheres. Mesmo numa avaliação inicial da IV Conferência e do Fórum Paralelo, salta à vista a magnitude e a importância desse grande acontecimento político. Mais de três mil ONGs realizaram cinco mil seminários, conferências e worshops, além das 21 plenárias, que abordaram temas mais gerais, como as conseqüências do processo de globalização para as mulheres, militarização, violência e pobreza e estratégias para a cidadania e participação política, estratégias pós-Beijing etc. Foram levantadas também cinco tendas regionais (América Latina e Caribe, África, Ásia, América do Norte e Europa e Árabe) e sete para grupos específicos – negras, lésbicas, jovens, portadoras de deficiência, indígenas – com programação própria. Os temas abordados satisfaziam todos os interesses e gostos, desde violência doméstica, gênero, prostituição infantil, passando por aborto, saúde e direitos reprodutivos, até situação das lésbicas, negras, islâmicas etc. Uma vasta gama de cores, credos, raças, línguas e dialetos, opiniões políticas, orientações sexuais, costumes e vestimentas evidenciava a pluralidade e a riqueza do movimento de mulheres em todo o mundo.

Em meio a essa enorme diversidade, entretanto, alguns eixos em comum podiam ser discernidos. Pode-se afirmar que o movimento de mulheres se pronuncia contra a chamada Nova Ordem imposta pelas grandes potências. É verdade que as críticas ainda são fundamentalmente contra as conseqüências do reajuste estrutural na vida das mulheres, e não se formulou ainda uma crítica mais geral e profunda ao projeto. Mas a luta pela emancipação feminina está, sem dúvida, num processo de politização crescente, e na contramão do projeto neoliberal.

A imprensa não divulgou, mas em Hairou, onde se realizava o Fórum Paralelo, muitas foram as manifestações de rebeldia das mulheres contra a dívida externa, os ajustes econômicos, o bloqueio a Cuba. No último dia do Fórum, cerca de 60 mulheres de 9 países da América Latina e Caribe criaram uma Rede Feminista Socialista (veja quadro). Também houve protestos na Conferência Oficial, em ato por justiça econômica e social.

As organizações não-governamentais emitiram um documento final cujo eixo central é a crítica ao modelo econômico mundial, que, segundo as ONGs, “gera grande riqueza material para alguns, deixando muitos outros na pobreza”. O documento afirma ainda que o capitalismo leva à degradação do meio ambiente e ao esgotamento de recursos naturais. Mesmo a Plataforma de Ação, embora reflita em cores mais pálidas o posicionamento e as reivindicações das massas femininas, faz um diagnóstico da atual situação mundial, do processo de feminização da pobreza, e garante os avanços de conferências anteriores, como a do Cairo.

Longo processo de luta

Beijing foi fruto de uma longa seqüência de acontecimentos em que a ONU foi obrigada a refletir o processo social objetivo de entrada das mulheres no mercado de trabalho, de seu crescente papel no desenvolvimento econômico e social e do fortalecimento da luta feminina por igualdade nas relações entre os sexos.

Esse longo e doloroso processo tem seus primordios em denúncias isoladas da opressão feminina, como os escritos de Safo (624 AC); começa a dar sinais de vida na Revolução Francesa; e ganha corpo em meados do século XIX; passa pela corajosa luta das sufragistas e desemboca nas grandes manifestações feministas da década de 60.

O primeiro reconhecimento internacional dos direitos femininos ocorreu oficialmente com a Carta das Nações Unidas de 1945, que estabelece o princípio da igualdade entre homens e mulheres; passa por convenções sobre a igualdade de salários (1951), sobre direitos políticos, inclusive o de voto (1952), a ampliação da concepção de igualdade dos direitos econômicos e sociais (1967). Avança nas três conferências internacionais sobre a mulher, reconhecendo os direitos da mulher como direitos humanos e destacando o papel das mulheres no desenvolvimento (veja quadro).

Diagnóstico da situação da mulher

Desde a conferência de Nairóbi, a situação da mulher progrediu em muitos aspectos, graças à ação continuada e consistente dos grupos, entidades e organizações não governamentais de mulheres em cada país, que se refletiu na mobilização realizada pela comunidade internacional. No entanto, os avanços obtidos não foram suficientes para atingir a igualdade de gênero.

