Prequeté, prequeté, prequeté!.  E a charrete subia a rua principal.

       Na boléia, mascando um pedaço de bom fumo goiano, ia o Souza, legítimo africano de quatro costados. Pouco abaixo de seus pés, entre as rodas murchas do pneu careca e à sombra, ia o Viajante; um querido e legítimo canino puro-sangue tomba-latas. Vez ou outra alguém gritava para ele: – dia Souza!, ao que ele apenas murmurava um "dia" de muito mau grado.

      O Souza trazia na parte traseira da charrete, enrolada dentro de um saco de aniagem, a Neguinha; uma leitoa que foi criada dentro de casa, junto com os gatos e os cachorros da casa do Souza. Pois é, a pobre da Neguinha estava indo para o sacrifício, ou seja estava sendo doada pelo Souza ao Padre Tito, vigário de Passa-Tempo, sendo a pobre uma das prendas que seriam rifadas na quermesse. Três quartos de hora depois, e novo prequeté, prequeté, prequeté…

      Na boléia o Souza, olhos cheios de lágrimas a responder: "dia"', entre uma cusparada e outra , e entre um esfregar de olhos e outro. O Souza estava chorando!. Todos em Passa-Tempo gostavam do Souza, e ao vê-lo chorando, perguntavam-se: o que teria acontecido?. Parou a charrete na venda dos Signorini, e depois de meia garrafa da branquinha, contou para a platéia formada de compadres e o vendeiro, a razão do choro. Foi o seguinte o que contou o Souza:

      – "…é que ninguém agüentava mais a Neguinha. Todo dia ela tombava o balde de leite da Dona Zéfa, mulher do Souza, apenas para beber o leite derramado; por três ou quatro vezes pisara, talvez por pirraça ou ciúmes,  com os pés enlameados, a roupa branca no quarador; brigava a dentadas com os gatos e cachorros da casa, notadamente por ciúmes,estes viviam descalabrados. Mas, ontem foi o fim da linha!. A Neguinha deu um verdadeiro "baile" no "Souza e família a quatro": – não se sabe como, a Neguinha conseguiu subir até o telhado da velha casa, construída ao lado de um grande barranco!. Da cumieira, choramingava feito criança nova: – tinha medo de descer!. O Souza tentou pegá-la pelo rabo, usando uma escada, mas ela escapara vezes seguidas, e ainda de quebra, dera-lhe uma dolorida dentada na perna!. Imagine só, morder a quem a tinha alimentado desde pequenina!. A Dona Zéfa, aos gritos, quando viu a "sangüeira", desmaiou. Um vizinho do Souza, o compadre Titõezinho, quis ir chamar o Dr. Patrick para atender a comadre Zéfa, no que foi impedido pelo Souza:

      -… ele é um dotô marca barbante, purisso mêmo num achô nem a duença da fía do cumpade Justino!

      Mal acabara de dizer estas palavras, o Souza viu o compadre Titõezinho cair da escada, o quê resultou na quebra das duas pernas do mesmo. Quando a filha menor, a Magali, tentou chegar perto da Neguinha, uma ripa se partiu e ela caiu com "Neguinha e tudo" sobre o forro de madeira da sala, que também veio abaixo. Por azar, caíram sobre a cristaleira e quebraram todos os pratos e todos os copos; e até uma reprodução da foto de casamento da dona Zéfa com o Souza. A mesa com as doze cadeiras dispostas no meio da sala também não resistiu. Praticamente não sobrou nada da sala. Depois do ocorrido, resolveram que iriam matar a Neguinha; que ela seria transformada em torresmo e lingüiça no dia seguinte. Arranjaram um cantinho para a Neguinha dormir num canto da sala, agora sem os entulhos, ao lado do rádio Capelinha de quatro faixas e do quadro em feitio de televisão, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Este quadro, que a Dona Zéfa trouxe de Aparecida do Norte, era o oráculo da família, portanto centro das orações; e estava em lugar considerado sagrado. Tudo pronto para a "matança" do dia seguinte: o Souza já deixou as folhas de zinco lavadas, as palhas no jeito ( para sapecar a Neguinha); além das facas, bacias e um balaio para pegar a barrigada. Tudo pronto e decidido, os Souza foram dormir, quando ainda não era nove da noite!. Duas horas da manhã. Um grito horripilante ecoou no ar, acordando e atraindo inclusive a vizinhança. A Magali e o Souza encontraram a Dona Zéfa, olhos arregalados e sem voz; por incrível que pareça tanto ela, que havia dado o grito, quanto todos os demais que chegaram presenciaram a cena chocante: a Neguinha estava de joelhos ao pé da santa!

      Daí a razão de dar a Neguinha para o padre e estória do prequeté, prequeté, prequeté, com o qual comecei o "causo". 

      – O Souza achava que havia feito um pecado grave; onde já se ouviu falar que alguém fizesse lingüiça e torresmo de uma leitoa tão católica?

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.