Junto com o novo ano o governo apareceu de cara nova com a reforma ministerial, que foi mais ampla do que se previa. Que avaliação se pode fazer dessa reforma, em especial sobre a inclusão do PMDB no governo?
Renato Rabelo – Consideramos que a reforma ministerial representa um avanço a partir da própria experiência de um ano de governo – uma experiência muito positiva.
Em primeiro lugar porque o novo governo compreendeu a necessidade cada vez maior de construir um governo de coalizão, constituído por amplas e representativas forças políticas do país. Em segundo, destaca-se o esforço do governo para tornar mais eficiente, consistente e racional a administração pública, a exemplo da área social em que se unificou em um ministério as ações antes fragmentadas em três pastas.
Um terceiro aspecto é a participação do PMDB no governo Lula – trata-se de um aliado importante para o núcleo do governo. O PMDB é um partido representativo, com grande presença no Senado e na Câmara dos Deputados, e tem tido, após o fim do regime militar, uma trajetória parecida com a de um “fiel da balança”. Ou seja, pode pender para o lado de setores mais à direita ou para o de setores da esquerda. Mas por sua origem e trajetória, pode compor um leque de aliança de centro-esquerda. É também um partido heterogêneo, constituído de muitas lideranças regionais representativas; muitas delas desempenhando um papel democrático e progressista na vida nacional. Por isso, no atual quadro de forças do país, governar sem o PMDB é muito difícil – quase impossível. Não haveria condições de se aprovar importantes matérias no Congresso Nacional. A sua inclusão no governo é uma importante vitória também porque esse partido poderia, ao contrário, estar se organizando junto com a oposição conservadora, o que seria um grande entrave para as mudanças pretendidas. Foi essa, portanto, uma importante e sábia conquista do novo governo.
Nesse âmbito da participação de aliados, na reforma ministerial destacamos a presença do nosso Partido, o PCdoB, no núcleo do governo, na esfera da Casa Civil. Esta pasta concentrava uma série de tarefas fundamentais – desde a coordenação do governo à coordenação política do mesmo. Essas duas funções fundamentais foram divididas e parte dessas funções, a coordenação política do governo, foi entregue a uma liderança do PCdoB, Aldo Rebelo.
Por tudo isso, consideramos a reforma ministerial bastante positiva e valiosa na atual fase – tanto do ponto de vista político, que é o fundamental, quanto administrativo –, porque o governo retirou importantes lições do ano que passou, levando em conta a constituição de uma aliança mais representativa e a busca de mais eficiência.

Como você analisa a participação mais elevada do Partido Comunista do Brasil no governo Lula, com essa incorporação do deputado Aldo Rebelo à Secretaria da Coordenação Política e Assuntos Institucionais?
Renato Rabelo – Tal participação mostra, da parte do presidente da República, uma relação de maior confiança com o PCdoB, que já vem de longa data, pois fomos o único partido a manter aliança com o PT em todas as eleições presidenciais desde 1989. E essa aliança sedimentada plasmou esse tipo de aproximação e elevou a relação de confiança.
Nesta atitude, o presidente da República leva em conta isso. Assim entendemos essa questão. Não só porque, ao montar o governo, foi o presidente que fez o apelo para que o PCdoB cedesse Aldo Rebelo para ser seu líder na Câmara, demonstrando já um vínculo avançado de confiança, como também agora, mais ainda, na reforma ministerial – quando o próprio presidente propôs, nessa divisão de tarefas que cabiam à Casa Civil, que parte fundamental dela fosse ocupada por Aldo Rebelo. O presidente também convidou Aldo para participar do núcleo de coordenação do governo. Concluo, portanto, que tudo isso não cabe apenas ao mérito de Aldo Rebelo, sobretudo no desempenho de sua tarefa como líder do governo que contribuiu bastante para a formação da nova maioria política do governo e teve um proveitoso relacionamento com o PMDB e todos os partidos da base aliada, mas também ao fato de advir, como pano de fundo, dessa relação de confiança que o presidente já tinha com o PCdoB nessa trajetória que já passa de uma década.