O mundo de hoje se caracteriza pelo aumento da pobreza, do desemprego e da exclusão social. E esse processo de crise, aprofundado pelo projeto neoliberal, tem cara feminina, abatendo-se com amior força sobre as mulheres. Dados da própria ONU revelam que o trabalho não remunerado e sub-remunerado efetuado pelas mulheres atinge uma cifra da ordem de 11 bilhões de dólares. A subavaliação do trabalho feminino reduz seu poder de compra, impede direito de propriedade e acesso ao crédito, reduz sua condição social. As mulheres são responsáveis por 2/3 das horas trabalhadas no mundo, recebem 10% do salário e detêm apenas 1% da propriedade. E, no entanto, elas ocupma em média apenas 10% dos lugares no parlamento e 6% das posições nos ministérios dos governos nacionais. Somente em seis países – Dinamarca, Finlândia, Países Baixos, Noruega, Seycheles e Suécia – as mulheres ocupam mais de 30% no parlamento e nos ministérios. Num país do Primeiro Mundo como a Inglaterra, 4,6 milhões de mulheres têm renda inferior a 40 dólares semanais, contra 400 mil homens na mesma situação. No próspero Japão, as mulheres ganham, em média, 60% dos salários masculinos, e continuam presas à tradição de que devem ser primorosas donas de casa.

No Brasil, o desemprego crescente, a vertiginosa queda do valor real dos salários e a degradação das condições sociais empurram milhões de mulheres para o mercado infomal, sem direitos trabalhistas, com a sofrida convivência com a fome, a mortalidade infantil, a prostituição de crianças, a violência.

Segundo relatório da Human Rights Watch, o Brasil é o país que mais se destacou no mundo, nos últimos cinco anos, na prática da violência doméstica contra a mulher. A maternidade e o trabalho doméstico permaneceram como encargos que se somam à busca do sustento e da sobrevivência. A falência das políticas públicas, o sucateamento das poucas delegacias de mulheres, o fechamento de creches já conseguidas agravam ainda mais esse quadro.

Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, as brasileiras estão perdendo conquistas da luta democrática. Em que pesem algumas exceções, os conselhos da condição feminina perderam seu espaço de atuação política e autônoma e trasformaram-se em meros apêndices institucionais dos governos estaduais. A reforma da Constituição e da previdência só fazem agravar esse quadro, acenando com a retirada de direitos como licença maternidade, aposentadoria cinco anos antes dos homens etc.

Na contramão da “nova ordem”

A IV Conferência se realiza num momento histórico adverso. As duas primeiras (1975 e 1980) ocorreram numa conjuntura mundial de ascensão da democracia e de avanço na integração dos direitos das mulheres como parte da democracia. A terceira (1985) se realizou num período de ocaso de ditaduras, de crescimento de conquistas sociais e de direitos políticos. A Conferência de Beijing ocorreu numa situação de hegemonia mundial das idéias neoliberais, de exclusão social, de aprofundamento da desigualdade social e de gênero. Dois grupos de pressão se destacavam: o primeiro, comandado pelos EUA e União Européia, tentava dificultar análise das políticas macroeconômicas dos ajustes estruturais e suas conseqüencias sobre os países em desenvolvimento; o segundo, capitaneado pelos fundamentalistas muçulmanos e pelo Vaticano, procurava impedir que mulheres e meninas aumentassem suas conquistas, principalmente no campo de direitos humanos, reprodutivos e sexuais.

As mulheres foram a Beijing lutando contra a perda de conquistas sociais e direitos legais, para que não houvesse retrocesso em relação às conferências anteriories. E esse objetivo foi alcançado, depois de avanços e recuos na batalha contra todas as forças que pretendiam frear a luta das mulheres, seja do ponto de vista das pressões econômicas, seja das idéias conservadoras. Ainda que a Plataforma de Ação tinja de rosa pálido o que as mulheres pintaram de vermelho vivo, temos agora instrumentos para um salto na mobilização do movimento.

