A economia brasileira tem andado com arrancos de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues, mesmo durante o governo Lula, porque a sua administração reflete aquela disputa fundamental pelo poder definida pelo ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, como a luta do partido de Tiradentes contra o partido de Joaquim Silvério dos Reis. Nos últimos tempos, com os mitos que vieram ao mundo na década de 1990 e que acabaram confundindo a cabeça de muita gente de boa vontade, essa disputa ganhou contornos dramáticos. Os conservadores definiram um rumo para o país, depois de prolongar artificialmente a âncora cambial até as eleições de 1998 que lhes deram mais quatro anos no Palácio do Planalto, por meio de um contrato internacional com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com metas detalhadas e quantificadas.

O acordo comprometeu o país com o cumprimento de metas fiscais e monetárias definidas e controladas trimestralmente, em troca de um empréstimo de US$ 40 bilhões, que permitiu à “era FHC” enfrentar a crise terminal do Plano Real – protelando seus efeitos mais dramáticos. Esta tutela não era uma mera imposição externa. Ela foi uma opção consciente da elite brasileira que adotou a estratégia de abertura e desregulação decisão e das estruturas econômicas brasileiras. Nas duas últimas décadas, principalmente, a desnacionalização da economia atingiu índices alarmantes. Uma parcela considerável do empresariado brasileiro preferiu vender suas empresas às multinacionais e viver das benesses de curtíssimo prazo da ciranda financeira internacional, sem oferecer resistência à ofensiva do imperialismo.

Eles ganham, mas o país se afunda na degradação social e na dependência externa. A experiência brasileira das últimas duas décadas mostra cabalmente não haver correspondência entre o discurso de que a "globalização" neoliberal garante ganhos equânimes, de escopo planetário, e o de progresso para todos. O detalhe é que os lucros das multinacionais são carreados para um determinado país-sede e isso faz balanças de pagamentos penderem para um lado ou para outro, levando consigo expectativas, juros, entradas e saídas de capital, pontos no crescimento econômico e nível da renda per capita. Trocando em miúdos: esse modo de gerir a economia aumenta brutalmente a riqueza no pico da pirâmide social e a pobreza em sua base.

A liberalidade sem limite concedida ao grande capital internacional abriu as portas para ele ciscar em nosso quintal, revirar nossas finanças públicas e imiscuir-se na vida política nacional. Essa página da nossa história começou a ser virada com a eleição de Lula, mas as forças conservadoras, sem outro projeto, se apresentam para as eleições deste ano com as mesmas bandeiras. A diferença é que a esquerda conseguiu, com o governo Lula, mostrar para uma boa parte da sociedade que a hegemonia liberal no Brasil implica em manter a velha estrutura social fendida em dois extremos.

Essa constatação ajuda a desvendar por que no Brasil a direita morre de vergonha em admitir-se de direita. Manter baixa a visibilidade das cores de sua bandeira contribuiu muito para a sua aceitação perante o brasileiro médio. Afinal, sua bandeira não tem as cores de um projeto social para o país. Ela representa privilégios e arcaísmos oligárquicos já sepultados há séculos por países que, não por acaso, ao fazê-lo, desbloquearam seus caminhos em direção ao progresso. A direita brasileira não assume o escopo ideológico que lhe corre nas veias porque ele já está há muito superado pela história. Daí o grande constrangimento de Alckmin em expor claramente o que pretende para o país.

Assim como na campanha eleitoral de 1994, quando FHC mostrava aqueles 5 dedos simbolizando suas falsas prioridades de governo, a candidatura de Geraldo Alckmin evita expor a essência econômica do seu programa de governo que só se viabilizará com a retomada da “agenda de reformas” neoliberal – principalmente a trabalhista e mais uma rodada da previdenciária. Se aqueles dedos de FHC significaram alguma coisa para o eleitor, foi a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma reforma de cunho liberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque. Eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas. Alckmin imita seu mestre.

A direita, em grande medida, sempre se soube na contramão. Em uma pesquisa divulgada pela revista Veja em junho de 1996, 62% dos conceitos que a elite brasileira atribuía a si própria eram negativos. E a esquerda, quem diria, posava de ala progressista da política nacional enquanto muros iam sendo tombados da Tchecoslováquia à Sibéria. A direita tenta fugir dos rótulos que, não por coincidência, lhe caem bem. Ela é de fato conservadora, por desejar a manutenção da estrutura inviável que temos no país, e reacionária, por se relacionar incestuosamente com o poder político, dando sustentação a qualquer regime que protege seu senhorio.

Na outra margem, a esquerda tenta capitanear um movimento de desenvolvimento sócio-econômico de cores progressistas. Ao final de quatro anos de governo Lula, o Brasil ostenta muitas oportunidades prontas, esperando empreendedores arrojados. E está construindo um ambiente democrático, munido de uma grande idéia: entregar este país às novas gerações com mais riqueza e menos desigualdades sociais. O momento histórico que vivemos é muito rico.

