Entre santuaristas radicais e desenvolvimentistas a qualquer custo, o debate ambiental costuma ser quase inconciliável. Quando ocorre no ambiente hoje polarizado entre a ampla maioria que apoia o governo Lula e os conservadores da oposição e da mídia, ele ganha contornos ainda mais acesos, como se constata na cobertura da mídia sobre o Relatório da Comissão Especial do Código Florestal da Câmara dos Deputados, apresentado pelo deputado comunista Aldo Rebelo (PCdoB-SP) na semana passada.

O Relatório resultou de nove meses de trabalho daquela Comissão; foram realizadas mais de 60 audiências públicas em 19 unidades da federação, sendo ouvidas 378 pessoas (professores universitários; técnicos da Embrapa; representantes de órgãos ambientais dos três níveis do governo (federal, estadual e municipal), entidades de classe e ONG’s, além de pequenos, médios e grandes agricultores). É um extenso estudo, com 270 páginas, sobre a realidade econômica, social e ambiental do campo brasileiro em nossos dias.

Na imprensa, alguns tentaram fazer chacota. Na melhor das hipóteses não entenderam o estilo literário – filiado à melhor tradição da escrita brasileira – do autor, e levaram ao pé da letra ironias distribuídas nas páginas do Relatório, revelando no mínimo falhas de compreensão de texto graves em profissionais da escrita como são os jornalistas. Houve referências jocosas à “naturalização” da jaca, aos sonhos ambientalmente incorretos da cachorrinha Baleia (de Vidas Secas) ou ao boi pantaneiro de estimação. Serão lembrados no futuro, com certeza, como exemplos da indigência literária presente em muitas redações da mídia das grandes empresas.

Em outro registro, que trata de interesses concretos e das contradições que eles suscitam quando se trata da proteção do meio ambiente, da preservação das florestas e da produção agropecuária, o debate abordou temas que, tudo indica, freqüentarão os plenários da Câmara dos Deputados e, depois, do Senado, quando o relatório for levado para a votação que dará contornos definitivos ao novo Código Florestal brasileiro.

Dentro da tradição ambientalista brasileira

O Relatório de Aldo Rebelo parte de uma base conceitual ampla. Sua referência histórica é a tradição ambientalista brasileira, que remonta a José Bonifácio e engloba nomes que honram nossa ciência, como o geógrafo Josué de Castro e o jurista Osny Duarte Pereira. Uma tradição que combina a proteção ao meio ambiente com as necessidades do desenvolvimento, resumida na frase citada no Relatório, usada por Osny Duarte Pereira como epígrafe ao seu trabalho para o Código Florestal de 1965, que queria evitar a extinção das florestas “para que nunca se extingam as serrarias do Brasil”. Frase que orienta o sentido geral do Relatório – proteger a natureza e os seres humanos, como diz o título de um dos itens da introdução onde alinha estas duas preocupações e descreve “o inventário de problemas e desafios à espera de soluções adequadas que compatibilizem o compromisso civilizatório da sociedade brasileira para com o meio ambiente e a necessidade de assegurar ao País e ao povo a legítima aspiração ao progresso e ao pleno desenvolvimento como valores essenciais ao bem estar material e espiritual dos brasileiros”.

As premissas do Relatório combinam a defesa do meio ambiente com a aspiração ao desenvolvimento sustentado e a afirmação da soberania nacional. Elas se manifestam no reconhecimento e afirmação da exclusiva competência do Estado brasileiro para formular suas políticas de preservação ambiental, proteção da natureza, fomento ao desenvolvimento e defesa da integridade territorial do país, principalmente sobre a Amazônia, que tem sido historicamente alvo da cobiça estrangeira.

O Relatório parte da constatação de que toda sociedade capitalista (como o Brasil de nossos dias) está dividida em classes, com interesses diferentes e antagônicos. O debate, diz o Relatório, “situou os campos em disputa: os que viam as relações entre o homem e a natureza a partir das necessidades de reprodução do capital, da manutenção da sociedade de classes e da divisão internacional do trabalho que lhe é subjacente, e os que, no sentido oposto, partiam da idéia de que os problemas ambientais derivam do sistema social e que as possíveis soluções devem ser buscadas na sua transformação”.

São dimensões diferentes que se imbricam na busca de um novo ordenamento jurídico florestal para o país. Uma destas dimensões opõe a opção pelo desenvolvimento capitalista à visão de que apenas a inauguração de um novo sistema social, que supere o capitalismo, permitirá o correto equacionamento dos problemas da proteção ambiental. A outra dimensão é a que contrapõe as nações ricas, hegemônicas, privilegiadas “pelo atual estágio da divisão internacional do trabalho”, aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

Ideologia ambientalista

A partir do registro destas contradições (que ocorrem no interior da nação e também em sua relação com as nações ricas e dominantes), o Relatório historia a constituição do pensamento ambientalista como uma ideologia que legitima e preserva as relações de poder e de subordinação entre as nações e favorece o desenvolvimento das economias capitalistas avançadas em detrimento dos povos que, em situações diferentes de pobreza, lutam para alcançar níveis de riqueza social capazes de atender às múltiplas demandas de suas populações e de suas economias.

