Desde a posse, há 22 meses, a cena governamental tem sido marcada pela diversidade, própria dos períodos de transição, quando disputam entre si diferentes concepções e orientações – as velhas, compostas em um sistema, que lutam para se manter, e as renovadoras, que buscam se delinear, afirmar e ganhar hegemonia. Para além dos limites internos de governo, esta luta permeia todos os terrenos da vida política, social, econômica, ideológica e cultural na sociedade, afirmando-se como uma lei do desenvolvimento social que antecede e prepara mudanças estruturais que, por sua vez, passam a marcar um período histórico maior.

Essa rica experiência de convivência e luta política – que os processos eleitorais nas atuais circunstâncias galvanizam e legitimam – entre os pólos opostos ou simplesmente diferenciados, em ambiente de liberdade e com um governo com perspectiva mudancista clara, é o que pode permitir a nosso povo assumir seu destino histórico.

No campo da orientação econômica do novo governo, têm-se dado importantes embates, desde o início. Isto porque a correlação de forças políticas e a iminência de uma crise financeira obrigaram a que, desde os tempos da campanha eleitoral, se assumissem compromissos contraditórios. Falava-se em mudanças para o desenvolvimento e, simultaneamente; em perseguição de um alto superávit primário pelo tempo que se fizesse necessário; na continuação do regime de metas de inflação controladas pela política de juros vigente; no cumprimento de todos os contratos; e assim por diante. Um acordo com o FMI foi feito às vésperas do pleito pelo governo passado e renovado, por precaução, um ano e meio depois.

Vencidas as eleições, tratava-se de governar e, então, se impôs a necessidade política de buscar uma composição nos diversos setores do governo relacionados com a problemática econômica deforma a contemplar tanto os ortodoxo-liberais
– cujos representantes foram designados para o Banco Central e Ministério da Fazenda -, quanto os desenvolvimentistas – que passaram a dirigir vários outros ministérios e o BNDES, através do renomado professor Carlos Lessa. A partir desse cenário, na execução da política econômica, foi desencadeada uma série de disputas e polêmicas – envolvendo grandes e poderosos interesses -, que o núcleo central do governo procurava contemporizar. O professor Lessa esteve sempre no centro dessas polêmicas, foi alvo de um permanente ataque visando seu desgaste e isolamento.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico -BNDE -, a cujo nome mais tarde se incorporou o Social (S), foi criado durante o segundo governo de Getúlio Vargas, há mais de 50 anos, com o objetivo de dar suporte ao desenvolvimento, feito impossível para o sistema privado brasileiro ou diante da instabilidade dos ciclos externos de financiamento. Nesse período, apesar de muitas dificuldades, o BNDES teve, junto com outros bancos públicos, o papel de se responsabilizar centralmente pelo sistema doméstico de financiamento de longo prazo. O diversificado e relativamente completo parque industrial brasileiro – público e privado – não teria sido construído sem o concurso do BNDES.

Durante os 10 anos de experiência neoliberal, o papel do Banco mudou de sentido, dentro de uma moldura de menosprezar o papel do Estado Nacional na tarefa do desenvolvimento, passando a financiar as privatizações, com juros subsidiados através de contratos dúbios e muito pouco garantidos, dirigidos em vários casos para empresas transnacionais. De outra parte, procurava-se de todas as maneiras atrair poupança externa para, com ela, induzir o desenvolvimento. Nesse período, deixou-se de lado toda e qualquer veleidade de um projeto nacional de desenvolvimento, sendo que a própria política econômica passou a ser definida pelas cabeças do Fundo Monetário, junto com seus servis parceiros brasileiros. O resultado prático disso tudo é bem conhecido: desconstrução do Estado nacional, baixíssimo crescimento, desnacionalização, desestruturação de vários setores das cadeias produtivas, sucateamento da infra-estrutura do país – tudo em benefício do capital rentista.

O professor Carlos Lessa, no período em que dirigiu o BNDES, procurou – dentro da concepção de construir um novo projeto nacional de desenvolvimento – resgatar a missão original do Banco, de financiar o desenvolvimento nacional, sobretudo sua infra-estrutura – sem nenhuma xenofobia, frise-se. Acontece que a política macroeconômica adotada pelo Ministério da Fazenda e Banco Central não está voltada centralmente para o desenvolvimento, mas sim para a estabilidade monetária. Esta, ao invés de ser uma das componentes de uma estratégia de desenvolvimento sustentado, seria o elemento automaticamente gerador do mesmo. E a política macroeconômica adotada pesa sobre tudo e sobre todos. Lessa, mesmo com essa desvantagem, buscou a elevação da taxa de investimento, baixíssima no Brasil se comparada com outros países que buscam se desenvolver. Representava, assim, importante contraponto à orientação monetarista, restricionista.