Em recente artigo você alertou para o fato de que é hora de o governo fazer uma opção política clara pela adoção de um novo projeto de desenvolvimento. O governo está demorando em demasia para fazer esta sinalização?
Renato Rabelo – O governo tem quatro anos de mandato. Acredito ser este um tempo curto para se realizarem as mudanças que o país requer. Em quatro anos o governo teria, pelo tempo exíguo e pela realidade tão adversa, condições de apenas abrir caminho ou lançar as bases para um projeto de desenvolvimento soberano e democrático, que leve em conta a distribuição de renda. Por isso, para o governo, ao começar o segundo ano de mandato, este momento passa a ser importante para o começo da construção das bases do novo projeto. Essa passa a ser, então, uma fase primordial.
As dificuldades ainda residem sobre a política macroeconômica adotada, que limita em demasia a possibilidade de um desenvolvimento mais amplo para o Brasil. Constitui um tipo de política que, ao conseguir certo desenvolvimento este é sempre muito contido porque a lógica de tal política macroeconômica visa a sempre controlar e conter os investimentos, tanto públicos quanto privados. O objetivo primordial dessa lógica é atingir uma meta inflacionária muito estreita para as reais condições do país, ao mesmo tempo, impor pesado ajuste fiscal, na busca da “credibilidade do mercado” – portanto, uma nítida escolha política. Isso está sempre a exigir um controle muito rígido da inflação. Os investimentos são então controlados porque eles, segundo os defensores dessa lógica, poderiam conduzir a um aquecimento maior da economia e, conseqüentemente, levar à perda do controle dessas metas de inflação.
Essa lógica absolutiza a necessidade da confiança dos grandes agentes financeiros. Não permite um desenvolvimento amplo e em ritmo mais acelerado – justamente o que o Brasil precisa na atualidade. E nosso desenvolvimento precisa atingir o nível histórico do país. Sem esse padrão de desenvolvimento não conseguiremos resolver nossos problemas principais, como o desemprego e renda do trabalhador, nem mesmo a possibilidade de voltar à reconstrução de nossa infra-estrutura brasileira – que praticamente ficou sucateada nestes últimos dez anos. Por isso dizemos que este é o momento primordial para se redirecionar a política macroeconômica. De sairmos dessa lógica de manter a estabilidade à custa de um desenvolvimento contido, que consiste em travar investimentos e reduzir a renda dos assalariados, que é na realidade insustentável pelo que já atravessamos nos últimos anos. Em 2003, por exemplo, tal visão associada aos efeitos da herança perversa levou o PIB brasileiro a sofrer um recuo de 0,2%, além do que a renda dos trabalhadores caiu e o desemprego cresceu.
Essa atual diretriz que freia o desenvolvimento passa a ser hoje um debate político essencial e não simplesmente econômico. Isso porque sem um desenvolvimento mais amplo e sustentado o novo governo não conseguirá cumprir seus compromissos mais importantes. Nesse contexto, afirmamos que o redirecionamento da política macroeconômica também é, antes de tudo, uma escolha política.

