Mano, olhando para o dedão do meu pé direito, assim torto, me lembrei do chute que te dei e que acertou em cheio a parede. Doeu tanto, que entrei em desespero e, enquanto meus braços zanzavam desgovernados diante de seu rosto ensaiando bofetões [sem nunca te alcançar], você aproveitou a deixa e fugiu. De vez em quando a gente brigava e nem lembro de todos os motivos. Coisas da convivência entre irmãos, ainda mais de gêneros e gênios diferentes.

      Mano, agora você olha bem para seu pé esquerdo e confere se há uma cicatriz, mesmo que sutil, sobre o peito do pé. Esta cicatriz foi um corte causado pela travessa de macorronada de domingo que você deixou cair. Neste domingo [pelo menos] consegui fazer com que você enxugasse a louça do almoço, tarefa que era exclusivamente minha, por ser mulher. Você me decepcionou deixando-a cair e quebrar, e ainda mais sobre seu pé, abrindo-o em dois e deixando expor a carne sangrenta sob minha decepção, entregando-me à mãe com seus berros de dor.

      Acho que é desta época que nasceu em mim o desejo de igualdade entre os gêneros. Nunca me conformei em ter de fazer as tarefas domésticas, enquanto você ia para a rua brincar. "Homem não tem que lavar louça! Você é a culpada dele ter se machucado" e saiu atarantada a te socorrer, enquanto ficava com a cara estupefata.

      Nunca me convenci com esta máxima da mãe e que antes foi da vó e que antes, um pouco mais, foi da bisa, mas não me lembro de ter te obrigado a me ajudar nas tarefas domésticas dali para a frente. Afinal, nascer homem é um privilégio. E hoje, quando a mãe reclama que você não a ajuda em nada, eu posso retribuir com aquele passado: "homem não tem que lavar louça!".

Professora