Vibrou forte o alarma do patriotismo, despertando a nação. É que depois de haver negado várias vezes o entendimento com o Fundo Monetário Internacional, o governo admitiu as negociações que, na verdade, já se vinham processando há muito com essa instituição financeira.

Ao mesmo tempo, chegava ao Brasil Mr. Struckmeyer, chefe da missão do FMI, disposto, como se viu, a examinar as contas e os projetos estatais, a política cambial e salarial, os tributos e subsídios concedidos internamente, as fontes de recursos do país e algo mais que, nas esferas da economia e das finanças, se faz por baixo do pano, como diz a canção popular. O alarma ecoou forte porque a intervenção estrangeira nos negócios internos do país fere profundamente a linha demarcatória da soberania e independência nacional, deixando claro que chegamos ao limiar da falência, com os credores dentro de casa, fazendo o levantamento do ativo e passivo do Tesouro Nacional, do patrimônio dos bancos oficiais. O fato chocante calou na alma da nação que se ergue para protestar contra tão aviltante capitulação. Os responsáveis por esse estado de coisas são chamados justamente de lacaios do imperialismo, serviçais do capital estrangeiro, entreguistas consumados.

Especula-se acerca da causa da bancarrota. Dizem alguns que foi precipitação no desenvolvimento econômico; outros alegam imprevidência no endividamento externo; e há os que culpam a crise mundial do sistema capitalista. A causa verdadeira, porém, encontra-se no "modelo" de desenvolvimento posto em prática pelos governantes militares. Eles pretendiam converter o Brasil numa grande potência, sem tocar no imperialismo, no latifúndio, nos grupos monopolistas da burguesia brasileira. Ou melhor: com a ajuda direta e copiosa do capital estrangeiro, com a maior penetração do capitalismo no campo, conservando e estendendo a grande propriedade territorial, com o alargamento das empresas estatais e a proteção a determinados setores econômicos e financeiros. "Modelo” que exigia, no plano político, a supressão pela força do movimento popular e democrático, com a questão social tratada no âmbito de uma pretensa segurança nacional e as liberdades cedendo lugar ao arbítrio.

Foi esse "modelo" que fracassou totalmente e conduziu o país à falência. Ao invés de superar as contradições básicas atuais da sociedade brasileira, agravou-as ao extremo. E o resultado é a subordinação, a dependência maior ao imperialismo.

Nenhuma panacéia superará a crise de estrutura que o Brasil atravessa. Os males de que sofre o país não se curam com remédios que atacam os efeitos e não as causas da doença. Esta exige tratamento de natureza radical. Trata-se de liquidar o domínio imperialista, de pôr fim ao sistema do latifúndio, de golpear os grupos monopolistas da grande burguesia associados ao capital estrangeiro e ao monopólio da terra. Somente assim o Brasil poderá progredir e se tornar nação poderosa e soberana. É uma decorrência inevitável das leis objetivas do desenvolvimento histórico. Único meio de resolver as contradições que geram o quadro alarmante da presente conjuntura.

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As eleições de 15 de novembro passado constituíram acontecimento de destaque invulgar. Após muitos anos de abstinência forçada na escolha direta dos governadores estaduais e de parlamentares sem as discriminações impostas por atos institucionais e leis arbitrárias, o povo brasileiro acorreu às urnas, maciçamente, para exprimir suas preferências e fazer o julgamento político do regime.
A oposição venceu amplamente: 9,2 milhões de sufrágios a mais do que os outorgados ao partido do governo, que sofreu contundente derrota. Embora expressivos, esses números ainda não dizem tudo. Porque em favor do agrupamento situacionista pesou a corrupção numa escala jamais vista, a Lei Falcão, os casuísmos de toda espécie, as fraudes organizadas, o clientelismo apoiado na máquina administrativa. Se houvesse eleições realmente limpas, pouco teria restado da antiga ARENA com nome novo.

Em qualquer país medianamente democrático, semelhante resultado eleitoral implicaria, no mínimo, a renúncia do governo, uma vez que, segundo propalados princípios constitucionais, o poder emana do povo. Aqui, porém, as coisas são diferentes. Quem levou a pior continua dando as cartas, adotando represálias contra os vencedores, impondo medidas antidemocráticas e afirmando que não cederá as posições de mando nem mesmo em 1985. Deste modo, as eleições perdem seu conteúdo essencial como elemento de aferição da vontade popular e fator de recomposição do governo sempre que ocorram insucessos nas urnas. Isto no quadro da democracia burguesa.

