19:00 h do dia 30-11-2007; Praça Nicola Viviléchio, Taboão da Serra (SP), Brasil.

      A noite caía sobre Taboão da Serra, obviamente com a permissão da Câmara Municipal. A Praça Nicola Viviléchio se fez bonita como há muito tempo não ousava ser. Milhões de pequeninas lâmpadas cobriam os troncos das trinta e oito árvores plantadas na praça. O espírito de Natal pairava no ar. Duas dezenas de crianças brincavam, correndo em volta da velha marquise, no centro da praça, onde num passado nem tão distante assim, o maestro Álvaro Manoel comandava uma banda de música mui charmosa, executando maxixes, marchas, polcas, dobrados e habaneras. Em volta da  marquise, quatro ou cinco casais sentados ou de pé, trocavam confidências e falavam de amor. Algumas mães apreciavam seus rebentos nas reinações usuais, com olhares cúmplices. Muitos desempregados ainda procuravam nas páginas do “Jornal de emprego”, mais uma chance na vida. Políticos contornavam a praça, ''em direção à Câmara Municipal'' alguns atores de teatro ensaiavam, dentro do Cemur, ali, em frente à praça.

      Um louco, vestido à Chaplin, olhava continuamente para a fonte luminosa, ainda desligada. Ele não tinha mais de trinta e poucos anos, a meu ver. Vestia os pés com velhos, surrados e furados tênis; um pé em vermelho, outro em verde; a calça, branca e encardida e com um rasgo na retaguarda, deixava antever uma outra calça, vermelha, sob a calça branca. A camisa, de listras horizontais, multicolorida e bonita, ainda que surrada, com mangas compridas, bufantes, em cores contrastantes e abotoadas até o pescoço, deixava antever, uma bonita gravata azul escuro, puída, presa com nó górdio. Os cabelos longos e em desalinho e a barba rala, não deixava dúvidas sobre um certo desajuste mental. Os dentes, muito brancos, mostravam-se minuto a minuto, num sorriso silencioso. 

      As mãos do louco, longas e magras, com os dedos indicadores em riste, traçavam ondas, círculos e elipses no ar; como que estivesse regendo uma orquestra invisível. Notei-o muito magro. Subitamente, passou a contornar a fonte luminosa da praça, primeiro lentamente, depois apressando-se aos poucos e ao final, exatamente quando a fonte luminosa foi ligada, ele estava correndo, suado, ofegante, feliz.

      As pessoas que lá estavam, aos poucos foram atraídas pelo comportamento completamente fora dos padrões, do louco.

      Algumas mulheres olhavam com um certo receio a desenvoltura do louco e chamavam, para perto de si, seus rebentos; estes aturdidos, atendiam sem saber  o “porquê!”.

      Dos altofalantes da fonte luminosa, concomitantemente com o espetáculo de luzes, cores e águas, ouviu-se  as primeiras notas de uma ária da música “As Quatro Estações”, de Vivaldi.

      E a praça encheu-se com aquelas notas: “tã, tã, tã, tã tarã, tarã, tantantan …” .

      O louco deu um grito agudo, mais parecido com um pio do gavião real. Em seguida, subiu a pequena mureta que limitava as ruelas da praça com os canteiros que circundava, a fonte luminosa. Curvou-se cerimoniosamente para as águas cantantes, pés juntos, joelhos dobrados e tronco curvado, olhos cerrados, mãos estendidas em direção à fonte. Em seguida voltou-se costas para a fonte e, diante do público incrédulo, repetiu o cumprimento; tudo exatamente com um maestro de verdade faria, se ali estivesse.

      Enquanto algumas pessoas ali na praça faziam muxoxo, sorriso velado, o louco se concentrava, enquanto que a gravação atingia uma parte da música começava um “pizzicato”, ele regeu com energia, mãos ondulantes, olhar enérgico para as águas, que alternavam cores e jatos de cinco metros de altura, depois de um metro e novamente de dois e cinco metros; o louco rodava círculos com os braços e mãos. Quando o jato de água abaixava, ele abaixava, quando o jato subia ele se punha na ponta dos pés. Começou um “adágio andante”, num crescente, que culminou num movimento “allegro”. O louco maestro, suava aos borbotões, mesmo assim não demonstrava cansaço. Foram juntando às pessoas que ali estavam, todo tipo de gente, em pouco, era uma multidão em volta da fonte e do louco.

      O operador do som da fonte, resolveu então mudar a música e colocou uma valsa de Strauss Jr., a famosa “Danúbio Azul”. o louco maestro, tomado de emoção, tremia da cabeça aos pés, encharcado de suor e de respingos da fonte, cabelos em desalinho. Ele bailava com uma “partner” invisível. Num relance, colheu uma rosa no canteiro defronte, prendendo-a nos dentes, enquanto bailava com tanta felicidade, que toda a cidade se iluminou.

      Chegaram os guardas municipais, defensores do patrimônio público, que tentaram agarrar ao louco. Algumas pessoas se divertiam com a situação; outras permaneceram com comportamento frio, nem contra nem a favor.

      Agora estavam três pessoas dentro da fonte, entre os canos chafarizes, com feições multicoloridas. O louco no ponto mais alto, os outros abaixo, o povo assistindo.

      De repente, ouviu-se um estrondo, qual um trovão. um corisco riscou os céus das Terras de Taboão e, um anjo todo de branco e enormes e alvas asas, tomou o louco entre os braços e o levou aos céus, longe da praça, dos guardas municipais e longe do povo.

      Umas três semanas depois, sonhei com o louco. O rosto sereno, a barba, os cabelos negros e longos eram os mesmos. Olhou-me e mostrou-me as chagas de suas mãos. Era Natal em Taboão da Serra. O mundo ocidental sabia, muito bem, quem era o louco da praça…

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.