É uma história de argumentações alegadamente “preservacionistas”, colocadas em pauta já nas reuniões do chamado Clube de Roma, em 1968 e que, desde então, tiveram diferentes formas de apresentação, sempre com o mesmo objetivo de travar o desenvolvimento dos países mais pobres para que os países mais ricos preservem o seu, mantendo intocados seus perdulários níveis de consumo. E assegurem as condições para a reprodução do capital nas condições atuais em que os países pobres são fornecedores a preço baixo de matérias primas, alimentos, insumos e mesmo força de trabalho, arcando com os custos da manutenção do mundo como ele é hoje.

Nessa linha, antes de preservacionista, o “ambientalismo” pode ser encarado “como uma rota de fuga” do conflito entre capitalismo e o socialismo, que beneficia a manutenção da ordem social e econômica injusta, desigual, cheia de embaraços à soberania dos países mais pobres e obstáculos ao seu desenvolvimento.

O conflito entre as nações dominantes e aquelas que almejam seu desenvolvimento gera uma verdadeira “guerra comercial” desdobrada nas rodadas internacionais pela regulação do comércio mundial. Ele está presente também em outras frentes, como a ação de organizações não governamentais que denunciam países pobres por “agressões ambientais” mas quase sempre se omitem em relação aos cometidos pelos países ricos. Ou nas reuniões internacionais sobre as ameaças ambientais e os meios de mitigá-las. Nelas se sucederam, nas últimas décadas, a formação de “consensos” que legitimam a pressão política contra o desenvolvimento dos países pobres. O consenso atual traz a assinatura do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), órgão da ONU que reuniu um significativo conjunto de estudos para demonstrar os resultados negativos da ação humana sobre o clima e propor medidas para conter o aquecimento global. Embora tenha reunido uma grande maioria de cientistas em torno de seus estudos (inclusive de nações como a China e Cuba), as conclusões do IPCC não são consensuais e um grande número de cientistas discorda delas. Nessa controvérsia, a posição do Relatório é prudente: “as incertezas científicas e econômicas recomendam uma abordagem mais flexível, que possa estar sujeita a revisões periódicas, na medida em que avance o nosso entendimento sobre as mudanças climáticas”.

Incongruências da lei

O objetivo do trabalho da Comissão Especial da Câmara dos Deputados é elaborar um novo Código Florestal que supere e aperfeiçoe o atual, em vigor desde 1965. E a argumentação, aqui resumida sucintamente, foi elaborada para fundamentar as alterações propostas.

Em relação ao atual Código Florestal o Relatório constatou a generalidade que leva, num país continental, composto de múltiplos biomas e ambientes, à inconsistências que se chocam com a realidade e tornam a lei inaplicável. A tentativa, diz o Relatório, é a busca de uma norma nacional que possa ser aplicada nos vários Estados respeitando suas particularidades locais.

O atual Código Florestal foi desfigurado, ao longo dos anos, por leis contraditórias entre si. Por exemplo, na década de 1970, para reconhecer a posse dos lotes distribuídos pelo INCRA a título de reforma agrária, a lei pressupunha o desmatamento como prova de uso efetivo da terra, inclusive para garantia nos créditos concedidos ao agricultor por bancos públicos. Anos depois, tudo mudou e o desmatamento passou a ser encarado como um crime ambiental.

As alterações contraditórias no Código Florestal levaram à ilegalidade mais de 90% das 5,2 milhões de propriedades rurais existentes no Brasil, e sua punição pode colocar em risco a economia agrícola nacional. Foi o reconhecimento da gravidade dessa situação paradoxal que levou, em 2008, aos primeiros passos para a revisão do Código Florestal para adaptá-lo à situação econômica e social que o país vive hoje.

Uma lei para todos

A lei de defesa das florestas deve ser aplicável igualmente a todos os brasileiros que vivem no campo ou do campo. Para isso precisa ser uma lei adequada para abranger a multiplicidade de formas de produção, de explorações agrícolas e de vida, pesando desigualmente sobre ombros que são desiguais. Uma lei que possa ser efetivamente aplicada, cujo cumprimento possa ser exigido sem prejuízos para os pequenos agricultores familiares (que constituem a imensa maioria daquele universo de propriedades) e também para os grandes do agronegócio, sem criar obstáculos que inviabilizem a produção mas também sem frestas que perpetuem o tradicional desprezo pela lei típico do latifúndio e mantido amplamente em nosso tempo.