O pleito de 15 de novembro, na realidade, não é ainda o mecanismo do funcionamento normal de um sistema jurídico razoavelmente instituído. Sua importância reside em ter sido um episódio marcante da luta de quase quatro lustros que o povo vem sustentando contra o regime militar. Valeu pela condenação incisiva desse regime, pela revelação da carga de descontentamento popular em crescimento, pela intensa mobilização e conscientização da opinião pública no conjunto do país. Não obstante a desfaçatez dos governantes, eles sabem, e muito bem, que a maioria da nação não os apóia, que seu campo de manobras políticas tornou-se mais estreito, suas chances de continuar mandando reduziram-se bastante.

Entrementes, a conduta do governo, posterior ao pleito, indica não haver margem para ilusões: o arbítrio ainda continua, não desaparecerá tão facilmente. Enquanto persistir o domínio militar, mesmo recauchutado, a democracia não passa de miragem. É o que se infere da situação presente.

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Com as derrotas e o isolamento dos generais argentinos, instalados pela força das armas na Casa Rosada desde 1976, a questão dos "desaparecidos" adquiriu novas dimensões. Anteriormente, só mesmo as "loucas da Plaza de Mayo" ousavam enfrentar os brutamontes fardados na esperança de obter informações sobre a sorte de seus filhos, maridos, irmãos levados pelo turbilhão da brutalidade fascista que varreu o país vizinho. Agora, são milhões os que não somente reclamam notícias dos que "sumiram", mas denunciam também a terrível tragédia que envolveu milhares de presos políticos e manchou a história de todo um povo submetido a prepotentes "guardiães da ordem".

Surgem inúmeros depoimentos. De testemunhas das monstruosidades ocorridas nos órgãos de repressão, de alguns sobreviventes da chacina policial-militar, dos que procuram fugir à sua responsabilidade pelo sucedido, de vários torturadores insolentes. Páginas inteiras dos jornais relatam o martírio sem remissão de jovens que sonharam com a liberdade, as técnicas sofisticadas de torturas físicas e mentais ali praticadas, os métodos dos inquisidores para se desfazerem rapidamente dos corpos imobilizados para sempre. Nesses relatos, espelham-se com nitidez os crimes horripilantes da época de Hitler, que deixaram a Humanidade traumatizada e revoltada.

Desgraçadamente, tais crimes não se verificaram apenas na Argentina. Em toda a nossa América, onde se fala o espanhol, o português, o francês, o inglês, registraram-se (e ainda se registram) fatos semelhantes. Os autores têm a mesma face, a face do ódio ao povo e à democracia, a mesma mentalidade tacanha. Têm igualmente medo da averiguação dos acontecimentos nos quais estiveram metidos. Eles recusam o julgamento da opinião pública, temem a severidade da sentença popular irrecorrível.

Silenciar ou esconder tais crimes somente contribui para estimular a sua repetição. É sabido que, depois da Segunda Grande Guerra, criou-se o Tribunal de Nuremberg a fim de julgar os expoentes do nazismo. Uns poucos, apenas. A grande maioria dos que implantaram o terror por toda parte, dos que enviaram para a morte, nos fornos crematórios, milhões de democratas sinceros, de mulheres, crianças e inocentes ficou impune, quando muito cumpriu penas irrisórias. O fascismo e seus cúmplices não mereceram o devido julgamento. Não custou muito para que essas aberrações se repetissem.

Mal encerravam-se os trabalhos de Nuremberg e um novo tipo de banditismo percorria o mundo arvorando a ameaça da bomba atômica, sob a batuta de Truman. O macarthysmo invadiu os Estados Unidos, perseguiu homens e mulheres progressistas, artistas e intelectuais, o movimento negro sobretudo. E depois vieram as guerras da Coréia e do Vietnã onde as tropas norte-americanas usaram a mais requintada selvageria. Crimes, todos esses, amplamente comprovados, reprovados, mas não castigados. Muito cedo rolaram para os recantos esconsos do esquecimento com a ajuda daqueles que dominam a máquina da comunicação social.

Certamente, a punição dos culpados é necessária. Em liberdade, os protagonistas dessas ações constituem um escárnio, um desafio à sociedade. Mais importante, porém, do que a punição, é ajudar o povo a compreender onde está a origem do mal que se repete com tanta frequência e num plano tão vasto. Sua raiz encontra-se na decomposição irreversível do sistema capitalista, apodrecido até a medula. É daí que provêm o fascismo e a brutalidade terrorista que o acompanha. É daí que deriva o lado escuro e sinistro da vida atual.

Por isso, a aspiração a acabar definitivamente com esse tipo de violência só será alcançada com a passagem da Humanidade a outro estágio de desenvolvimento social, o estágio do socialismo proletário, do comunismo científico.

EDIÇÃO 5, MARÇO, 1983, PÁGINAS 3, 4, 5