Em sua mensagem de ano novo, o presidente Lula anunciou que 2004 seria o ano do crescimento e do desenvolvimento. Por sua vez o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), nas duas primeiras reuniões do ano, manteve a mesma taxa de juros que encerrou 2003, alegando haver oscilação nos índices inflacionários. Como analisar essa diferença entre o propósito do presidente da República e a continuidade da política de juros altos?
Renato Rabelo – O Copom se baseia na atual política macroeconômica que, como dissemos, segue a lógica de uma excessiva austeridade fiscal e monetária. Esse tipo de rigor não permite um desenvolvimento mais amplo e isso se choca – aqui está a questão central – com a realidade de um país como o Brasil.
Nosso país, diferentemente dos países capitalistas desenvolvidos, exige um desenvolvimento mais alargado. Para países centrais talvez um desenvolvimento de 2% ou 3% permita um crescimento suficiente para atender às necessidades daquelas sociedades – já estabelecidas, estruturadas, com avançado nível de tecnologia etc. Não é este o caso brasileiro. Por aqui temos de recompor infra-estrutura, ampliar a indústria – levando em conta por exemplo o nível do valor agregado e a tecnologia mais avançada – etc. E tudo isso requer grandes investimentos. Por sua vez, um desenvolvimento pífio, que se aproxima de uma quase-estagnação, não permite tais volumes de aportes. É exatamente esta questão que criticamos com maior veemência, e o Banco Central tem sido o centro dessa lógica que precisa ser mudada.
Diversos economistas têm dito que se for estabelecida uma meta tão baixa de inflação, a mesma seria irreal para as condições brasileiras. Isso cria uma relação de rigidez muito forte, e artificial. Para este ano, por exemplo, a meta de inflação foi estabelecida em 5,5% (com uma pequena variação). Para quem estuda a história da economia brasileira, não dá para deixar de notar que se trata de uma meta inflacionária irreal para nossas condições concretas. A sustentação de uma meta desse porte leva inevitavelmente a um desenvolvimento contido! Qualquer aquecimento da economia pode conduzir para além desses 5,5% estabelecidos e, nesse caso, o instrumento único sempre adotado por tal política macroeconômica, com sua rigidez fiscal e monetária, tem sido a utilização de altas taxas de juros. E isso para conter qualquer possibilidade de saída dessa marca inflacionária – irreal.
Tem sido esta a lógica do antidesenvolvimento! Por isso consideramos que tal política cria uma contradição com o que pretende o presidente da República e com seus compromissos essenciais.
Contudo, mais dia, menos dia essa contradição vai ter de ser resolvida. E nós acreditamos que deva ser resolvida em favor da opção pelo desenvolvimento.

O novo projeto de desenvolvimento para o Brasil depende de fatores internos, até aqui mencionados, mas também depende de fatores externos. Como podemos analisar sinteticamente a atual situação mundial, em especial em nosso continente – particularmente na América do Sul –, e a política do governo brasileiro?
Renato Rabelo – Esta é uma questão importante. Não é possível entender que um novo projeto para o país seja resolvido apenas com a adoção de uma política macroeconômica voltada para o desenvolvimento e o emprego e que atenda a necessidade nacional. Há uma outra componente fundamental, exatamente a frente externa. Essa frente externa leva em conta a relação de um país como o Brasil com as grandes potências capitalistas. Isso porque, nesse relacionamento, vale a força – comercial e da hegemonia – desses países. Nesse campo não há espaço para moral ou amizade, o que vale são os desdobramentos dos grandes interesses em cena.
Para um país como o Brasil, para enfrentar em melhores condições esse hegemonismo econômico e de força torna-se necessário compor com outros países dependentes – isso tem ocorrido em diversos momentos, como foi a experiência dos países Não-Alinhados há algum tempo. Assim, a tentativa de o Brasil construir parcerias estratégicas com países do seu porte conforma uma correta ação que vai ao encontro da sustentação de uma política de desenvolvimento. Enfrentar o hegemonismo das potências capitalistas, hoje, não é tarefa para um único país.
A iniciativa de formação do G-20 no âmbito da Organização Mundial do Comércio; o fortalecimento do Mercosul, em nosso subcontinente; a procura de afinidades com a África do Sul e a Índia para a formação do G-3; o reavivamento do G-15 em recente encontro na Venezuela; todas essas iniciativas para aglutinar países em desenvolvimento são justas e vão contribuir, no plano externo, para que possamos moldar nossa política interna de desenvolvimento. É a única possibilidade para abrirmos caminho a uma inserção em relações comerciais mais amplas e diversificadas, e não ficarmos à mercê só de uma ou outra potência hegemônica.
É nessa perspectiva que devemos ver o caso da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Os Estados Unidos pretendiam que o Brasil se submetesse a uma limitação de espaço de relações, que ficariam restritas à América Latina e sobretudo com os Estados Unidos e que se dessem além do comércio. Por isso já havíamos caracterizado a Alca como seqüência de objetivos estratégicos norte-americanos. Também nesse caso o governo brasileiro tem se portado de forma independente, levando em conta os interesses nacionais e procurando questionar a formulação original feita pela potência do Norte. O Brasil tem explicitado seus interesses e também os do Mercosul e de demais países da América Latina.
Tudo isso faz parte da componente externa e suas conseqüências são fundamentais para um projeto de desenvolvimento democrático.