O estudo da realidade agropecuária feito pelo Relatório revela a coexistência de dois setores no campo. Um, formado por quatro milhões de propriedades (entre as 5,2 milhões existentes no país): são “homens e mulheres do campo [que] vivem ou se apoiam no seu trabalho para viver”, levam sua produção para as “feiras livres do interior do País e mobilizam uma economia que não pode ser desprezada”. O outro é o universo do agronegócio, formado por produtores capitalistas “cuja importância reside em tornar a nossa agricultura competitiva no cenário internacional, no barateamento do custo dos alimentos e na formação do excedente necessário para o equilíbrio das nossas contas externas e estabilidade dos preços internos”. A agricultura de mercado conta também “com uma grande parcela de pequenos e médios empreendimentos agropecuários organizados em um sistema eficiente de cooperativismo, mas carente de reserva der capital para investimentos em equipamentos e ganhos de produtividade”.

Mudança e permanência

Para abranger de forma desigual aqueles que são desiguais gerando, no fim, certa igualdade entre todos, a proposta de alteração da lei mantém os atuais parâmetros para os percentuais de Reserva Legal em cada propriedade (que variam de 20% na Mata Atlântica a 80% na Amazônia Legal), com mudanças: as pequenas propriedades (com área inferior a quatro módulos fiscais) ficam isentas da obrigação de manter uma Reserva Legal; os critérios para as Áreas de Proteção Permanente (em margens de rios e lagos, várzeas, topos de morros) são redefinidos, permitindo que suas áreas possam ser somadas às áreas das Reservas Legais, e determinando margens mínimas (entre 15 a 500 metros), proporcionais à largura dos rios, e os Estados ficam autorizados a reduzir estas margens para a metade em caso de necessidade.

Propõe também a responsabilidade compartilhada entre a União e os estados para definir os tamanhos das reservas. Hoje, somente a União pode legislar sobre questões ambientais; pela proposta, a União define a norma geral, que é de aplicação obrigatória em todo o país, cabendo aos Estados definirem, dentro de parâmetros fixados pela lei, como a norma será aplicada em seus territórios. Eles têm prazo de cinco anos para essa definição. Nesse período ficam proibidos os novos desmatamentos e assegurado o uso das áreas desmatadas até o dia 22 de julho de 2008 (data da publicação do decreto 6514, que regulamenta a Lei de Crimes Ambientais, estopim do processo que levou ao reconhecimento inaplicabilidade do atual Código Florestal e da necessidade de sua revisão). O Relatório também inova ao propor formas de compensação financeira pelos serviços ambientais prestados por proprietários rurais. Para isso, indica a criação de um Fundo Nacional de Meio Ambiente e o uso de mecanismos fiscais e creditícios para premiar aqueles que investirem na preservação e em sistemas produtivos conservacionistas.

Proteção das florestas, da agricultura e da soberania nacional

O objetivo do Relatório de Aldo Rebelo não é o conhecimento científico (embora se beneficie dele) nem participar do debate ideológico sobre a defesa do meio ambiente, a proteção das florestas e a atividade agropecuária (embora não o desconheça). Seu objetivo é formular um novo Código Florestal que articule a proteção ao meio ambiente, da produção agropecuária (envolvendo pequenos, médios e grandes produtores) e da soberania nacional.

O esforço registrado nele foi feito para consolidar a legislação ambiental em vigor e as propostas dos 42 projetos de lei sobre a questão que tramitam na Câmara dos Deputados num novo Código que supere o verdadeiro cipoal jurídico atual que põe na ilegalidade milhões de produtores rurais.

O Relatório é, assim, a argumentação e a fundamentação para o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 1876, de 1999, que ocupa 25 das 270 páginas daquele documento e forma o corpo da futura lei florestal.

Como a lei reflete a sociedade em que é formulada e suas contradições, a proposta do novo Código incorpora os interesses das classes sociais e das correntes de pensamento presentes na sociedade. Ao atender a alguns e desatender a outros, suscita divergências que, muitas vezes, se manifestam de forma virulenta: é a luta social que se transfere para o âmbito do parlamento e busca influir na definição final da lei.

No momento, o Substitutivo é ainda um projeto de lei; sua efetivação como Código Florestal depende agora do voto dos parlamentares, que poderão acatar as propostas contidas nele ou alterá-las. O grande mérito do Relatório apresentado por Aldo Rebelo foi formular um projeto coerente que pode ser levado à votação. Com ele, a luta por uma nova lei de proteção das floretas venceu uma etapa, e vai prosseguir agora nos plenários do Congresso Nacional. Ela continua.

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Fonte: Portal Vermelho