São Paulo converteu-se num centro artístico internacional, como queria a Primeira Bienal Internacional de Artes, em 1951. Além disso, o Brasil tornou-se um ponto de atração para artistas, curadores, galeristas, colecionadores internacionais, e artistas brasileiros consolidaram presenças sólidas no debate sobre a produção de visualidade contemporânea. A pergunta colocada pela curadoria da 28ª Bienal é: não seria o momento de a Bienal de São Paulo refletir sobre si mesma?

A proposta é forjar um momento para repensar a mecânica com que a Fundação Bienal São Paulo (FBSP) vem produzindo as sucessivas bienais desde 1951, avaliar suas produções e, talvez, considerar a possibilidade de se recolocar diante da cidade, e responder aos desafios a ela apresentados no século XXI. Nesta entrevista, Ivo Mesquita, curador da 28a Bienal de São Paulo e professor do Center for Curatorial Studies, do Bard College, em Annadale-on-Hudson, nos Estados Unidos, fala sobre o sentido da Bienal hoje.

Princípios- Segundo o texto de abertura do catálogo da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, de 1951, a Bienal deveria cumprir as tarefas de colocar a arte moderna do Brasil em contato com a arte do mundo, ao mesmo tempo em que para São Paulo buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial. Passados 57 anos, como você avalia a situação da Bienal Hoje?
Ivo Mesquita – No projeto da 28a usamos essa mesma epígrafe. O que a Bienal se propôs a fazer em 1951 ela fez. A cidade é um centro internacional, as pessoas vêm para cá. Os artistas brasileiros estão no circuito internacional. A Bienal fez com que a cidade fosse mais moderna e cosmopolita, com gosto sofisticado para arte. Entretanto, o que foi um vivo contato daquele momento é diferente do que é hoje em 2008. Aquele era o tempo do telégrafo. Qual a velocidade em que circulava a informação e como circula hoje? Em 1951, na 1a Bienal de Artes de São Paulo, a cidade possuía um milhão e cem mil habitantes, duas escolas de artes, três museus, e dois deles recém-criados (MASP, de 1947 e MAM, de 1948), três salas de exposições e duas galerias de arte. Cento e vinte mil pessoas visitaram essa 1a Bienal. Em 2006, na 27a Bienal, a cidade possui dez milhões de habitantes, cerca de setenta galerias, doze escolas de artes, oito museus de arte, quatro centros culturais 1 A proposta do curador Ivo Mesquita é desconstruir o conceito de Bienal de Artes

2 O espaço vazio, no segundo andar do Pavilhão da Bienal, proporciona ao público vislumbrar o prédio e “usá-lo” de maneira alternativa

3 As obras artísticas mais “convencionais” foram deslocadas do cenário que se costuma usar em exposições desse tipo

4 A 28ª Bienal provoca o publico a participar dela de maneira ativa grandes (fora as comunidades pequenas) e quase um milhão de pessoas visitou a Bienal. Criou-se toda uma infra-estrutura para a mesma porcentagem da população. Aumentou o número absoluto de visitantes, mas não o número relativo. Não agregou público nisso, quem visita a Bienal são os mesmos 10% da população. Nós alcançamos as metas de 1951. Mas elas não são as mesmas de hoje.