A Plataforma de Ação, aprovada após acirrada batalha entre forças conservadoras e progressistas, pode representar um passo adiante na emancipação feminina, se os governos se dispuserem a efetivá-la. O movimento de mulheres desponta com grande força, apontando soluções inovadoras para os problemas da humanidade, na contramão do pensamento conservador e do projeto neoliberal. As mulheres e as Nações Unidas

A Conferência de Beijing foi fruto de um longo processo de luta das mulheres e de medidas adotadas pela comunidade internacional. A seguir, as principais medidas da ONU quanto à questão da mulher:
1945 – Adoção da Carta das Nações Unidas – 1° Instrumento internacional estabelecendo o princípio de igualdade entre os sexos.
1946 – Criada a Comissão da Condição Feminina com o objetivo de promover os direitos políticos, econômicos e sociais das mulheres.
1949 – Assembleia Geral adota a Convenção pela Abolição do Tráfico de Serres Humanos e da Exploração da Prostituição.
1951 – Organização Internacional do Trabalho (OIT) adota a Convenção sobre a Igualdade de Remuneração entre Mão-de-Obra Feminina e Masculina por Trabalho de Igual Valor.
1952 – Assembleia Geral adota a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1° instrumento jurídico internacional a igualdade de direitos políticos, inclusive o direito de votar).
1957 – Adotada a Convenção sobre a Nacionalidade de Mulher Casada, atribuindo à mulher o direito de manter ou trocar sua nacionalidade, independente do marido.
1960 – Adotada a Convenção da OIT sobre a discriminação no emprego e na profissão.
1962 – Assembléia Geral adota a Convenção sobre Consentimento de Casamento, Idade Mínima para o Casamento e Registro de Casamento.
1967 – Adotada a Declaração sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre a Mulher – amplia o conceito de igualdade de direitos econômicos e sociais.
1972 – Assembleia Geral designa 1975 como o Ano Internacional da Mulher, com o objetivo de chamar a atenção sobre os problemas da mulheres.
1974 – Conselho Econômico e Social das Nações Unidas recomenda a realização de uma Conferência Mundial sobre a Mulher em 1975, junto com o Ano Internacional da Mulher.
1975 – 1ª Conferência Mundial sobre a Mulher (realizada no México) adota o 1° Plano de Ação Mundial e lança a primeira década da mulher com o lema “Igualdade, Desenvolvimento e Paz”.
1976 – Assembléia Geral cria o Fundo de Contribuições Voluntárias para a Década da Mulher (embrião da UNIFEM) e o Instituto Internacional de Pesquisa e Formação para a Promoção da Mulher.
1979 – Assembléia Geral adota a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre a Mulher.
1980 – 2ª Conferência Mundial sobre a Mulher (Copenhague) examina os avanços obtidos na metade da década.
1985 – 2ª Conferência Mundial sobre a Mulher (Nairóbi) adota as Estratégias de Ação para Promoção da Igualdade até o ano 2000.
1985 – Fundo das Contribuições Voluntárias é ampliado transformando-se em Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), organização autônoma associada ao Programa das Nações Unidas para O desenvolvimento (PNUD).
1986 – Publicação do primeiro estudo mundial sobre o Papel das Mulheres no Desenvolvimento
1990 – Comissão da Condição Feminina analisa a aplicação das Estratégias de Ação e recomenda e organização da 4ª Conferência.
1991 – Publicação da obra As mulheres no mundo – atualidades e estatísticas, com dados que revelam a situação de desigualdade e o volume de contribuições econômicas das mulheres.
1992 – Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco92), no Rio de Janeiro, reconhece o papel essencial desempenhado pelas mulheres na salvaguarda do meio-ambiente.
1993 – Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena) analisa a violência contra a mulher e outras questões referentes a seus direitos humanos.
1994 – Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo) – pela primeira vez a mulher é reconhecida como parte integrante do desenvolvimento, e são reconhecidos seus direitos reprodutivos. O aborto é considerado como questão social e saúde pública.
1994 – Cúpula Mundial pelo Desenvolvimento Social leva em conta problemas das mulheres – declaração contém chamado ao engajamento visando à igualdade entre os sexos.
1995 – IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing), com o lema “Ações pela Igualdade, Desenvolvimento e Paz”. A Plataforma de Ação afirma que as mulheres são as principais vítimas da pobreza. Depois de muita negociação, os países do Grupo dos Sete (G7) aceitaram dizer que “as instituições financeiras internacionais devem estudar novas formas de ajudar os países endividados”. Recomenda que os governos e os sindicatos implantem ou reforcem leis que garantam a igualdade entre trabalhadores de ambos os sexos.

