O crítico musical e historiador José Ramos Tinhorão representa um caso raro na inte1ectualidade brasileira. Banido da grande imprensa desde 1980, por força de suas opiniões, e avesso às confrarias acadêmicas, durante longo tempo seus livros foram editados apenas em Portugal, com pouquíssima repercussão no Brasil. "Quiseram me transformar em folclore, me acusaram de dinossauro", lembra ele com uma ponta de ironia.

Com tudo isso, Tinhorão não deixou de produzir. Neste ano, chegaram às livrarias, através da Editora 34, dois de seus 18 livros já editados. A repercussão foi surpreendente: o Ministério da Educação adquiriu 20 mil exemplares de Música Popular, um tema em debate, publicado originalmente em 1966 e o livro logo se esgotou nas livrarias. A História social da música popular brasileira mereceu várias páginas da imprensa.

Em ambos, Tinhorão justifica sua fama de "maldito" e de dedicado pesquisador. Música popular, um tema em debate é uma coletânea de artigos publicados em diversos jornais e revistas entre 1961 e 1965 – período de afirmação da bossa-nova como gênero musical e da decadência das escolas de samba como manifestação autenticamente popular. Em um dos capítulos – "Os pais da bossa nova" – o autor investe contra as origens do gênero. "Filha de aventuras secretas de apartamento com a música americana – que é inegavelmente sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje (1966) o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai". Para Tinhorão, a bossa-nova representa um gênero importado, montado no Brasil, a exemplo da indústria automobilística implantada no governo Kubitschek, que limitava-se a montar aqui dentro modelos de seus países de origem.

Para Tinhorão, um fervoroso marxista e defensor da cultura popular, as escolas de samba, por sua vez, "constituem a última criação das camadas populares ligadas à tradição de costumes herdados da estrutura baseada no latifúndio".

Se Música popular, um tema em debate é o que poderíamos chamar de "livro de agitação", História social da música popular brasileira – que não à toa lembra o título História social do jazz, do historiador inglês Eric Hobsbawn – mostra o exigente pesquisador que é Tinhorão. Num abrangente estudo, que vai da formação das cidades portuguesas no final da Idade Média às origens do rock brasileiro, o autor percorre cinco séculos do tortuoso caminho dos sons urbanos na formação da cultura brasileira.
Amparado em partituras raras, variadas referências literárias e gravações esgotadas, Tinhorão deplora a "subordinação do artístico ao comercial (que) iria explicar (…) não apenas a crescente transformação da música popular em fórmulas fabricadas para a venda, mas a progressiva dominação do mercado brasileiro pela música importada dos grandes centros europeus e da América do Norte". Como resultado, afirma ele, "a cultura das camadas pobres acaba sendo submetida a uma dupla dominação: em primeiro lugar, porque se situa em posição de desvantagem em relação à cultura das elites dirigentes do país; e, em segundo lugar, porque esta cultura dominante não é sequer nacional, mas importada e, por isso mesmo, dominada".

Apesar de eruditos, os livros de Tinhorão não padecem de um defeito tão comum à boa parte da produção universitária brasileira: não são chatos de ler. Escritos com a agilidade jornalística de quem, durante décadas, esmerou-se em tornar seu texto acessível, seus livros são ágeis e muitas vezes engraçados. E também cruéis com alguns monstros sagrados da MPB.

Gilberto Maringoni

EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 89