Princípios – E qual é a meta de hoje?
Ivo Mesquita – Depois dos anos 1980 houve uma aceleração desenfreada seja da globalização, seja do crescimento das Bienais, da circulação de informação, do acesso à novidade, da produção da novidade etc. Hoje outros museus da cidade já fazem, por exemplo, exposições históricas, as galerias e os centros culturais cumprem o papel de mostrar a arte contemporânea. Já não se trata mais de servir como termômetro da arte do mundo como era no início. Parece-me que agora a demanda é assumir um caráter mais crítico, realizar exposições de caráter mais reflexivo. Para mim, é impossível manter a consistência de um conceito ou de um argumento com cem artistas, cento e cinquenta artistas. Para isso vinte, trinta, quarenta, não mais que isso, dão conta. Assim seria possível ter uma leitura mais clara do que os artistas estão produzindo, teríamos pontos de vista mais focados. Ao mesmo tempo, é muito importante ser local, afirmar sua regionalidade, neste contexto da globalização. Ter consciência da sua localidade, falar a partir da sua perspectiva. Este me parece ser um serviço que cabe à Bienal hoje.
Outro ponto: embora ao longo de sua história a Bienal não tenha construído um Museu, ela formou gerações de artistas e profissionais ligados à arte. Ela existe mais no nosso imaginário, do que como um Museu de visitação (que é eventual). Se desse modo formou as pessoas, ela poderia ter um papel mais permanente como centro educativo. Não necessariamente de exposição, mas um centro educativo. Porque ela tem uma biblioteca fantástica e um arquivo maravilhoso para pesquisa sobre arte contemporânea em Bienais, e pode-se gerar muita coisa com esse material.
Ela poderia também apoiar e preparar artistas brasileiros para divulgarem o trabalho pelo mundo. Muitas vezes eles são convidados a expor fora do país e enfrentam dificuldades financeiras pois não há apoio para isso, ou o respaldo é muito limitado. A Bienal, como tem essa vocação internacional e uma rede de trabalho consolidada, pode prestar esse serviço.
Ela poderia ainda ser um espaço de residência de artistas de fora do país. Poderia oferecer espaço para que montassem o ateliê. São serviços que têm demanda neste momento.

Princípios – A Bienal está em crise?
Ivo Mesquita – Em momento algum quando falo em crise do modelo, crise institucional, vocacional, me refiro à produção artística. Para mim, a produção artística até aqui “vai bem, obrigado”. As pessoas falam muito de uma crise institucional na Bienal. Como já tenho uma longa experiência nesta instituição, o meu ponto é que, antes de qualquer crise, é uma crise vocacional. Não sabe a que veio.
O projeto reflete essa crise vocacional e causa uma crise institucional, que se assemelham à crise de suas outras instituições do país, o MAM do Rio de Janeiro e o MASP de São Paulo. O modelo que criou estas instituições supunha outro modo de desenvolvimento das políticas culturais e da filantropia aqui no Brasil, diferente do que ocorreu. Então, estão defasadas do ponto de vista da gestão e, sobretudo, da funcionalidade. Isso interfere no organograma dos Museus, na captação de recursos, na flexibilidade etc. A meu ver as três instituições sofrem desse mesmo processo. O curioso é que elas foram criadas na mesma época. Então me parece um problema bastante sintomático, acrise tem a mesma raiz. Esta Bienal se propõe a refletir também sobre isso. Evidentemente o projeto não contempla especificamente as outras duas instituições, mas pela minha avaliação, como historiador, elas estão no mesmo barco.

Princípios – Você falou do caráter regional, local, que devem ter as Bienais. Esta 28a Bienal tem esse caráter?
Ivo Mesquita – Sim. O “tema” é o modelo Bienal de exposição e a própria Bienal de São Paulo e sua história. Estamos convidando semanalmente, desde junho, duas pessoas para falarem de suas experiências com a Bienal de São Paulo, para gerar uma reflexão mais ampla e trabalhar com esse imaginário de uma maneira mais fundamentada. Fundamentada na experiência concreta e na memória.