Embora as cotas não sejam defendidas explicitamente, recomenda-se que os governos tomem medidas apropriadas visando encorajar os partidos a integrar mulheres em posições elegíveis e de direção na mesma proporção que os homens.

Para garantir que o programa aprovado seja colocado em prática, o documento propõe que “os governos orietem todos os ministérios para que revejam suas políticas, segundo uma perspectiva de gênero e sob a luz da Plataforma de Ação”.

Depois de muita disputa, o bloco conservador (constituído pelos fundamentalistas islâmicos, o Vaticano e alguns países latino-americanos, como Argentina, Honduras e Guatemala) foi obrigado a aceitar que “os direitos reprodutivos devem ser reconhecidos como direitos básicos de todos os casais” e que “os indivíduos devem decidir livre e responsavelmente o número de filhos que pretendem ter”.

Mantendo o avanço da Conferência do Cairo, o texto trata do aborto como questão social e de saúde pública, e sugere que os governos “considerem a possibilidade de revisar as leis que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que tenham feito abortos ilegais”. Pela primeira vez, num documento internacional, reconhece-se que “os direitos humanos das mulheres incluem seu direito ao controle e decidir livre e responsavelmente questões relacionadas com sua sexualidade, incluindo saúde sexual e reprodutiva, livres de coerção, discriminação e violência”.

O documento também reflete as transformações ocorridas nas relações familiares. Embora reconhecendo a família como “unidade básica da sociedade”, não exclui “outras formas de família”, uma abertura no sentido de reconhecer as uniões não-legalizadas e, inclusive, os lares homossexuais.

Depois de Beijing

Nada será como está. Nada será como antes. Beijing mostrou que as mulheres têm enorme capacidade de mobilização, enfrentam com garra os obstáculos e dificuldades e estão unidas por profunda ânsia de emancipação. Embora haja diferentes propostas estratégicas para o empowerment da parcela feminina do globo, o grosso do movimento compreende que a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres se entrelaça com a luta pela justiça social e contra a discriminação racial e étnica.

A contundente crítica das ONGs ao processo de feminização da pobreza e ao projeto neoliberal, refletida de forma esmaecida na Plataforma de Ação, evidencia que as mulheres não querem se integrar nessa “nova ordem mundial”, e sim criar um mundo novo. Querem relações mais solidárias de gênero, mais justiça, mais democracia, mais liberdade.

Cabe agora às entidades, grupos e ONGs dar prosseguimento a esse embate, reivindicar a efetivação dos compromissos assumidos, fiscalizar a aplicação dos programas e propostas da Plataforma de Ação.

Constutuída Rede Feminista Socialista da América Latina e Caribe

No decorrer do IV Fórum de ONGs paralelo à IV Conferência Mundial da ONU em Beijing, participantes de países latino-americanos e do Caribe, além de representantes de Portugal, Espanha e Marrocos, decidiram construir uma Rede Feminista Socialista. Seus objetivos são permitir o intercâmbio sistemático de experiências, a discussão e reflexão de temas teóricos e políticos relativos à mulher, articulando a perspectiva de gênero com a perspectiva socialista.

A rede é ampla e aberta à participação de todas as mulheres que se sintam indentificadas com essa proposta, pertençam ou não a partidos políticos.

A rede está organizada por sub-regiões e países. Foram definidas as seguintes regionais: Caribe (coordenada por Cuba); América central (coordenada pelo Panamá): Cone Sul (coordenada pelo Brasil e pela Argentina); Região Andina (coordenada pela Venezuela); Residentes Latinos nos Estados Unidos, Canadá e Região Ibérica (coordenada pela Espanha).

Dentro de um ano, a Rede deverá realizar uma reunião, aproveitando a realização do Encontro Latino-Americano de Organizações Populares. Nesse período, a rede deverá realizar debates e discussões em níveis nacionais e sub-regionais sobre os seguintes temas: a) plataforma de ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher; b) feminismo e socialismo e c) neoliberalismo.

OLIVIA RANGEL é membro da Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher do PCdoB e secretária geral da União Brasileira de Mulheres. Colaborou Gilse Cosenza, presidente da UBM e dirigente da Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher

EDIÇÃO 39, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 52, 53, 54, 55