Só por maldade a demissão de Lessa poderia ser creditada ao seu estilo de polemista arguto, aos seus métodos de direção ou à falta de habilidade política. Havia substância – interesses nacionais em jogo – no caso da AES que, brandindo as precárias condições do contrato com o Banco, não teve a menor cerimônia em declarar o calote. Ou no caso da Vale do Rio Doce que, deforma "pouco avisada", ia passando a mãos estrangeiras em mercado mundial altamente oligopolizado. Houve séria disputa quando a diretoria tratou de capitalizar o Banco, para elevar o patamar dos empréstimos, o que Joaquim Levi, secretário do Tesouro, buscou impedir.

Lessa e sua equipe procuraram criar melhores condições de financiamento ao capital produtivo, através da redução da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP -, a fim de despertar maior interesse dos empresários. Depois de muito embate com o Banco Central, conseguiu-se fazer com que a taxa passasse de 10% ao ano para 9,75%. Nova frente de luta se abriu quando o BNDES decidiu que iria ajudar a pequena e média empresa, com a finalidade de promover a inclusão social. Lessa procurava, de todas as formas, escapulir do restricionismo da Fazenda e do BC. Acusavam-no de estar preso a concepções nacionalistas e estatizantes dos anos 50 e assim por diante.

Mas, está por trás de todos estes casos e polêmicas o papel que o Estado deve ter no financiamento da retomada do desenvolvimento, nas condições brasileiras. As concepções ortodoxo-liberais, na prática, preconizam o fim do financiamento público; assim, a existência do BNDES como banco de desenvolvimento de grande porte para países como o Brasil não faria mais sentido. O objetivo final seria a privatização do sistema financeiro estatal. As idéias que começaram a proliferar com este conteúdo foram e estão crescendo. Sua matriz está no Instituto "Casa das Garças" e no Instituto FHC (IFHC), em setores da PUC/Rio, nas assessorias dos grandes bancos privados, em dirigentes da equipe econômica do governo passado, na parte da intelectualidade colonizada e servil.

Politicamente, no PSDB e nos seus aderentes. Externamente, no FMI.
Propõem que o FAT e outros fundos de poupança compulsória sejam administrados por bancos privados. Avaliam que a TJLP, mesmo a 9,75% anuais, é a causadora do alto spread bancário brasileiro, como disse Henrique Meirelles, do BC. Praticam a receita que nunca deu certo em lugar nenhum: sistema de juros altos, câmbio valorizado, alta carga tributária, metas de inflação artificialmente rebaixadas e assim por diante.

Continuar a luta por uma nova política macroeconômica, para a coerência e êxito de um projeto democrático nacional-desenvolvimentista.

Para nós, desde a posse do governo Lula, pelas condições existentes de um governo dual, o papel dos setores políticos mais avançados, incluídos aí os comunistas, é lutar pelo seu êxito, entendido como sucesso na consecução das mudanças. Por isso, não poderia ser diferente nossa avaliação de que, pelo seu significado político, a demissão de Carlos Lessa da direção do BNDES é um retrocesso importante. Evidencia ainda mais o desequilíbrio do contencioso entre ortodoxo-liberais e desenvolvimentistas dentro do governo; não foi uma boa solução. Fica a lição de que os setores conservadores não descansam, pressionam todo o tempo e tudo farão para impedir e desfigurar por completo os compromissos mudancistas do governo Lula. Para tanto, já estabeleceram novos alvos dentro do governo e se animam, fazendo planos de volta ao centro do Poder em 2006.

O momento político é crucial para o governo. Já no "segundo tempo da partida", esboçam-se os contornos da batalha de 2006. Devem ser renovadas em curto prazo as presidências das casas legislativas, pontos centrais de interlocução entre o Legislativo e o Executivo. Discutem-se as polêmicas propostas de reforma sindical, política e universitária. Há defecções de quadros destacados de escalões intermediários e, de outra parte, setores mais conservadores, após o pleito, tomam uma postura mais ofensiva. Tudo isto emoldurado pelo quadro que emergiu das últimas eleições: equilíbrio entre as forças que elegeram Lula presidente e as forças conservadoras, cujos pólos principais, PT e PSDB, respectivamente, convivem com uma diversidade de outros partidos de maior, médio ou pequeno calibre, que ocupam todo o espectro de opções políticas e ideológicas.

Diante dessa intrincada situação, para o PCdoB, a adoção pelo governo de três orientações fundamentais – que se articulam – pode ajudar numa evolução positiva:

1) Maior nitidez ao projeto nacional de desenvolvimento, que implica fundamentalmente em promover profundas alterações na política macroeconômica até aqui praticada e em dar continuidade aos fundamentos do trabalho do professor Lessa no BNDES. Tarefa de tal magnitude compõe o foco da luta política atual; por isso, deve ser motivo da conformação de um pacto nacional pelo desenvolvimento e emprego.

2) Ampliação da base de sustentação do governo, buscando firmar sua natureza como governo de coalizão, o que só agora é mais compreensível para importantes setores do governo.

3) Limites mais demarcados em relação ao PSDB – centro aglutinador das forças conservadoras, responsáveis pela aplicação das idéias neoliberais e possível contendor central em 2006. (R.R.)

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 14, 15