Princípios – Seu projeto para a 28a Bienal, ao que parece, será em torno de uma reflexão sobre o conceito “Bienal de arte”. Por que propor tal reflexão neste momento?
Ivo Mesquita – A idéia é marcar uma diferença em relação às Bienais que se reproduziram ao longo destes anos. O Pavilhão Ciccillo Matarazzo é extremamente identificado com a Bienal de São Paulo. Se uma pessoa pegar um táxi e pedir para ir à Bienal, o motorista a levará até lá, de qualquer lugar da cidade em que ela estiver (rsrsrsr). Nosso projeto propõe uma ocupação alternativa do prédio. Vamos transformar o térreo numa espécie de praça, aberta à cidade. A idéia é propiciar esse vivo “contato” colocado lá na primeira Bienal. E a praça nos pareceu o local mais apropriado para isso, retomando a tradição da Ágora grega, que é o espaço da política, do encontro da convivência dos cidadãos e das decisões coletivas. A praça será um lugar aberto para a realização de uma série de acontecimentos e projetos. Logo ao abrir o edifício toda essa energia fluirá. Isso que seria o território da sensibilidade, da emoção, do corpo, se desloca para o terceiro andar, para o espaço do cérebro, da cabeça. Nele, ficará a exposição, organizada ao redor de uma biblioteca, de um auditório e de uma idéia de arquivo. Quer dizer, o centro dessa reflexão que queremos provocar, sobre o modelo de Bienais e sobre a Bienal de São Paulo, estará no arquivo da Fundação Bienal. Com noções de historia, de memória, do limite entre documentário e ficção e essa coisa de estar revolvendo o passado buscando coisas que possam ativar o presente. Nessa biblioteca haverá um catálogo com as mais de 200 Bienais já existentes no mundo.
Entre a biblioteca e a praça haverá um andar vazio. Ele funcionará como uma espécie de amortecedor. Mas ele tem um sentido em si: é uma maneira do provocar o olhar. Ele é uma experiência da diferença, porque as pessoas sempre veem esse espaço cheio. A pessoa poderá ver da arquitetura do edifício. E perceber essa idéia do vazio como as coisas em potência, em devir. Não é o nada, mas o vazio como uma experiência física que abre a imaginação. A indústria cultural nivela tudo sem qualificar nada. O que queremos dizer é que as experiências da rua e da exposição são diferentes.
Os três andares têm relação. Eles são parte de um todo. Eles falam da apropriação do espaço. O que estamos pondo em questão também é o uso do pavilhão. Precisa encher o prédio inteiro para ser uma Bienal? Hoje em dia há muitas formas de exposição. É uma questão de que circuito se almeja para a exposição. Porque ela existe, primeiramente, no imaginário da cidade. A Bienal faz parte da identidade de São Paulo. De uma identidade moderna da cidade. Internacional, cosmopolita.

Princípios – Esta Bienal propõe um momento de reflexão. Você espera que todo o público responda a essa provocação? Em linhas gerais qual reação você espera do público para esta Bienal?
Ivo Mesquita – São duas coisas. Ela tem um lado – acredito que não haja problema em dizer isso – que é um pouco para especialista. É importante ter esse momento de revisão para os técnicos e profissionais da arte. Vamos pensar o que estamos fazendo e para onde estamos indo. Quando se tem um circuito muito grande e muito rico, é importante tentar refletir sobre isso.

Princípios – Mas a Bienal é muito visitada. E por pessoas não especializadas em arte…
Ivo Mesquita – Por esse lado, sim. Há um interesse primário, digamos, dos artistas, curadores entre outros, em desenvolver um projeto que tenha um caráter mais educativo. A pergunta que lançamos, com a Praça, por exemplo, é: você já pensou o que é e para que serve uma praça? No lugar onde você mora tem uma praça? Você cuida da sua praça? Também queremos ir resgatando a história do Parque (do Ibirapuera), sua relação com a cidade de São Paulo. Vamos ter um histórico da implantação das praças na cidade e outras coisas desse tipo. Queremos mostrar que o sentido social e político da praça é o mesmo da exposição, que ficará no andar na biblioteca: ser um espaço coletivo. O principal para mim não é falar dos artistas que estão ali, mas do sentido dessa exposição.

Carolina Ruy é Secretária de Redação da Princípios

EDIÇÃO 98, OUT/NOV, 2008, PÁGINAS 46, 47, 48, 49