Nossa economia deve partilhar arranjos internacionais em consonância com um projeto nacional e de acordo com as potencialidades de um país com o porte do Brasil. Para tanto, devemos ter em conta que o capitalismo de hoje não é mais aquele concorrencial da Primeira Revolução Industrial. Vivemos a era dos grandes blocos econômicos e, por isso, nossa visão deve estar projetada também em termos globais. Será decisivo para o Brasil o rumo que as economias da América Latina seguirão nos próximos anos.

Por outro lado, não devemos menosprezar o poder – sobretudo econômico – do imperialismo. O sistema de brutal transferência de recursos da periferia para o centro – remessas de lucros, pagamentos de juros, troca desigual etc – aprisionou os países mais pobres. Ao se submeter à estratégia imperialista, países como o Brasil limitaram suas economias quase que somente às exportações de produtos primários e aos ditames dos grandes bancos que dominam os mercados de empréstimos de curto prazo. Não sabemos o que o futuro trará, nem quantas lutas serão necessárias para enfrentar a pressão imperialista. O sistema "global" tem como método de relações internacionais a imposição de suas vontades, que engolfa e determina o rumo a ser seguido. Pode ser dado como certo que a resistência à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e a defesa do Mercosul gerarão ainda muitos atritos.

Esse é outro aspecto essencial da disputa presidencial deste ano. O candidato da direita conta em sua equipe com defensores de uma guinada radical em relação à política externa que vem sendo adotada pelo governo Lula. A prioridade é para temas como o estabelecimento de acordos bilaterais e a retomada de negociações para a formação da Alca. Um dos “especialistas” nessa área é Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e Londres. Ele defende a criação de uma secretaria de comércio exterior, subordinada à Presidência da República, para comandar e coordenar o comércio brasileiro com outros países – uma forma de desvincular a estratégia defendida por setores do Itamaraty da essência do programa de governo de Alckmin.

Na última reunião de cúpula do Mercosul, realizada no final de julho em Córdoba, na Argentina, a Venezuela fez sua estréia oficial como país-sócio e o Brasil assumiu para o próximo semestre a presidência da associação. Além dessas formalidades, foram fechados acordos comerciais importantes para o bloco, de tom progressista (com o reforço da presença do líder revolucionário Fidel Castro, convidado de honra do evento). O Mercosul tem uma essência política e uma lógica econômica muito bem definida. Ou seja: o Brasil mostra claramente que está seguindo por um novo rumo.

Pouco antes de morrer, o economista Celso Furtado, em uma mensagem em vídeo para os participantes da mesa redonda “Diálogo social, uma alavanca para o desenvolvimento”, promovida pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), perguntou: “Como você pode dirigir uma sociedade sem saber para aonde vai?”. A intervenção trazia palavras de estímulo ao trabalho a que se propunha o Conselho, de elaborar uma agenda nacional de consenso entre os vários atores sociais lá representados. “A hegemonia do pensamento neoclássico-neoliberal acabou com a possibilidade de pensarmos um projeto nacional; em planejamento governamental, então, nem se fala. O Brasil precisa se pensar de novo, partir para uma verdadeira reconstrução. Para mim, o que preza é a política”, disse ele.

As palavras de estímulo de Celso Furtado foram uma incitação à coragem. “Temos que ter coragem política. Coragem política é um fenômeno social que decorre do estado da sociedade. Ter coragem política na ditadura é uma coisa. Outra, muito diferente, é ter coragem política na complexa e instável realidade em que vivemos. Considero fundamental que a coragem política seja posta a serviço das autênticas causas do povo brasileiro”, afirmou. A mensagem de Furtado, atualíssima neste período de campanha, se soma à constatação do então assessor econômico do candidato Lula, em 2002, o hoje ministro da Fazenda Guido Mantega, de que a saída para a crise econômica brasileira é política. A saída é política – sempre. Ela define os rumos da economia.

A renda nacional é uma espécie de síntese de toda a atividade econômica do país. Sendo assim, a forma como ela é distribuída constitui necessariamente o objetivo fundamental de uma política de desenvolvimento econômico e social. Surge, portanto, a indagação de como lidar com a renda nas dimensões e características necessárias.

Medidas que valorizem o trabalho conduzirão, inevitavelmente, ao aguçamento da luta de classes – o que, do ponto de vista social, é um enorme progresso. O avanço econômico sempre vem acompanhado do crescimento quantitativo e da capacidade de mobilização dos trabalhadores. O mercado interno ganha em extensão e elasticidade. E a vida política do país ganha dinâmica. Não é difícil observar este fenômeno hoje.
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Osvaldo Bertolino é jornalista.

EDIÇÃO 86, AGO/SET, 2006, PÁGINAS 15, 16, 17