Esta entrevista se realiza num momento em que toda a poeira da crise decorrente do chamado “caso Waldomiro Diniz” ainda não foi assentada. Com os dados disponíveis, como você analisa esse que pode ser considerado o primeiro grande ataque da oposição conservadora ao governo Lula?
Renato Rabelo – Após um ano de novo governo, precisamos entender os elementos que envolvem esse episódio e deles extrair lições.
Uma primeira lição a considerar é que, à medida que o governo foi se firmando – construindo maioria política, realizando a reforma ministerial para criar melhores condições para cumprir seus objetivos etc –, vem esse tipo de acontecimento, mostrando que a oposição conservadora, apesar de ter sofrido importante derrota, não pode ser subestimada. É certo que o caso é grave, necessitando de rápida e eficaz apuração. Isso é indiscutível. E o governo procurou de pronto tomar as medidas cabíveis. A oposição, sujeita à dominância do capital financeiro, vem se reorganizando e não pode ser considerada apenas pela composição de partidos no âmbito do Congresso – ela envolve setores e grandes interesses que pretendem manter a estrutura montada na década de ’90 e têm grande influência na mídia brasileira. Nesse acontecimento, essa oposição procurou, acima de tudo, atingir o governo de forma contundente. Tentou transformar o caso num acontecimento político de peso, com o intuito de golpear uma peça fundamental do atual governo, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu e o PT. O alvo dos ataques foi este ministro, chegando essa oposição e parte da mídia a exigirem o seu afastamento.
Mas por que esse ministro está no alvo do ataque desses setores? É por acaso uma questão centralizada na ética política? Não. Isso tem aparecido apenas como uma forma retórica para forjar uma certa opinião. O alvo mesmo, a exigência, o fato real em foco tem sido o seu afastamento e o desgaste do PT. É, portanto, uma posição política muito explícita de atingir o governo naquilo que é, na sua estrutura, uma parte fundamental. O objetivo é desestabilizar o governo, desgastando uma de suas peças importantes.
Por trás desses ataques – é bom percebermos isso também – essa oposição conservadora foi compreendendo que o governo foi se firmando, que algumas medidas – como o novo modelo energético e a política externa – e certo questionamento à política macroeconômica, além da postergação da chamada autonomia do Banco central, vinham sendo fortalecidos no governo. No cenário precedente aos ataques, chegaram a correr boatos sobre a saída de Meirelles do BC. Isso passou a ser questionado por aqueles setores retrógrados e eles procuraram colocar o novo governo numa situação mais frágil. Usaram então esse momento para procurar colocá-lo numa situação de refém desses interesses, para pressioná-lo no sentido de manter as políticas continuístas. Todo seu esforço tem procurado impedir o governo de adotar um novo plano. Por isso o alvo tem se localizado no chefe da Casa Civil, pois ele aparece como o ministro que persegue a construção do novo projeto de desenvolvimento, que vinha se chocando de certa forma com a manutenção dessa política macroeconômica por mais tempo.
Com o desenrolar da crise, essas verdadeiras intenções dos setores conservadores e continuístas se tornaram mais claras, tendo sido, inclusive, explicitadas em editoriais de jornais conservadores. Esse quadro impôs como primeira necessidade a defesa do governo e a sustentação do ministro. Mas é fundamental a adoção de uma pauta positiva de ação que responda ao compromisso do desenvolvimento e do emprego.

Adalberto Monteiro é editor de Princípios.

EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10