Maldades à parte, Joaquim era feio. Pelo menos era o que diziam os amiguinhos da quinta série. Seriam os óculos? Os dentes? Aquelas orelhas? Não se sabe ao certo. Mas as meninas não olhavam pra ele com olhos enamorados. Os guris também faziam a sua parte na maldade e nunca o convidavam para brincar. Joaquim ficaria sempre sozinho se não fosse o Juninho. Juninho era menino inquieto e abusado. Vivia suspenso na escola (a última foi tentar espionar o banheiro das meninas com a ajuda de dois espelhos em um tubo de PVC que o próprio peralta havia projetado). Joaquim admirava ele e, mesmo sem saber se o sentimento é recíproco, vivia ao seu lado e, para não perder o amigo e a companhia, costumava assumir algumas traquinagens do Juninho. “Com amizade não se brinca”- dizia.

      Joaquim gostava de Arlete, a menina mais bonita da sala. Ela mal sabia da existência do apaixonado e, se quer, dava "oi". O "oi" inclusive era o sonho de Joaquim. Sonho mesmo. Sonhava com Arlete passando por ele e lhe oferecendo um sorriso… Pobre coitado. Arlete gostava do Maurício. Loiro, bonito e muito grande, o mais alto da sala. Jogava no time de basquete "A" e tinha um New Balance, um ótimo partido. O Maurício era requisitado pelas meninas e vivia ficando com uma ou com outra. Com a Arlete ele ficava de vez em quando e, para a fúria de Joaquim, vivia humilhando a menina que ficava depois pelos cantos a chorar. Joaquim queria destruí-lo, mas "ele é tão grande" – pensava. O jeito mesmo era ficar jogando praga de longe e olhando a menina nos cantos… "se eu tivesse coragem eu ia lá". "Fazer o quê?" – argumentava Juninho – "ela vai te enxotar. Tu é muito feio". Joaquim sabia que era mesmo.

       Certo dia, Maurício passou dos limites. Chegou no ouvido de Joaquim, que ele havia dado um tapa na cara da Arlete. A fofoca dizia ainda que ela estava em casa chorando e com vergonha de sair do quarto. Foi a gota d’água. Joaquim saiu em disparada na direção da casa do brutamonte, sempre com o Juninho atrás, tentando convence-lo a esquecer tudo e, com isso, poupar alguns dentes. Mas parecia que Joaquim estava decidido. Foi. Bravejava muito. Rosnava certas vezes. Trazia a raiva em seu peito. Ao chegar a esquina da rua do Maurício, já começou a gritar. Todos foram ver o que estava acontecendo. Em instantes, uma roda de curiosos circunscrevia o corajoso apaixonado. Alguém correu para chamar Arlete. Na porta da casa do inimigo, Joaquim tirou a blusa e puxou as mangas. “Aparece!”. “Vem aqui!”. “Venha dar um tapa em mim, covarde”. E nada do Maurício aparecer. Todos chegaram a achar que a briga não iria dar em nada todo aquele bafafá. Quando o povo começou a se dispersar, ouviu-se uma voz. “Estou aqui, dentuço”. Era o Maurício. Talvez nem soubesse o porquê do desafiante estar ali, mas não costumava fugir de uma briga. Ele era assustador. Terrível. De chinelos. De bermuda. De regata. De boné. Cara vermelha de raiva. Parecia ter acordado com todo aquele barulho. Dizia a lenda que ele costumava cortar a cabeça de quem o acordava. “Dizem que ele matou um pit-bull”– alguém falou ao lado do Joaquim, que nem se quer tremia, de raiva. Os rivais se olharam por uns três minutos e os dois, em um único e poderoso grito, correram um contra o outro. Joaquim arqueou o braço para um soco fulminante. Foi contido pelo braço do Golias, que rodopiou no ar e o arremessou contra o chão. Depois deu-lhe um boa pisada e um soco de “cima para baixo” no nariz. Deixou o Joaquim ali, caído. Quase desmaiado. Bateu uma mão na outra. Encarou a multidão e voltou para casa, talvez para continuar dormindo. Joaquim abriu os olhos e via algumas nuvens. Via também rostos curiosos. “Está vivo”. “Nossa, ele apanhou feio”. “Coitado, se já era feio, agora é torto também”. E todos foram se dispersando. Ainda com os olhos embaçados ele viu a Arlete. Linda. Ela trazia um paninho e começou a limpar os ferimentos. Depois agradeceu a preocupação e, antes de ir embora, deu-lhe um beijinho na testa.
Quando chegou em casa, Joaquim contou o fato para sua mãe, que ficou assustada com a burrice do filho em querer brigar com um garoto tão grande. Joaquim não ligava. Só pensava na Arlete. No paninho. No beijinho na testa. E, na solidão do banheiro, se olhou no espelho e deu para si mesmo um sorriso. Aquele dente a menos era só um detalhe.

Luiz Henrique Dias da Silva é dramaturgo e professor de física. Nas horas vagas, ele costuma andar pela rua cantando sozinho. Dizem que ele acredita no amor, e que já perdeu alguns dentes por isso. http://acasadohomem.blogspot.comwww.twitter.com/luizhdias